A canja do Itamaraty

O Brasil defende o diálogo entre os povos como saída para os movimentos nos países árabes. Quem aposta nos Estados Unidos não precisa de muitas horas para cair em descrédito

(Foto: Divulgação)

Política externa é um prato que se cozinha em fogo brando. Uma receita que nasce aparentemente minguada e insossa pode, com o passar das horas, transformar-se num banquete. Por isso, convém ter cautela na hora de criticar os chefs, ou melhor, os diplomatas do Itamaraty. Ao desempenhar um papel mais ativo no cenário internacional, nos últimos oito anos, o Brasil ficou naturalmente mais suscetível a juízos alheios. São muitos os casos em que o tempo deu razão ao Ministério das Relações Exteriores. No último deles, o ponteiro do relógio não precisou dar muitas voltas.

Em 17 de março, o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU) aprovou resolução em que autoriza  ação militar contra a Líbia, país do norte da África que, como outros da região, vive um momento de efervescência política. O Brasil, ao lado de China, Rússia, Índia e Alemanha, decidiu se abster. A embaixadora brasileira na ONU, Maria Luisa Viotti, ponderou que havia motivo para acreditar que a via da força, além de ser incapaz de solucionar o caso, resultaria na morte de civis. “Nosso voto de hoje não deve de maneira alguma ser interpretado como endosso ao comportamento das autoridades líbias ou como negligência para com a necessidade de proteger a população civil.”

A velha mídia, no entanto, viu-se em condições de “pensar” diferente da posição brasileira, adotada dois dias antes da chegada de Barack Obama a Brasília. O jornalista Clóvis Rossi, em exaltado artigo para a Folha de S.Paulo, declarou que a abstenção brasileira foi uma “covarde omissão”, que se tornava “ainda mais patética” diante do cessar-fogo anunciado pelo ditador líbio Muamar Kadafi. “A ação do Conselho de Segurança agora visa precisamente a preservar o mais básico direito humano, que é o direito à vida”, apostou.

Não se sabe muito bem a quais vidas se referia o colunista. Em poucas horas, os ataques da coalizão formada por EUA, Reino Unido, França, Itália e Canadá vitimaram dezenas de pessoas e feriram outras tantas, número que só fez aumentar nos dias seguintes. No final de março, o número de vítimas em razão dos conflitos já rivalizava com o de mortos dos tsunamis e terremotos no Japão. Às primeiras ações da coalizão, cerca de 3.000 pessoas fugiram em direção ao pacífico Egito.

“A ideia de que o Brasil está se omitindo frente a um ataque a civis é pouco sólida porque ninguém tem noção exata do que está acontecendo na Líbia”, pontua Paulo Vizentini, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). “Não se trata de uma luta entre bonzinhos e malvados. A pessoa que é chefe do grupo de oposição era ministro da Justiça do Kadafi até dois meses atrás.”

O diário O Globo, em editorial de 19 de março, pontuava a incoerência da posição brasileira com a decisão de apoiar a suspensão da Líbia no Conselho de Direitos Humanos da ONU: “A abstenção do Brasil parece um rescaldo da política externa ‘compañera’, intensamente praticada nos últimos oito anos”.

Lejeune Mirhan, membro da Academia de Altos Estudos Ibero-Árabes de Lisboa, considera que os Estados Unidos, independentemente do rumo que tomem os movimentos no norte da África, saem derrotados. “O Brasil teve uma grande vitória para mostrar que o caminho tem de ser o do diá­logo, da diplomacia, da soberania do país. Infelizmente não conseguimos uma vitória, mas foi extremamente positivo.”

O Itamaraty é uma das instituições mais antigas do Estado brasileiro, fundado antes da República. Há dois princípios básicos na política externa nacional: a não intervenção nos assuntos de outros países, também conhecida como o direito à autodeterminação dos povos; e o não alinhamento, ou seja, a negativa a adotar tratados ou medidas que afetem a independência da posição brasileira no cenário internacional.

Indignação seletiva

Os Estados Unidos ainda creem ostentar o dom de abrir os olhos do mundo, por bem ou por mal, em nome de uma suposta democracia. Mesmo com os atoleiros do Afeganistão e do Iraque, uma pesquisa encomendada pela agência de notícias Reuters mostrou que 60% da população daquele país apoia uma ação militar na Líbia. Falando no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, Obama deixava nas entrelinhas a justificativa à via da força. “Compreendemos que nenhuma nação pode impor sua vontade a outra. Mas sabemos também que existem certas aspirações partilhadas pelos seres humanos: todos buscamos ser livres”, afirmou.

Celso Amorim, que comandou o Itamaraty durante o governo Lula, lembra que a realidade do mundo atual pressupõe o diálogo. “Os Estados Unidos têm historicamente o Irã como inimigo na região. Aí fazem uma guerra no Iraque, que era um país mais distanciado do Irã. Hoje, não são os Estados Unidos que têm maior influência no Iraque, é o Irã. Acham que resolvem tudo numa atitude de caubói.”

O Departamento de Estado parece mesmo sofrer de uma indignação seletiva e episódica. O massacre diário de civis no Bahrein não desperta grande mal-estar entre os diplomatas norte-americanos. Analistas de distintas partes do globo lembram que ali fica sediada a 5ª Frota, um dos centros militares fundamentais dos Estados Unidos.

Já os analistas de O Globo não parecem ver problema na seletividade do presidente da nação do norte e proclamam o início da doutrina Obama “em substituição ao unilateralismo bushiano”. O jornal fluminense reforçou em seguidos editoriais que a posição do Brasil no Conselho de Segurança só se deve ao dedo de Lula.

O ex-presidente e a atual presidenta são figuras completamente diferentes, embora Dilma Rousseff seja constantemente devolvida à condição de “pupila” quando alguma semelhança entre os dois é detectada. Uma nova página dessa relação foi escrita quando o Brasil apoiou a abertura de uma relatoria especial sobre direitos humanos para o caso do Irã. O Estado de S. Paulo considera a medida importante para demarcar uma mudança na política externa, distante de Cuba e da Venezuela. 

Inúteis os esforços da embaixadora brasileira em Genebra, Maria Nazareth Azevedo, que afirmou não haver novidade alguma na posição adotada: “No próprio discurso que apresentamos hoje, relembrei que na extinta Comissão de Direitos Humanos o Brasil votou em mais de uma oportunidade a favor da criação de mandato de relatores especiais sobre a situação de direitos humanos no Irã”. Além disso, destacou que o país só não se posicionou antes a favor de tal medida porque nada a respeito era posto em votação desde 2001.

O Irã, por sinal, fornece outros férteis exemplos de críticas à política externa. Em maio do ano passado, Brasil e Turquia convenceram Mahmoud Ahmadinejad a aceitar as exigências de parte da comunidade internacional em torno do programa nuclear iraniano. A velha mídia ficou horrorizada com o anúncio feito com pompa e circunstância em Teerã, defendendo que aquela negociação nos afastaria dos EUA, que rapidamente passaram a acusar a diplomacia brasileira. Não tardou que fosse revelada uma carta de Obama a Lula na qual constavam rigorosamente os pontos aceitos pela nação asiática. 

“Às vezes, a tese não é comprovada na hora, mas a história mostra quem tinha razão. As forças que no Brasil enxergam que a política externa brasileira está errada são as mesmas forças colonizadas de sempre, que não questionam nada em relação aos Estados Unidos”, defende o professor Vizentini.

Vizinhos incômodos ou parceiros?

Em 2006, a política externa brasileira enfrentou outro desafio delicado. O presidente da Bolívia, Evo Morales, decretou a nacionalização de seus campos de petróleo e gás natural. A Petrobras foi imediatamente atingida pela decisão: o imposto sobre a exploração passou de 50% para 82%. O Itamaraty não aplicou sanção à Bolívia por quebra de contratos. Em vez disso, sentou-se à mesa com o vizinho para chegar a um acordo.

Antonio Simões, subsecretário-geral da América do Sul do Ministério das Relações Exteriores, reconhece que aquela negociação foi difícil, mas lembra que é importante ter solidariedade com os vizinhos. “Entendo que o Brasil tem uma responsabilidade muito grande em relação a esses países por ser o maior da região. Essa responsabilidade está ligada ainda ao fato de que nosso interesse é que possam também crescer.”

O que foi propalado na imprensa como fraqueza do governo brasileiro, ou até como alinhamento político com os “revolucionários” bolivianos, é visto nos meios acadêmicos como uma posição acertada. “O Brasil não poderia agir de outra forma. Seguiu a política de aproximação com os vizinhos sul-americanos sem pretensões imperialistas”, afirma Jessie Jane Vieira de Souza, professora de História da América na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Além da política mais centrada no continente por parte do governo Lula, a diplomacia brasileira tem uma tradição de mais de 100 anos privilegiando a negociação.”

Se há tanta cautela na hora da conversa, convém o mesmo cuidado no momento de criticar o Itamaraty. Canja de galinha, como já sabiam os precursores da diplomacia, não faz mal a ninguém. 

Na íntegra a entrevista com o ex-ministro Celso Amorim.

Colaborou Thalita Pires