O baile de Cristina

Com o kirchnerismo, a vida dos argentinos melhorou e eles retomaram gosto pela política.

Cristina e o vice, Amado Boudou, componentes históricos com “braço progressista” (©Pablo Busti)

Martín D’Alessandro espera sentado. Faltam poucos minutos para o fechamento das urnas que consagrarão uma das maiores vitórias em eleições argentinas. A Rua Moreno, no bairro de San Telmo, em Buenos Aires, está tomada por jovens a celebrar o triunfo de Cristina Fernández de Kirchner. A enorme diferença para os demais concorrentes permite mandar às favas a cautela, o bumbo toca, e soam coros como os de uma torcida de futebol.  “Ôoooo, sou argentino, sou soldado do Pinguim”, cantam, em referência a Néstor Kirchner, morto em 27 de outubro de 2010.
Martín é de uma família peronista e andava desiludido com a política tradicional desde o fim do ensino médio, quando corria o governo neoliberal de Carlos Menem. “Néstor e Cristina recuperaram essa vontade de estar aqui”, diz. Aos 37, ele integra o amplo grupo de jovens que apoiam o kirchnerismo. Entre os 15 e os 40, todos jovens – até o vice-presidente eleito, atual ministro da Economia, Amado Boudou. Aos 48, mantém um ar jovial: escuta e toca rock em público, namora uma jovem repórter e dispensa formalidades, como no domingo da vitória, 23 de outubro, quando apareceu, de jaqueta de couro, ao lado de Cristina.

Martín: "Néstor e Cristina recuperaram essa vontade de estar aqui” (©Pablo Busti)

Após a morte de Néstor, Martín decidiu ingressar em La Cámpora, organização que reúne jovens apoiadores do kirchnerismo. Referência a Héctor Cámpora, o presidente do governo de 49 dias, em 1973, que possibilitou a volta de Juan Domingo Perón do exílio para seu último e mais breve mandato, quando teve início a repressão estatal, logo seguida da ditadura (1976-1983). La Cámpora, fundada em 2003, é um fator de sustentação do atual governo, inclusive com a ocupação de cargos públicos, em especial em autarquias na área social.

É a consagração da ideia peronista de que os jovens podem ser protagonistas da história, casada a uma agenda que destoa do peronismo tradicional em questões morais. “Com o kirchnerismo, mescla-se o componente justicialista histórico com o componente da liberalidade política e social. Não muito forte, mas há um braço progressista importante”, diz Diego Reynoso, professor e cientista político da Faculdade Latino-Americana de Ciências¬ Sociais (Flacso).

Esse braço progressista surge em 2003, quando Néstor revoga os dispositivos que anistiavam os repressores da última ditadura. Até agora, 1.774 colaboradores do regime foram processados e mais de 200, condenados, o que inclui todos os ex-presidentes das juntas das Forças Armadas e os principais cabeças do regime. Um processo que tem dificuldades, mas caminha. “Não me imagino em uma situação como a da Alemanha, que segue investigando os criminosos nazistas”, diz Carolina Varsky, diretora da área de ações judiciais do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels).

A equiparação dos direitos entre casais hétero e homoafetivos, a vindoura aprovação de um projeto sobre o aborto e a lei que tenta democratizar o acesso à comunicação são pontos de uma agenda que avançou – uma pesquisa feita pela Universidade de Buenos Aires (UBA) no dia da eleição mostrou que todas essas medidas contam com o respaldo da maioria da população. São linhas de continuidade¬ do mandato de Néstor. Em que pese o machismo implícito na visão de que a presidenta não sabia governar, Cristina respeitou o desejo manifestado pela população nas urnas em 2007, quando venceu a primeira eleição – ou seja, a manutenção das linhas estabelecidas em 2003. Assim alcançou os 11 milhões de votos e um novo mandato.

É a economia, papá

Organização La Cámpora atraiu jovens desiludidos com a política (©Pablo Busti)

Berta Pinto vive em Pilar, região metropolitana de Buenos Aires. É a mãe de Esmeralda, de 8 anos, que recebe o Benefício Universal por Filho¬ (AUH, na sigla em castelhano). São 220 pesos ao mês (em torno de R$ 90) por criança cujos pais estejam desempregados ou trabalhando no mercado doméstico sem registro. São 4,5 milhões de crianças e adolescentes até 18 anos em todo o país, pouco mais de 10% da população. De acordo com o Centro de Investigação e Formação da República Argentina, ligado à Central de Trabalhadores da Argentina (CTA), entre 2009, início do programa, e 2010, a taxa de pobreza extrema foi de 6,6% para 3,2% – que significa 1,4 milhão de indigentes a menos. A taxa de pobres caiu de 24,8% para 21,6% da população.

“Sou mãe solteira, conseguir trabalho é superdifícil”, conta Berta. “Às vezes não podia comprar nada. Agora compro o básico.” Não é preciso recorrer a um especialista para entender o ciclo criado pelo benefício. A injeção de quase 1 bilhão de pesos ao mês na economia melhora o consumo, a produção, o nível de empregos, de arrecadação de impostos, e permite ao Estado ampliar investimentos sociais.

Em pesquisa divulgada pela UBA na semana seguinte à vitória de Cristina, 53% disseram que a situação econômica pessoal é melhor do que há quatro anos, ante 16% que a veem pior e 32%, igual. Foi de 54,1% a votação conquistada pela presidenta, a maior adesão desde a redemocratização, em 1983, e a maior distância para o segundo colocado, Hermes Binner, governador da província de Santa Fé, que alcançou 16,8%. A vantagem de Cristina para Binner foi de 8.179.394 votos, a maior diferença, em termos absolutos, da história da Argentina.

Estabilidade econômica é um bem precioso em uma nação marcada por traumáticos fracassos. “Começou uma tarefa de reconstrução do país desolado pelas políticas neoliberais”, afirma Pablo Echeverry, integrante de um grêmio de trabalhadores que há décadas espera por um governo peronista – Carlos Menem, o presidente da “década infame”, embora pertencesse ao Partido Justicialista, o mesmo de Perón, de Cristina e Néstor, teve atuação catastrófica.

País normal

Néstor assumiu uma nação despedaçada. Um ano e meio antes a população exigira a saída do presidente Fernando de la Rúa. Em uma semana, cinco outros se sentaram na cadeira presidencial. Ficou Eduardo¬ Duhalde, velho cacique político que se mantinha como o único com alguma chance de calma social. Nas eleições convocadas para 2003, apresentaram-se 21 candidaturas. No primeiro turno, venceu Carlos Menem, que deveria disputar a rodada final com “a marionete de Duhalde”, como insistiam em chamar a Néstor Kirchner. O ex-presidente, ao deparar com uma rejeição superior a 70%, desistiu.

Kirchner assumiu a Casa Rosada com respaldo de apenas 22% do eleitorado. Pior, em um momento em que a maioria via com absoluto descrédito a classe política tradicional – da qual, não nos enganemos, o presidente foi parte. Havia ainda a descrença de que pudesse exercer o governo livre da interferência de Duhalde¬, e o histórico lhe pesava: havia sido o governador da província de Santa Cruz, no extremo sul do continente, insignificante na política argentina.
“Em 2003 votei em Néstor contra Menem”, conta Soledad Allarde, professora do ensino médio, enquanto segura uma grande boneca de Cristina. “Hoje voto em quem quero, e não contra quem não quero.” Soledad passou a militar há cinco anos, quando notou que se sentia representada por uma promessa de campanha assim sintetizada: “Por um país normal”. Pode parecer pouco, mas foi a leitura precisa do momento de uma nação.

O voto na Frente para a Vitória era, enfim, uma manifestação de desejo de não ruptura da democracia representativa, ponto caro a uma sociedade que, em sete anos de ditadura, perdera 30 mil dos seus; e outros tantos em tantos outros episódios, do genocídio de indígenas na Patagônia à repressão policial de dezembro de 2001. “Trata-se, então, de fazer nascer uma Argentina com progresso social, na qual os filhos possam aspirar a uma vida melhor que a dos pais, à base de esforço, capacidade e trabalho”, afirmava Néstor no discurso da posse, em 25 de maio de 2003. Nada mais “normal” que a ascensão calcada no esforço do trabalho.

Uns demônios

O Pinguim prometia ainda fazer as coisas aos poucos, sempre mantendo a par dos fatos a população “sofrida”, vítima maior de uma década de neoliberalismo. Néstor elevava-se aos pré-requisitos peronistas, assumindo-se um gradualista, seguidor da ordem, sem mudanças bruscas. E pragmático: surge o problema, resolva-se, sempre que possível pelo caminho melhor às camadas mais baixas. “A única verdade é a realidade”, afirmava, retomando outra máxima de Perón.

Na ocasião, a pobreza atingia 51,7% da população da Grande Buenos Aires, e 25,2% estavam na miséria. No primeiro semestre de 2011 eram, respectivamente, 8,2% e 2,4%. O desemprego, somado à desocupação (itens que na Argentina têm definições diferentes), era de 31,6% em 2002, ante 16,7% neste ano. A dívida externa alcançava 150% do Produto Interno Bruto, hoje corresponde a 37,2%.

A dependência em relação ao Fundo Monetário Internacional (FMI) era tamanha que no governo de De la Rúa cogitou-se colocar um representante da instituição dentro do Ministério da Economia. “O Fundo estava contra quase tudo o que fazia o governo, desde aumentar os salários até ampliar a cobertura dos aposentados”, recorda Felisa Miceli, presidenta do Banco da Nação no começo do governo de Néstor e ministra da Economia entre 2005 e 2007. “Éramos uns demônios, o que a mim divertia muito.” Para ela, Cristina acertou ao manter a linha de desendividamento e de superávit fiscal, sem entrar em novos créditos internacionais, o que agora vai lhe permitir pensar soluções de longo prazo.

Maria Rosa: “Antes esperávamos o fim da feira para comer as sobras” (©Pablo Busti)

Maria Rosa Castillo, moradora da Grande Buenos Aires, descreve  diferenças entre estes primeiros anos de século 21 e os últimos do século passado. “Lembro no governo de Menem que as pessoas esperavam o fim da feira, aqui perto, para comer o que sobrava no chão. Os trens iam para a capital vazios. Hoje estão cheios.” Aos 51, Maria Rosa é uma das jovens de La Cámpora. Entrou na organização há um ano, por incentivo da filha, que resolveu ser militante após a inesperada morte de Néstor.

O episódio foi aglutinador das forças sociais argentinas, mas alguns o empregaram como forma de desmerecer o voto em Cristina. Antes, Néstor era o malévolo articulador de políticas clientelistas e Cristina uma débil administradora a serviço dos interesses do marido. Ledo engano o de quem viu na morte a pá de cal no kirchnerismo. A presidenta assumiu o papel de fortaleza, reuniu os setores afins a seu governo, tomou o comando do Partido Justicialista e conduziu o processo eleitoral exitoso no qual, diga-se, valeu-se da tragédia pessoal, em discursos e em inserções publicitárias.

Em tempos de internet, vale a pena colocar lado a lado os áudios dos discursos de Eva Perón e de Cristina. Embora o conteúdo das falas de Evita seja mais direcionado ao confronto, Cristina não deixa de dar estocadas, e retoma com força o estilo peronista do sofrimento, do governante a quem atrapalham forças maiores, do materno protetor de uma população golpeada por oligarcas. A referência constante ao “povo sofrido” e a transformação do papel simbólico da Praça de Maio, de ponto de repressão em local de encontro e celebração de conquistas, são parte do pacote. “Recordo essa praça em momentos de adversidade, e agora me emociona a juventude que compreendeu que esse é um governo que trabalha pelo presente, e muito mais pelo futuro”, discursou a presidenta a uma praça repleta, após a vitória.

Atílio Borón, professor do Programa Latino-Americano de Educação a Distância em Ciências Sociais e pensador marxista, considera um fenômeno importante a ser observado, desde a morte do presidente, a emergência da juventude como eixo de sustentação política de Cristina, dividindo espaço com sindicalistas, coluna vertebral do peronismo clássico. “Ela soube capitalizar isso muito bem, facilitada pela burrice fenomenal dos opositores.”

Desorientados

Rosa está perdida em Buenos Aires. Falta pouco para o fechamento das urnas, e ela ainda não se decidiu. “Não encontro alguém que me represente. Voto neles, e o que dão a mim?” Síndica de um prédio, Rosa considera-se afetada pelas políticas do atual governo, em especial o Benefício Universal por Filho, que faz com que “um pobre” sem trabalho e com cinco filhos receba o mesmo que ela. “Preciso trabalhar para ganhar um salário e para pagar os planos sociais dos outros.” Não quer ser fotografada nem dizer o sobrenome. Está atrasada, é melhor deixar que se vá.

Em 2009, a derrota nas eleições legislativas colocou o governo contra as cordas. Antes havia tido início a crise com agricultores por conta das taxas cobradas sobre as exportações do setor, que cresce desde 2003, em meio à alta global dos preços de commodities. A crise levou a desgastes, e Cristina perdeu a maioria. Antes de assumirem os novos deputados e senadores, no entanto, o Congresso aprovou as reestatizações da previdência e da companhia Aerolíneas Argentinas, a reforma política e a Lei de Meios de Comunicação. “Desconcertou a oposição. Entre a vitória eleitoral e a posse, em dezembro, haviam encontrado um panorama completamente mudado, e o poder que supunham ter conquistado nas eleições se desfazia”, diz Reynoso, da Flacso.

Na campanha, a falta de projetos da oposição deu a tônica. Acabar o Benefício Universal por Filho? Conceder nova anistia aos repressores? Mexer na Lei de Meios e devolver o poder ao grupo Clarín? Tímidos em se posicionar sobre questões-chave, os opositores dividiram-se entre os que fizeram campanha pensando em 2015 e os que assumiram o papel do caricato. Não por acaso, a poucos dias das eleições 63,5% dos entrevistados não encontravam alternativas na oposição.

O governador de Santa Fé, Hermes Binner, salvou-se e tenta projetar-se para o futuro. O estudante universitário Gabriel Picone¬ viu nele possibilidade de demonstrar insatisfação com a manutenção, pelo kirchnerismo, de velhas práticas políticas argentinas, como os caciques locais e certos episódios de corrupção, o que não o impede de reconhecer as boas práticas do governo. “Há dez anos estávamos no meio do nada, mortos, e eles de alguma maneira encaminharam o país a uma direção positiva.”

“Aprofundar o modelo” foi a máxima repetida durante a campanha vitoriosa, seja lá o que isso signifique. Saúde, educação, violência e habitação são apontados pela sociedade como as principais pendências. Na área econômica, alicerce para dar-lhes suporte, há preocupação com a crise que afeta Estados Unidos e União Europeia – se abalar a China, chegará aqui e respingará lá.

Para uma proteção de longo prazo, é fundamental diminuir a dependência em relação à soja, que responde por 23% das exportações e ocupa quase 60% da área total plantada. Os efeitos são complexos: menos produção das culturas tradicionais argentinas, ou seja, alimentos e pecuária, empurrando para cima a inflação, outra grande pendência.

Nesse caso, a pressão sobre os preços provém também do aumento da demanda. Com o crescimento econômico e a redução do desemprego, as indústrias estão próximas de operar com 90% da capacidade instalada, mas o investimento em maquinário para aumentar a produção está no mesmo nível de 2005, e abaixo do fim da década de 1990, quando a falsa estabilidade da era Menem levou empresários às compras. “Eles têm muito medo ainda de investir e acabar perdendo, como nos anos 1990, e isso na vida de um empresário não é muito tempo”, analisa Felisa Miceli.

O quase-jovem Martín D’Alessandro tem a esperança de que Cristina consiga “aprofundar o modelo”, garantindo a retomada de uma industrialização que, para ele, teve início com “o General”, mas parou com o golpe de 1976. Ele acredita que o segredo é continuar com o projeto atual¬ e, com o tempo, ainda mais gente vai se reconhecer representada pela presidenta. “Conheço casos em que são peronistas e não estão sabendo ainda, mas a maioria da população está se dando conta, e é por isso que ganhamos por larga vantagem.” Martín não é de esperar sentado. E Cristina vai por quatro anos mais.