A mãe rezadeira

Parte I  – Meu filho, rezei tanto para você não ser preso. Era sua primeira visita ao filho tão querido e único, encarcerado há um mês. Maltratado, mas inteiro de […]

Parte I

 – Meu filho, rezei tanto para você não ser preso.

Era sua primeira visita ao filho tão querido e único, encarcerado há um mês. Maltratado, mas inteiro de corpo, ele explicou o tique na sobrancelha: ficou do espancamento no interrogatório. Mas escondeu da mãe seus medos todos, a solidão, o estar indefeso à mercê dos algozes. Preferia pensar o melhor; ia correr processo, já não podiam sumir com ele; melhor dizendo, sempre podiam, fizeram com alguns, inventando que tentaram escapar, mas era complicado, a mãe o estava visitando, muita gente o vira vivo e inteiro na passagem pelas celas. Lá fora, ele vivia apavorado, sempre fugindo, trocando esconderijo, escapando de raspão; nem era mais ele, nas ruas caminhava cabisbaixo, tão escondido de si mesmo que por vezes o abordavam se estava mal. A prisão pusera fim ao terror permanente; também não precisava encarar ações, cobrir pontos. Tinha status de preso político. Tudo somado, preso estava menos pior. Embora o coletivo exaltasse que a luta continua, ele sabia no íntimo que para ele acabara; era o fim de um capítulo pesado de sua vida. Disse à mãe que estava bem, para não se preocupar, trazer cigarros na próxima visita.  

Parte II

 – Meu filho, eu rezo tanto para te soltarem logo.

Foi condenado a 27 anos, pena desproporcional comparada à de outros, pegos de arma na mão. A mãe inconformada demanda redução; o filho não cometeu violência. Ficar mais de 20 anos na cadeia é vida que não se recupera. Ele já cumpriu dois. Quem sabe, com outro advogado – e as rezas -, ela consiga redução para dez anos, talvez cinco, aí ele sairia a tempo de retomar a faculdade, viver, casar, ter filhos. O filho comporta-se; aderiu à greve de fome porque era de todos e vital; também participa do coletivo, assiste a aulas de História e retribui ensinando Física, que cursou até o terceiro ano; compartilha as comidas trazidas pela mãe. Mas evita contrabandear bilhetinhos e não debocha dos carcereiros; um preso político exemplar, para os companheiros e para a chefia do presídio. A prisão amadurece célere. A única coisa ruim de tudo, muito ruim mesmo, era a falta de mulher; suplício pior que os interrogatórios porque humilhante e permanente. Disse à mãe que estava bem, mas precisava muito da redução de pena. 

Parte III

Aquela era a sua primeira visita depois do sequestro do cônsul da Suíça exigindo para soltá-lo na libertação de 30 presos políticos. Durante o reboliço na cadeia, a expectativa de quem entraria na lista e quem não entraria, suspenderam as visitas. O filho já estava preso havia três anos. Embora ele não fosse do grupo que sequestrou o cônsul, davam como certa sua inclusão na lista devido à enormidade de sua pena. Os 30 libertados seriam enviados à Argélia, e proibidos de voltar ao Brasil.

Foi o quarto sequestro do tipo, para libertar presos políticos. A mãe, que acompanhava zelosa tudo o que saía nos jornais sobre a ditadura e os presos políticos, inclusive os artigos do Alceu Amoroso Lima, compusera uma lista dos libertados daquela forma. Depois, no passar dos meses, foi marcando com a cruz da morte o nome dos que regressaram clandestinamente e eram noticiados nos jornais como desaparecidos ou atropelados ou atingidos em confronto. Trinta e duas cruzes. Era como se os militares já os estivessem esperando em tocaia para vingar a humilhação que lhes havia sido imposta. Ele disse à mãe que chegaram a incluí-lo na lista dos que seriam soltos em troca do suíço, mas depois deram preferência a um companheiro muito idoso. Estou bem, ele disse à mãe, como sempre dizia.

– Graças ao bom Deus, meu filho, eu rezei tanto para você não ser solto.