A queda do ponto

As instruções são claras e peremptórias: na queda, considerar a hipótese pior

Lá fora segue a vida inalterada: senhoras vão às compras, operários trabalham, crianças brincam, mendigos suplicam, namorados namoram. Ali dentro, no pequeno apartamento quarto e sala instaura-se no casal o pânico. Fremem de ambos as mãos, agora incertas. O diálogo é assustado, os olhos evitam se olhar. Transpiram, exalando desgraça. A queda do ponto naquela manhã só se explica pela delação. Há um informante entre eles, um traidor ou um agente infiltrado, alguém muito próximo a eles dois, entre os poucos que restaram. Passaram-se apenas duas horas; as instruções são claras e peremptórias. Na queda do ponto considerar a hipótese pior, o companheiro não resistirá à tortura e entregará alguma informação. 

O casal possui documentos legais, empregos estáveis, famílias, amigos, pais e mães e irmãos. A metade não clandestina de suas vidas duplas está intacta. Basta abandonar a metade secreta, deletar – como se diria hoje, usando esse neologismo tão expressivo – não por covardia, por sabedoria. Para se preservar. Sobreviver na derrota seria, isso sim, uma vitória. Mesmo não sendo possível deletar, havia sempre o recurso de se refugiar num buraco qualquer, num sítio, numa embaixada, no arcebispado. Desde que assumissem a derrota. A chave da solução era assumir a derrota, dar a luta por encerrada.  Mas ambos perseveram. Não agem com lucidez. Não os guia a lógica da luta política, e sim outras lógicas, quem sabe a da culpa, a da solidariedade, ou do desespero.

Numa sacola maior, de lona, despejam documentos arduamente elaborados de denúncia, os que consideram mais valiosos. A lista dos 232 torturadores, que jamais serão punidos, mesmo décadas depois de fartamente divulgada, mesmo décadas após o fim da ditadura; os manifestos dos presos políticos, o dossiê das torturas, o relatório prometido à Anistia Internacional. E também a pasta de recortes de jornais sobre os hábitos e rotinas de empresários apoiadores dos centros de tortura. Não sabem que, exceto o já justiçado, todos eles morrerão de morte natural, rodeados de filhos, netos e amigos, homenageados seus nomes em placas de rua.

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A cadela
Com o casal tudo deu certo, do jeito que o chefe gosta, sem deixar rasto, sem testemunha, nada, serviço limpo…. quando os dois se deram conta, já estavam dentro do carro e de saco na cabeça; só a cadela latiu, mas já era tarde. Agora essa maldita cadela, filha da puta, não para de incomodar. Não tínhamos pensado na cadela. O Lima levantou tudo – o danado, até o nome da cachorrinha, Baleia, nome besta para uma cadelinha miúda e peluda pra caralho.

Eu não entendo o chefe, durão, mas quando falo que sobrou a cadela, que é perigoso, faz que não escuta… O pior foi ontem, quanto eu falei em sacrificar a cadela, levei o maior esporro, me chamou de desumano, de covarde, que quem maltrata cachorro é covarde; quase falei pra ele: e quem mata esses estudantes coitados, que tem pai e mãe, que já estão presos, e ainda esquarteja, some com os pedaços, não deixa nada, é o quê? Ainda bem que não falei. Não sei onde estava com a cabeça. É essa maldita cadela filha da puta que não me dá sossego, o chefe só vem aqui quando chega algum preso novo. Carne nova – ele fala – arranca o que quer, manda liquidar e vai embora. Mas nós ficamos aqui o tempo todo, com essa cadela nos atormentando, mas eu já sei o que vou fazer: dou mais dois dias, se ela não morrer sozinha, boto veneno na água, boto o veneno que demos àquele ex-deputado federal.

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