B.Kucinski: Nas minas de Potosí

Os índios eram atraídos pelos “gatos” da época. Começavam aos 20 anos, aos 35 já estavam atacados de silicose e levavam um pé na bunda

Ilustração crônica (© Vicente)
Viemos a Pulacayo para ver a mais famosa mina de prata do mundo, hoje abandonada: Huanchaca. Antes, atravessamos 800 quilômetros do árido altiplano boliviano, num Toyota 4×4, até as saleiras de Uyuni, uma vasta planície coberta eternamente de sal e gelo. Somos um grupo de cinco brasileiros. Das saleiras até a mina são mais 20 quilômetros.
Um ex-funcionário da mina, hoje guia turístico, nos leva pelas ruelas desertas de Huanchaca, ladeadas de oficinas e casas abandonadas, enquanto nos conta a história espantosa desse lugar, onde milhares e milhares de índios, e depois camponeses também, morreram no decorrer de quase dois séculos para fazer a fortuna de um punhado de aventureiros espanhóis e capitalistas ingleses.
José Hernandez é atarracado e de ombros largos como são os bolivianos, mas de feições mais mestiças do que indígenas. Expressa-se muito bem, com vocabulário rico e preciso. Ele foi professor de História nos bons tempos de Huanchaca.
Numa folha de papel vai listando – vício de professor – datas e fases de sua narrativa. Conta que a mina foi fundada em 1833. No seu apogeu, em 1890, viviam aqui mais de 20 mil pessoas. Havia escolas, grêmios operários, times de futebol, bordéis e o clube de críquete dos engenheiros ingleses. Hoje, na cidade fantasma, restam apenas umas cem famílias.
Daqui, ainda segundo nosso guia, saiu em 1873 a primeira estrada de ferro da Bolívia. A mina tinha fundição e metalurgia. Os índios eram atraídos das comunidades pelos “gatos” da época. Começavam aos 20 anos, aos 35 já estavam atacados de silicose e levavam um pé na bunda. Então vinham outros, famílias inteiras. Assim se iniciou o impressionante esvaziamento das comunas indígenas, hoje quase completo. Era tanta gente que, para dar ocupação às mulheres, montaram aqui a primeira tecelagem de alpaca da Bolívia.
A mina tornou-se um centro natural de organização operária. Com orgulho, marcando e sublinhando duas vezes a data em sua folha de papel, Hernandez enfatiza que aqui se reuniu, em 1946, o primeiro congresso da federação dos trabalhadores mineiros, que aprovou as Tesis de Pulacayo,.
Nenhum de nós sabia o que era isso, embora nos julgássemos politizados. O documento, que depois fui ler na internet, é uma penetrante análise do sistema de exploração social na Bolívia, de sua estrutura de classes e do lugar do país na divisão mundial de trabalho. É apresentado como o mais importante documento da história da luta operária latino-americana.
Tudo o que aconteceu na Bolívia a partir daí, até a revolução que levou Evo Morales e os povos nativos ao poder, foi antevisto pelas Tesis de Pulacayo: a revolução operário-camponesa de 1952, a nacionalização das minas e a reforma agrária, o voto universal, o desmantelamento da oligarquia e do poder militar, o governo nacionalista com participação trotskista e depois comunista. Foi tudo conduzido pelo movimento mineiro organizado em aliança com os camponeses, exatamente como prognosticavam as Tesis de Pulacayo.
Fim do tour. Hernandez encerra seu relato direto e preciso:
“Em 1952 as minas foram nacionalizadas e Pulacayo virou um foco de agitação e formação política; em 1958 veio a Guerra Fria e os americanos mandaram fechar Pulacayo, achando que assim acabavam com os comunistas, mas os comunistas simplesmente se espalharam pelas outras minas. até que nos anos 1980 acabaram os comunistas.”