Luzes no passado

O cinema de Tata Amaral, a grande premiada do Festival de Brasília

Tata foi a grande premiada do Festival de Brasília (foto: Fábio Pozzebom/Abr)

A paixão pela arte cinematográfica, do Brasil e do mundo, fica clara diante dos quadros espalhados pelas paredes da produtora Tangerina Entretenimento, sociedade mantida pela cineasta paulistana Márcia Lellis de Souza Amaral, ou melhor, Tata Amaral, com a filha Caru Alves de Souza. Em um apartamento de dois cômodos de um pequeno prédio na Vila Madalena, na zona oeste de São Paulo, veem-se cartazes de vários de seus filmes com os de obras de autores como o mineiro Humberto Mauro. Basta conversar alguns minutos com a diretora para confirmar que somente tanto amor por um ofício justifica esperar nove anos para concretizar um novo longa-metragem, mesmo já tendo outros três no currículo e sendo uma profissional reconhecida e elogiada.

Esse foi o tempo consumido na produção de Hoje, melhor filme no Festival de Brasília em outubro e com estreia nos cinemas prevista para o primeiro semestre do ano que vem. Além do prêmio principal, Hoje venceu os de direção (Tata Amaral), roteiro (Jean-Claude Bernardet, Rubens Rewald e Felipe Sholl), direção de arte (Vera Hamburguer), fotografia (Jacob Solitrenick) e atriz (Denise Fraga).

Nós nunca punimos nossos torturadores. Mas se a gente não trata da tortura, não identifica e não dá uma sentença para as pessoas que torturaram, é conivente com uma sociedade que tortura

E por que tanto tempo? “Há um problema muito difícil de administrar no financiamento de filmes no Brasil, atualmente, que são as parcelas. Eu ganho um edital e capto dinheiro em outros lugares, num pinga-pinga que leva anos. Filmei com metade do meu orçamento porque chegou uma hora em que achei que teria de ser desse modo”, explica Tata. “E tudo isso porque pressupõem que você vai levar o dinheiro e, a qualquer momento, pode não cumprir o compromisso de entregar o filme. O fato de eu ter vários filmes, um deles vendido para a televisão, que rendeu uma série, não tornou mais fácil captar do que no primeiro.”

Hoje conta a história de uma ex-militante política que compra um apartamento com o dinheiro da indenização recebida do Estado pelo desaparecimento do marido durante a ditadura. Antes de tocar a vida adiante, porém, ela precisa revisitar o passado. “O filme toma partido a favor da justiça e da verdade. Expressa uma visão que a gente tem do Brasil, em que as pessoas querem esconder o passado porque não aguentam olhar para ele”, afirma a cineasta. “Nós nunca punimos nossos torturadores. Mas se a gente não trata da tortura, não identifica e não dá uma sentença para as pessoas que torturaram, é conivente com uma sociedade que tortura. Em todas as cadeias se tortura. Todas as polícias e todos os bandidos torturam até hoje. Isso acontece na nossa sociedade e, assim como a corrupção, para que seja erradicada no país, tem de ser punida e, para isso, ser identificada.”

Coerência

Cena do filme Hoje: passado e impunidade (foto: divulgação)

Essa defesa é condizente com o perfil da jovem estudante do Colégio Equipe, fundado nos anos 1970 por professores de um cursinho pré-vestibular organizado pelo Grêmio da Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo (USP). A escola foi durante muito tempo espaço de resistência democrática nos anos do regime militar. Tata foi contemporânea dos meninos do Titãs e frequentava as festas organizadas pelo animador do centro acadêmico, Serginho Groisman.

Ali começou a fazer sua militância política e integrou a organização de esquerda Liberdade e Luta, a Libelu – de tendência trotskista. Também participou da reconstrução da União Nacional dos Estudantes (UNE) e da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes). “O trotskismo tinha uma militância em prol da igualdade e uma visão da arte como espaço de liberdade de experimentação.

E isso tinha muito a ver com o que eu acreditava. Literatura e Revolução foi um livro de cabeceira durante anos, pois é onde Trotski expõe a tese de que a arte não pode estar a serviço de uma mentalidade, um partido ou do Estado.”O primeiro contato mais efetivo de Tata Amaral com a arte foi no curso de Cinema da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), do qual participou como ouvinte. Na época, 1982, fazia o supletivo para concluir o ensino médio – já que por falta desse diploma não pôde desfrutar da aprovação precoce nos vestibulares para Jornalismo e História, ambos na USP. “Em um ano e meio que fiquei lá na ECA, tinha muita greve e professor que não podia dar aula, outros que não eram muito bons na parte executiva e mais alguns que apareciam pouco porque estavam filmando. Mas estar lá e ter projetos me fez aprender uma profissão”, lembra.

Na ECA, Tata Amaral conheceu o futuro romancista Fernando Bonassi, com quem estabeleceu longa parceria, iniciada em Um Céu de Estrelas, adaptação para o cinema do segundo livro dele, Prova Contrária. Lançado em 1997, o filme foi premiado nos festivais de Brasília, Boston (Estados Unidos), Trieste (Itália), Créteil (França) e Havana (Cuba). “Sempre admirei muito o Bonassi pela narrativa forte e por trabalhar com uma situação única elevada ao máximo. Uma mulher rompe com o namorado porque quer viajar, e ele entra na casa dela para sequestrá-la. É o que o cineasta Carlos Reichenbach chama de ‘fiapo de história’.” Apontado muitas vezes como um dos melhores filmes brasileiros daquela década, Um Céu de Estrelas apresenta a narrativa reflexiva, o som como elemento narrativo e o espaço fechado, que a diretora retoma em Hoje.

Antes de estrear com longa-metragem, Tata Amaral foi produtora e assistente de produção da cineasta Ana Muylaert e realizou três curtas-metragens com o então marido dela, Francisco César Filho: Queremos as Ondas do Ar, Poema: Cidade e Mude Seu Dial. Juntos, eles também tiveram a produtora Anhangabaú. “Para mim, os curtas foram importantes porque essa era a única forma de financiamento de ideias cinematográficas na primeira metade dos anos 1980. Naquela época, cinema não era nem profissão. Mulher dizer que queria ser cineasta era igual a dizer que queria ser marciana. Então foi incrível fazê-los, e eu os faço até hoje”, brinca.

Espaço interior

Depois de Um Céu de Estrelas, Tata Amaral filmou Através da Janela, de 2000. O filme conta a história de uma enfermeira aposentada, interpretada por Laura Cardoso, e seu filho de 24 anos, com quem mora, que passa a manifestar mudanças de comportamento. Mais uma vez, a importância dos espaços internos na composição da história aparece. “Eu lido com o espaço dramaturgicamente, como se fosse um personagem. Tenho sempre a preocupação de apresentá-lo pouco a pouco, criando histórias e códigos para ele”, explica a diretora.
“Em Antônia, por exemplo, além de trazer a Brasilândia – bairro da zona norte paulistana – para a tela do cinema, havia a intenção de romper com o paradigma de que sempre que se entra na periferia é para mostrar um lugar ameaçador. Ali é a casa das meninas, onde elas tiram o sapato e começam a conversar informalmente”, diz Tata, para quem a música também tem função na dramaturgia no filme, uma vez que os raps criados pelas protagonistas narram a história.

O longa-metragem Antonia também virou minissérie de TV (foto: divulgação)

Realizado pela produtora Coração da Selva, que Tata Amaral manteve com Roberto Moreira e Geórgia Costa Araújo, Antônia envolve a trajetória de quatro garotas – Preta, Barbarah, Mayah e Lena, interpretadas respectivamente por Negra Li, Leila Moreno, Quelynah e Cindy – de um conjunto musical batizado de Antônia. Empresariadas pelo personagem interpretado por Thaíde, passam a cantar rap, soul, MPB e pop em bares e festas de classe média.
O filme rendeu uma série de dez capítulos exibidos pela TV Globo, entre 2006 e 2007, realizada pela produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles. “Eu acho que urge a gente se dedicar à produção independente para televisão no Brasil. É um instrumento poderoso de divulgação de ideias e conceitos. Foi muito importante Antônia ter ido para a TV, pois, entre outras coisas, dois conceitos me nortearam para fazer o filme: a mulher negra não ser valorizada como tal e os personagens PPPs (preto pobre da periferia), depositários de tudo o que há de ruim no mundo”, analisa. Em 2007, o seriado foi indicado, nos Estados Unidos, ao prêmio Emmy, considerado o mais importante da televisão. “Eu via filas de meninas brancas de classe média se vestindo como a Negra Li, com flor no cabelo. Ali, a beleza da mulher negra serviu de modelo para as meninas jovens, e muitas Antônias nasceram naquele ano.”

Já durante o longo processo de realização de Hoje, Tata Amaral fez o documentário O Rei do Carimã, que surge durante o enterro da mãe da diretora, em 2007, a partir de um relato feito por um tio. Segundo ele, o pai dela tinha muito dinheiro, mas precisou fugir ao ser responsabilizado injustamente por algo. E Tata também se dedicou à minissérie Trago Comigo, para a TV Cultura e SescTV, que concorreu a quatro prêmios Qualidade Brasil 2009. Nela, o protagonista, um diretor de teatro interpretado por Carlos Alberto Riccelli, não se lembra do passado e une vários jovens que improvisam a partir de pequenas histórias contadas por ele. “Esses três projetos se configuram como trabalhos que têm a mesma estrutura – personagens que tentam iluminar o passado individual ou familiar.”