Medo na floresta

Luta contra crimes sem punição na Amazônia esbarra em ineficiência histórica

Claudelice, aos prantos, foge com a Força Nacional de Segurança da terra onde assassinos mandam. Para Maria e José, proteção tardou (foto: Felipe Milanez)

Protegida pela escuridão da madrugada, a agricultora Claudelice Silva dos Santos se deixou levar por um grupo de agentes da Força Nacional de Segurança (FNS). Na esperança de salvar a própria vida e a de sua família, abriu mão de sua história e do local onde vivia há muitos anos, o assentamento Praialta-Piranheira, no município de Nova Ipixuna (PA). No mesmo local moravam o irmão e a cunhada de Claudelice – os ambientalistas José Cláudio Ribeiro e Maria do Espírito Santo –, ambos assassinados no dia 24 de maio, em um crime ainda não solucionado.

A “fuga” de Claudelice, ocorrida em 19 de junho, menos de um mês após o assassinato de seus familiares, é um retrato da insegurança vivida na região amazônica por aqueles que ousam desafiar o poder armado do capital que devasta a floresta em busca de madeira e especulação imobiliária. Expulsos pelo medo, também deixaram o assentamento, com os homens da FNS, as famílias dos agricultores Francisco Martins e Francisco Tadeu da Silva. Ao todo, nove pessoas (quatro adultos e cinco crianças) foram escoltadas de Nova Ipixuna até o município de Marabá, onde permanecerão protegidas pela polícia. 

Segundo o Ministério da Justiça, a escolta foi realizada por medida de segurança, pois os agricultores eram ameaçados de morte. A ação deixou claro que os assassinos de Maria e José Cláudio ainda se sentem à vontade para ameaçar outras vítimas e que, em que pesem as boas intenções, a força-tarefa não tem segurança sequer para executar à luz do dia o deslocamento de ameaçados. Organizada em torno da Operação Defesa da Vida, a ação é integrada por agentes do Exército, Polícia Federal e Polícia Rodoviária Federal, além da FNS, mas seu efetivo, não divulgado oficialmente, é insuficiente diante da imensidão dos conflitos sociais amazônicos.

De acordo com o Ministério da Justiça, a Operação Defesa da Vida ocorre em parceria com a estrutura de segurança dos estados do Pará, Amazonas e Rondônia, com o apoio do Ministério Público e do Conselho Nacional de Justiça. Foi anunciada pelo ministro José Eduardo Cardozo no dia 2 de junho, após reunião que contou com a presença da presidenta Dilma Rousseff e dos ministros Nélson Jobim (Defesa), Maria do Rosário (Direitos Humanos) e Afonso Florence (Desenvolvimento Agrário), além dos governadores Simão Jatene (PA), Omar Aziz (AM) e Confúcio Moura (RO).

“O objetivo do governo é evitar novos homicídios e apurar os que já aconteceram. Os inquéritos precisam ser rápidos e as ações judiciais, eficientes”, disse o ministro Cardozo. Um mês após o anúncio da operação, no entanto, os resultados são modestos, a julgar pela ausência de notícias sobre prisões ou indiciamentos. A divulgação do primeiro balanço oficial, prevista para o fim de julho, será feita pelo Ministério da Justiça: “Já temos alguns dados, mas não podemos dizer nada antes de receber relatórios dos ministérios da Defesa e  da Agricultura, parceiros na operação. Será preciso reunir tudo antes de comunicar ao público”, afirma um integrante da Secretaria Nacional de Segurança Pública, que prefere não ter o nome publicado.

José Cláudio e Maria (foto: Felipe Milanez)

Impunidade crescente

Um estudo divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) semanas antes da morte do casal de ambientalistas em Nova Ipixuna revela que em 2010 foram registrados 34 assassinatos de trabalhadores rurais no Brasil, 30% a mais que no ano anterior. Trinta desses crimes ocorreram em conflitos pela terra (outros dois por fontes de água). A região Norte aparece com 21 assassinatos em 2010, seguida por Nordeste (12) e Sudeste (um).

Outros dados, divulgados pelo Ministério Público, informam que o estado contabiliza nos últimos dez anos 219 assassinatos no campo. Pior: apenas quatro condenações aconteceram em decorrência das investigações sobre esses crimes e em 37 casos não foi sequer aberto inquérito para apurar os autores e mandantes dos homicídios.

O emblema maior da impunidade no Pará é o massacre de Eldorado dos Carajás, que completou 15 anos sem que ninguém esteja preso como responsável pela morte de 19 sem-terra. Únicos condenados como organizadores da chacina em um julgamento realizado em 2002, o coronel Mário Colares Pantoja (228 anos de prisão) e o major José Maria Pereira Oliveira (154) até hoje recorrem em liberdade. Como exceção que confirma a regra, o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, apontado como um dos mandantes do assassinato da missionária norte-americana Dorothy Stang, em 2005, permanece preso.

Paraense, a secretária nacional de Meio Ambiente da CUT, Carmen Foro, afirma que os crimes na Amazônia não cessarão enquanto não houver uma política especial de segurança para a região: “Faz décadas que denunciamos. Cada vez que é assassinada uma liderança mais conhecida, acontece uma repercussão nacional ou mundial, a mídia cobre, e um mês depois parece que tudo cai no esquecimento novamente”, diz. Segundo Carmen, “a ausência do Estado continua” na Amazônia.

“É um caos. O Incra não funciona, não existem estrutura nas áreas de assentamento nem licenciamento para uma maior produção, as estradas são precárias, há disputa com madeireiros”, enumera a dirigente cutista, em reportagem levada ao ar pelo programa Seu Jornal, da TVT, em 8 de junho. “A lista da impunidade é muito grande. Há muito poucos mandantes ou executores colocados atrás das grades.” 

Na maioria das vezes, apontar culpados na Amazônia significa assinar o próprio atestado de óbito, fato conhecido internacionalmente. Em artigo publicado recentemente no  jornal The New Yorker, o jornalista californiano Jon Lee Anderson conta que no velório de José Cláudio e Maria “as pessoas tinham medo até de chorar”.

Políticas públicas

Uma investigação in loco e feita com discrição, no entanto, pode proporcionar aos investigadores caminhos a percorrer. 

Reportagem apurada em Marabá e publicada na revista CartaCapital, por exemplo, revela que as ameaças contra o casal de ambientalistas de Nova Ipixuna se intensificaram depois de os dois terem sido excluídos da Associação dos Pequenos Produtores do Projeto Agroextrativista Praialta-Piranheira (Apaep), da qual eram diretores: “José e Maria acusavam a Apaep de ter se unido a carvoeiros e madeireiros ilegais”, relata o jornalista Felipe Milanez.

Outras frentes de investigação são sugeridas. Uma delas diz respeito a uma lista com os principais madeireiros ilegais da região, elaborada por José Cláudio em 2007, que traz a família Aguilar Tedesco como a principal responsável pela devastação daquela parte da floresta. Após a denúncia feita pelo ambientalista assassinado, as empresas Tedesco Madeiras e Madeireira Eunápolis, propriedades da família, foram multadas em cerca de R$ 820 mil: “Foi uma mudança radical e um baque em suas finanças”, diz a reportagem, ressaltando que “nos seis anos anteriores, as autuações das empresas do grupo não haviam somado R$ 10 mil”.

Na tentativa de agilizar a proteção de quem vive em meio a esse ambiente de terra sem lei, a CPT levou à ministra Maria do Rosário uma lista com o nome de 30 lideranças rurais seriamente ameaçadas de morte na Amazônia. Quinze delas estiveram no começo de junho em Brasília para reuniões com senadores e deputados no Congresso e também com os ministros Afonso Florence, Izabella Teixeira (Meio Ambiente) e Tereza Campello (Desenvolvimento Social), além da própria Maria do Rosário.

“A ideia é discutir com os ministros e parlamentares as políticas desenvolvidas para as populações, povos e comunidades tradicionais na Amazônia. A violência acontece porque as políticas públicas e as ações das diversas esferas de governo não estão integradas. As demandas das comunidades amazônicas simplesmente não são atendidas – ou então não são atendidas a contento – dentro desses programas, dessas políticas públicas em implementação”, afirma Fani Mamede, integrante da rede Grupo de Trabalho Amazônico (GTA), que agrega mais de 600 organizações socioambientalistas da região Norte. 

Madeireiras fechadas

Pouco mais de um mês após a morte de José Claudio e Maria do Espírito Santo, o Ibama contabiliza o fechamento das 12 madeireiras que atuavam no município. A Operação Disparada foi iniciada em março com frentes em outros três municípios paraenses (São Felix do Xingu, Santana do Araguaia e Pacajá). Foram aplicados R$ 3,4 milhões em multas, apreendidos 1.400 m³ de madeira e embargados 315 hectares de áreas desmatadas.
Para o professor da Universidade Federal do Pará Rodolfo Salm, praticamente toda a exploração madeireira na Amazônia infringe a lei:  “A indústria madeireira por si só já causa um grande impacto”.
Paulo Vinicius Marinho, do Ibama, conta que todas as madeireiras locais já foram autuadas, mas a Secretaria de Meio Ambiente do Pará muitas vezes concedia licença novamente. O Ibama reconhece que apesar de fiscalizar essa região do estado desde 2007, em maio, após a morte dos extrativistas e da evidente ação ilícita de madeireiros, intensificou a fiscalização. “Vale dizer que o Ibama é um orgão de proteção ambiental, não é um orgão de segurança pública”, pontua.
Leia texto de Virgina Toledo na Rede Brasil Atual