Violência sem disfarce

Se há 2.000 anos houvesse televisão comercial, com certeza as câmeras mostrariam, ao vivo, os cristãos enfrentando os animais no Coliseu. Com grande audiência

A violência é um ingrediente básico da TV, junto com o sexo. Um e outro pegam o telespectador naquilo que o ser humano tem de mais básico: a luta pela vida e pela reprodução da espécie. Semelhante a qualquer animal. A violência está presente nas novelas, nos programas de auditório e no tipo de jornalismo apresentado pela maioria dos canais. Ainda que brutais, tiros, socos e gritos são, nesses casos, embalados por algum enredo na tentativa de justificá-los.

Agora, no entanto, está no ar uma atração na qual a violência é apresentada sem disfarces: são as chamadas lutas marciais mistas, disputadas pelos contendores em pé ou no chão. É o vale-tudo de verdade, não mais as marmeladas circenses de outras épocas, nas quais pontificavam artistas como Ted Boy Marino e o Índio Paraguaio. Hoje, as disputas internacionais movimentam fortunas e as lutas são, literalmente, de vida ou morte. A UFC, principal promotora desse “esporte”, está avaliada em cerca de US$ 1 bilhão.

Lutadores viram celebridades e são vistos até em programas matinais, do tipo Ana Maria Braga. Tornam-se ídolos de jovens e adolescentes. Mas qual a virtude por eles pregada? Simplesmente a destruição física do semelhante, já que a luta pode causar lesões definitivas ou mesmo a morte. Outro dia, uma professora de ensino fundamental, na zona leste de São Paulo, conversava com os alunos sobre violência e, quase todos, pelo menos verbalmente, a condenavam. Diziam que desavenças deveriam ser resolvidas pelo diálogo, e não na pancada. Alguns, curiosamente, carregavam pastas e cadernos enfeitados com distintivos da UFC. 

Apresentada como esporte, a luta banaliza a violência. Crianças e jovens assimilam e reproduzem esses comportamentos, até com certa naturalidade. Há inúmeras pesquisas que comprovam isso, como a do professor Jo Groebel, da universidade holandesa de Utrecht, patrocinada pela Unesco. O trabalho ouviu 5.000 crianças de 12 anos, em 23 países, incluindo o Brasil, e concluiu que a televisão é hoje o principal instrumento de educação em todo o mundo. Nos países pesquisados, o tempo livre das crianças, fora da escola, era ocupado majoritariamente pela TV, muito acima do gasto com lições de casa, leituras e práticas esportivas. A pesquisa mostrou também que os modelos mais admirados por crianças e jovens são os chamados “pop stars” e os heróis, como o de O Exterminador do Futuro, ídolo de 88% das crianças. Metade dos entrevistados gostaria de ser como ele. 

“Em cada hora de programa exibido na televisão há entre cinco e dez ações violentas, o que faz com que um jovem aos 20 anos já tenha presenciado cerca de 25 mil mortes violentas e 200 mil atos de violência”, ressalta o pediatra Ulysses Doria Filho, do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Levantamento realizado na Alemanha, pelo Ministério da Família, registrou em uma semana 536 assassinatos exibidos pela TV, o que dá 28 mil crimes desse tipo por ano. O problema, portanto, não é só nosso. Mas em regiões mais violentas, como as áreas metropolitanas brasileiras, o efeito da TV tende a ser potencializado. Os números mencionados da televisão alemã foram obtidos depois da privatização de vários canais. Para um ex-diretor da rede pública Südwestfunk Baden-Baden, Dieter Ertel, “não foi a introdução da televisão, mas sua privatização que provocou graves consequências para a nova ordem cultural”.

A TV brasileira, desde seu início, em 1950, é quase totalmente privada e a busca desenfreada pela audiência acaba passando por cima de cuidados éticos e estéticos. Chegamos agora à violência sem disfarce. Um chute no rosto do adversário, o sangue jorra e o lutador cai desfalecido. Nada muito distante do que se via nas arenas romanas. Se há 2.000 anos houvesse televisão comercial, com certeza as câmeras mostrariam, ao vivo, os cristãos enfrentando os animais no Coliseu. Com grande audiência.