Volta à barbárie

A selvageria da horda que caçou Kadafi e o espancou até a morte fez lembrar a fúria nazista

Curiosos em torno do corpo do filho de Kadafi (foto: © Thaier Al-Sudani/Reuters)

Em um ensaio de juventude, Meditaciones del Quijote, o filósofo espanhol Ortega y Gasset deixa, em dois parágrafos, uma informação instigante, à qual dá o título de Parábola. Ele cita trecho das memórias do explorador inglês William Edward Parry, em uma de suas tentativas de atingir o Polo Norte. O trecho parece fora do contexto ao leitor apressado, mas suscita reflexões em torno da ideia do Ocidente, que é o arco de toda a obra de Miguel de Cervantes.

Conta Parry (em seu Diário da Segunda Expedição em Busca de uma Passagem Noroeste) que, ao viajar sobre parte da calota congelada do Oceano Ártico, mediu pela manhã a latitude, enquanto os cães eram atrelados aos trenós. Ele e os poucos companheiros fustigaram os animais, e assim viajaram o dia inteiro, dilatado no verão ártico. Ao entardecer, Parry voltou a medir a latitude, e descobriu que estavam muito mais ao sul do que ao partir naquela manhã. Enquanto os trenós corriam em direção ao polo, a plataforma de gelo, sobre a qual viajavam, deslocara-se rumo ao Equador. 

As imagens de Kadafi ao ser trucidado e morto, e de seu filho, vivo e depois morto, se somam a outras, destes tempos sombrios. A selvageria da horda que caçou o líder líbio e o espancou até a morte fez lembrar os nazistas em sua fúria racista contra os judeus e ciganos e ideológica contra os comunistas. Acrescente-se que os invasores de Sirte caçaram e mataram, friamente, numerosos negros do Sahel (“corredor” regional que separa a parte central do norte da África) que trabalhavam na cidade e não haviam conseguido fugir a tempo. A essas imagens, podemos juntar outras, como as da prisão e “execução” de Saddam Hussein, em Bagdá, há cinco anos. Houve outros assassinatos, nas últimas semanas, como dos cidadãos norte-americanos Anuar-al-Aulaki e Samir Khan, atingidos no Iêmen por um avião não tripulado, e por ordem direta de Obama.

A civilização contemporânea, iniciada com o Iluminismo, sofreu poderoso choque com a descoberta do petróleo na Pensilvânia, em 1859, e com o processo de seu refino, a fim de servir de combustível aos motores a explosão. A partir de então, foi conduzida por dois vetores alucinantes, ambos resultantes da tecnologia, a serviço do lucro: a velocidade e o consumo. O mundo, que dependia do ar e da água, passou a depender também do óleo. E todas as guerras, mundiais ou regionais, a partir de 1914, foram movidas para garantir essa nova fonte de energia, e sempre tendo como centro da cobiça o Oriente Médio – mesmo que se travem fora dessa geografia, como foram as da Coreia e do Vietnã: peças laterais no tabuleiro geopolítico do mundo.

Os povos do Afeganistão, do Iraque e da Líbia estão sendo bombardeados, e outros, como o do Irã, ameaçados de sofrer o mesmo, para que os norte-americanos e europeus mantenham o mais alto padrão de conforto da História. A humanidade, tal como os trenós do contra-almirante Parry, avança velozmente, graças à espantosa tecnologia moderna, rumo ao Norte, mas a plataforma moral, em que se desloca, recua de volta à selvageria tribal. É o cumprimento de uma profecia de Giambattista Vico, segundo a qual a técnica nos devolveria à barbárie.

Há alguns meses, em maio, os norte-americanos cometeram crime contra as leis e costumes internacionais, ao invadir o espaço aéreo do Paquistão, sem autorização de seu governo, e matar um morador de Abbottabad, que dizem ter sido Osama bin Laden. Mais assustadora do que as fotos do ataque dos comandos norte-americanos foram as da alta cúpula governamental, reunida na Casa Branca, para acompanhar as cenas do assassinato, e aplaudi-las.
A única esperança é que o povo norte-americano avance em sua luta e construa nova elite disposta a respeitar os povos mais débeis, e assim salvar sua nação e o mundo de previsível apocalipse.