Ela nunca mais voltou

Profissional do teatro e militante política, Heleny Guariba desapareceu há 40 anos

Em 1965, Heleny abrigou na casa em que morava com o marido e os filhos pequenos o líder Carlos Lamarca (Foto:Arquivo Pessoal)

Ainda reside em Bebedouro (SP) Ruth Caetano Belo, de 87 anos, tia de Lenita – como Heleny Telles Ferreira Guariba era carinhosamente tratada pela família. Desaparecida política desde 1971, Lenita hoje estaria com 70 anos. Ruth perdeu contato com a sobrinha quando ela tinha 5. Ao visitá-la já casada, em São Paulo, achou-a uma mulher diferente. A casa não era arrumada e mobiliada como nos padrões da época: “Tinha muito livro”, lembra. Mais tarde, compreenderia o caráter transformador e desprendido da sobrinha, que imagina ter sido companheira da presidenta Dilma Rousseff durante a ditadura.

Dona de brilho intelectual, criatividade e muita coragem, Heleny Guariba surpreendeu a crítica paulista aos 27 anos. Em 1968, montou o espetáculo Doroteia, de Nelson Rodrigues, na Escola de Artes Dramáticas da USP, onde lecionava. “Ela era muito intensa, rigorosa, e isso se refletia nos trabalhos”, diz uma de suas alunas, a dramaturga Dulce Muniz, que escreveria uma peça em sua homenagem – Heleny, Heleny, Doce Colibri.

Heleny fez doutorado de teatro em Paris e estagiou nas escolas do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, do francês Roger Planchon e do inglês Peter Brooks. Ao voltar da Europa, formou em Santo André (SP) o Grupo Teatro da Cidade, com operários e estudantes. Trabalhou com Augusto Boal no Teatro de Arena e, em 1969, montou um curso de interpretação com a atriz Cecília Thumim. “Heleny me apresentou Stanislavski e Brecht. Mas a grande lição que ficou da convivência foi sua intensidade e radicalidade no modo de viver”, conta o ator e diretor Celso Frateschi, seu aluno, então com 18 anos.

A filósofa Marilena Chaui estudou com Heleny desde os 10 anos até a Faculdade de Filosofia da USP. Lembra da amiga como irônica, culta e fina. “Heleny fez uma análise sobre o romance Iracema, a qual ela denominou de ‘estoica’. Ela tinha 15 anos, o professor ficou estupefato com sua grandeza e profundidade. Era mais madura que todos nós, além de ter sido o Santo Antônio de muita gente. Foi ela quem me arrumou o primeiro namorado”, revela.

A essa altura, Heleny já era simpatizante da luta armada. Em 1965, abrigou o líder Carlos Lamarca na casa em que morava com o marido e os filhos pequenos. “Quando, no final de 1969, ela entrou para a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), nunca mais voltaria ao teatro. Seu nome batiza hoje o Teatro de Mauá e o auditório anexo de Santo André”, conta Dulce Muniz. Ela foi a última pessoa próxima a ver Heleny viva: acompanhou-a até o ônibus para o Rio de Janeiro, em julho de 1971, quando desapareceria, aos 30 anos. “Eu me lembro dela na janela, gritando para mim: ‘Dulce, por favor, avise a tia Irma que volto para levar o Chico e o João para a praia’. É a imagem que guardo – ela preocupada com a tia que a criou junto com a mãe, dona Tita, e com os filhos pequenos, que ela adorava. Ela pretendia voltar.”

Um ano antes, Dulce a havia visitado no presídio Tiradentes, no Rio. Heleny estava presa desde abril de 1970. Foi solta no início de 1971, apenas para ser novamente capturada e, ao que tudo indica, torturada barbaramente na Casa da Morte, aparato clandestino da repressão em Petrópolis (RJ). O corpo nunca foi encontrado, apesar dos esforços da família, principalmente do sogro, Francisco Guariba, um general que se opôs à ditadura e fez de tudo para encontrar a nora.  

Confira uma série de reportagens de Marina Amaral para o Jornal Brasil/Bebedoro que pode ser lida através do site da Rede Brasil Atual;