Nelson triunfou

Trajetória do pai da cultura de rua no Brasil será contada em livro e no cinema neste ano

Do sertão ao hip-hop: Nelson Triunfo no centro de São Paulo (foto: arquivo pessoal)

A atmosfera era alucinante nos “bailes da pesada” cariocas da segunda metade da década de 1970: o jogo de luzes coloridas projetadas freneticamente sobre rostos suados, a execução dos passinhos meticulosamente ensaiados, a caixa de som com o volume no máximo. A massa sonora não deixava ninguém parado. E não havia como não prestar atenção na sequência de espacates e rodopios de um magrelão alto, tampouco na sua incrível cabeleira crespa black power. Virou o Homem Árvore, apelidado por um jovem negrão requebrador, que atendia pelo nome de Tony Tornado. Ali começava a deslanchar a carreira do pai do hip-hop no Brasil, Nelson Triunfo.

O sobrenome acoplado – referência à cidade natal, no interior de Pernambuco – resume bem a trajetória de Nelson Gonçalves Campos Filho, prestes a ser contada em uma biografia e um documentário. Da infância pobre no sertão ao recebimento da mais importante comenda cultural concedida pelo governo federal; da fundação do primeiro grupo de dança black do Nordeste à turnê pela Alemanha encenando uma peça de Bertolt Brecht; das borrachadas da polícia na época da ditadura à criação de um centro cultural de hip-hop voltado aos jovens da periferia de Diadema (SP), Nelson triunfou.

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Superou, ainda, uma das mais arraigadas mazelas do país: o  preconceito. Foi discriminado pelo jeito de ser, por sua arte, por sua origem. “Optei por trabalhar com o social e a dança num país cheio de preconceitos, de racismo”, lembra. “Sofri muito com isso, sofri por causa do meu sotaque. As pessoas adoravam a minha dança, mas quando eu falava achavam feio.”

Quanto à cabeleira, então… Há quase 40 anos protesta contra “uma sociedade que apenas valoriza aparências”. Uma vez, já em São Paulo, viu nos classificados uma vaga de emprego que exigia “boa aparência” como requisito. Foi lá, só de birra. “Deixei o cabelão armado. Quando o entrevistador me viu, levou aquele susto”, relembra. “Estudei contabilidade, fiz datilografia, mas eu ia trabalhar em que com aquele cabelão?”, pondera em seguida, rindo.

“Os caras não queriam saber da minha potencialidade como cidadão, queriam alguém de cabelinho curto e gravatinha. Isso nunca, né, cara! Então tive de desenvolver meu próprio trabalho, e sobrevivi. Segui um pouco aquela doutrina: se você não tem um caminho, construa.”

O de Nelson Triunfo foi essencialmente construído nas artes, especificamente na música, com todas as adversidades do meio em que foi criado. Aos 3 anos, ganhou do pai um tamborzinho improvisado com uma lata vazia de querosene e duas baquetas feitas de galhos de árvore. “E saía batucando pelo meio da roça, para espantar os pássaros que atacavam a plantação”, narra o jornalista Gilberto Yoshinaga, autor da biografia Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop, em fase de finalização.

O pai, que em 2011 completou 101 anos, sempre foi um dos principais incentivadores. “Eu cresci com ele tocando sanfona e me levando para os forrós de São João”, lembra Nelson, antes de tudo um aficionado por zabumba e maracatu. E foi dessa fusão com a black music que nasceu seu estilo único: uma mistura de Luiz Gonzaga com James Brown, como ele mesmo define.

Dançarino invertebrado

 
Com o grupo Funk&Cia, na Praça da Sé, em 1984 (foto: © arquivo pessoal)

Anos mais tarde, com James Brown, mestre da black music, viveu uma das maiores alegrias e um dos maiores desgostos de sua carreira: ganhou uma capa do próprio, mas deixou-a num camarim e acabou furtada. Tirando isso, mal podia acreditar que tinha virado brother do ídolo que ouvira pela primeira vez em 1970, nos bailes de Paulo Afonso. Havia se mudado para o interior baiano para estudar e trabalhar nas obras da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf).

Com dois amigos, montou a primeira equipe de dança de que se tem notícia no Nordeste. Arrasaram no primeiro baile. Ouviu uma fã dizer que pareciam “não ter ossos”, gostou da ideia e batizou o grupo de Os Invertebrados. Eram tempos difíceis, porém. “Quem vê hoje acha bonito. Mas já passei até fome, cara”, conta.

As coisas só foram melhorar em São Paulo, para onde se mudou no final da década de 1970. Era figurinha carimbada nos bailes da Chic Show, no Palmeiras, mas queria ir além com a sua arte. No cruzamento da Dom José de Barros com a 24 de Maio, no centro da cidade, deu os primeiros passos da dança de rua no Brasil. Era caçoado, jogavam bitucas de cigarro em seu cabelo, chamavam-no de vagabundo. Cansou de apanhar e ir parar na delegacia, suspeito de “subversão” pelos milicos. Mas nunca desistiu: “Era como se fosse uma missão minha, eu não tinha outra opção”.

Quando o break estourou na mídia, no começo da década de 1980, produtores e jornalistas já sabiam onde encontrar “o” cara para o assunto. Assim, Nelson passou a frequentar programas de auditório. Tão insólita figura chamou a atenção do diretor de cinema André Klotzel, que o convidou para uma participação em A Marvada Carne (1986), ao lado de duas iniciantes: Fernanda Torres e Regina Casé. 

Também fez teatro. Em 2006, o diretor alemão Frank Castorf se encantou ao ver apresentações de Nelson Triunfo em Berlim – ele era um dos representantes brasileiros num evento multicultural que reunia artistas dos países que participavam da Copa do Mundo. Um ano depois, estava de volta à Alemanha, em turnê com a peça Na Selva das Cidades, de Brecht.

Em 2008, veio o reconhecimento institucional: recebeu do governo federal a Ordem do Mérito Cultural. No mundo das artes, o reconhecimento público virá em Triunfo, documentário também em fase final que trará a trajetória de Nelsão a partir de depoimentos de personalidades como o ator Sergio Mamberti, o produtor João Marcelo Bôscoli, a cantora Sandra de Sá, os rappers Thaíde e  Emicida e os grafiteiros Osgêmeos, entre outros. “É uma história que merece um longa-metragem”, diz Maria Lucia Angeli Ramos, produtora da Canal Aberto, responsável pelo filme. 

Aos 56 anos, vivendo com a mulher e dois filhos numa casa simples na periferia de São Paulo, o protagonista parece não ter dimensão da importância da própria história. Ou tem, mas está noutra sintonia e nem liga muito para isso. Prefere dançar.