Celebração da esperança

A cada 5 anos gente de todas as partes do Brasil e do mundo enfrenta longa jornada para uma romaria no Araguaia, em memória de quem deu a vida por uma causa

Louvação a uma causa: “Comungar é tornar-se um perigo. Viemos pra incomodar” (Fotos desta reportagem: Douglas Mansur ©)

Não é festa, está longe de ser show. Mas leva milhares de pessoas a encarar 30, 35, 40 horas de estrada Brasil adentro para visitar Ribeirão Cascalheira (MT), que a cada cinco anos é sede da Romaria dos Mártires da Caminhada. O município de 8.800 habitantes, no tórrido Araguaia, se vira como pode para abrigar os visitantes. Escolas e casas são colocadas à disposição de romeiros vindos de várias partes do Brasil, América do Sul, Europa. É uma celebração religiosa incomum à memória de quem caiu na luta por uma causa – como Chico Mendes, Dorothy Stang, Galdino Jesus dos Santos, Vladimir Herzog, Antônio Conselheiro.

Há grande preocupação com companheiros de América Latina no Santuário dos Mártires, construção simples, com um mural que reverencia os trabalhadores. Fotos lembram Enrique Angelelli, bispo argentino vitimado pela ditadura da década de 1970, Florinda Muñoz, camponesa da República Dominicana, e Frank País, revolucionário cubano.

D. Pedro Casaldáliga (foto: Douglas Mansur)
Símbolo da resistência. Aos 83 anos, dom Pedro Casaldáliga é uma espécie de mártir vivo para os povos dessa região de 150 mil quilômetros quadrados, situada no nordeste de um dos estados mais marcados pelo desmatamento

O mártir local é o padre João Bosco Burnier. Em 1976, Burnier e o então bispo da Prelazia de São Félix do Araguaia, dom Pedro Casaldáliga, retornavam de um encontro com indígenas quando foram informados de que duas mulheres estavam sendo torturadas. Uma irmã e uma nora de um sitiante que atirara contra um soldado em defesa de seu filho. Mais um conflito decorrente da disputa pela terra – isso em um momento em que o Araguaia se preparava para entrar na memória brasileira por causa do massacre aos grupos armados de resistência ao regime ditatorial.

Quando Burnier foi à delegacia cobrar a liberdade das mulheres, foi chamado de “comunista” e “subversivo”, acabou baleado e morreu. Dez anos depois, tem início a romaria, que em julho deste ano celebrou ainda os 40 anos da Prelazia de São Félix do Araguaia, um marco na luta contra o coronelismo e a violência no campo.

Quem vem para tão longe professa a fé em uma outra Igreja Católica, livre de amarras hierárquicas, aberta à voz da sociedade e a temas como um mundo sem desigualdades – e, por isso, sabe que rezar é bom, mas é preciso ação. “Devemos renovar nosso compromisso de seguir em caminhada rejeitando tudo quanto seja mentira, corrupção, morte”, aconselhou Casaldáliga, ou Pedro, como prefere. Aos 83 anos, o bispo é um mártir vivo para os povos dessa região de 150 mil quilômetros quadrados, no nordeste de um dos estados mais marcados pelo desmatamento – e pela violência originada deste.

Durante quase quatro décadas, utilizou sua força moral e política contra a violência dos conflitos agrários. A política da ditadura de ocupação do interior acirrou os ânimos na década de 1970, e Pedro, recém-chegado, se deu conta de que era preciso pulso firme para resistir. “Era aquele coronelismo”, lembra Meci Martins Lima, moradora de Porto Alegre do Norte e que chegou à região ainda criança. O bispo estimulou a formação de uma associação de moradores para enfrentar as pressões. Os coronéis não queriam a criação de um novo município para não perder poder.

A situação melhorou, mas segue longe do ideal. Na romaria, os povos dessa e de outras regiões externam problemas, buscam apoio e oferecem um ombro amigo. “Mesmo que as pessoas não se conheçam, todo mundo se vê como irmãos”, diz Meci. A celebração dura dois dias, nos quais todos na cidade fazem as refeições na praça central. Em enormes panelas preparam o alimento do dia desde as primeiras horas da manhã. Os romeiros trazem os próprios pratos, talheres e copos, para evitar que a pequena cidade sofra um colapso. Os ônibus começam a chegar em massa na sexta-feira, 15 de julho. Nas primeiras horas do sábado, aumenta o trabalho na tenda de acolhida, que dá as boas-vindas e encaminha os fiéis para os alojamentos.

Todos tornam a se encontrar na refeição da tarde de sábado, e em seguida partem em procissão para o ato de abertura da romaria. É noite quando se acende uma vela, que acende outra, que acende outra, e logo são milhares a iluminar o caminho de cinco quilômetros entre a praça central e o Santuário dos Mártires.

Algumas vozes, uma voz feminina bem afinada, entoam cantos que, de novo, mostram que essa não é uma romaria de louvação a um santo, mas a uma causa. “Comungar é tornar-se um perigo/ Viemos pra incomodar/ Com a fé e união/ nossos passos um dia vão chegar” e “Virá o dia em que todos/ Ao levantar a vista/ Veremos nesta terra/ Reinar a liberdade”, avisam os fiéis, que ao fim da caminhada fazem denúncias sobre deslocamento forçado de populações e ameaças aos direitos indígenas.

Poucas horas depois, ao amanhecer, todos estão novamente reunidos para o café comunitário e a celebração que encerra o encontro. Mais uma vez, Pedro emociona os fiéis ao afirmar que essa é sua última romaria em vida. “O outro mundo possível somos nós. Podem nos tirar tudo, menos a esperança”, afirma. Em cinco anos, muitos voltarão a empreender viagem interior adentro.

>> Leia mais: Especial sobre a Romaria dos Mártires – Rede Brasil Atual

Unidos pela terra

Romaria 2011: Vanderlei  e Socorro (foto: Douglas Mansur)

Socorro Lima e Vanderlei Moreira não perdem a viagem. Aproveitaram a ida a Ribeirão Cascalheira, o clima de confraternização e os amigos reunidos para celebrar a união. Casaram-se, com padre e tudo, no Santuário dos Mártires.

Entraram na igreja cantando, no gogó mesmo, sem acompanhamento, coral, teclado ou o que o valha. Ela, terna, olhando para ele. Ele, nervoso, olhando para todos os lados. No altar, nada de alianças: bandeiras vermelhas para simbolizar a luta pela reforma agrária e a militância no MST. Após o “que sejam felizes para sempre”, cantoria: Tocando em Frente, de Almir Sater e Renato Teixeira, e Casinha Branca, de Elpídio dos Santos, esta para lembrar que a caravana casamenteira veio de Jacareí, no Vale do Paraíba, interior paulista. Ele, tímido, saiu contente, falando baixinho. Ela, expansiva, gritava “viva o amor, viva a luta”.