Governo do Bullying

Com o veto à admissão de professores obesos aprovados em concurso público, o governo de São Paulo agrava um cenário discriminatório e perverso, já presente nas relações sociais

“Como a gente não se encaixa naquela forma que acham que é perfeita, acaba descartada.” Professora Fabiana de Souza Azevedo (Foto:Gerardo Lazzari)

Todos os dias, o professor de biologia Francis Daniel Cones percorre os corredores da Escola Estadual Dorti Zambello Calil, de Nova Odessa (SP). Como coordenador pedagógico, está sempre de um lado para outro para dar assistência a colegas e alunos. Em mais de 20 anos dedicados à rede estadual de São Paulo, nunca teve como empecilho para o trabalho a obesidade que desenvolveu ainda criança. “Faço exames todo ano e nunca houve alterações. Minha pressão é normal, assim como as taxas de colesterol e glicemia”, afirma. Francis, que não é o único na escola a estar acima do peso considerado ideal, garante que nos últimos 10 anos nunca faltou por motivo de saúde.

A disposição e a vitalidade de Francis não são raras entre pessoas obesas. Muitas delas – até mesmo com a chamada obesidade mórbida – têm capacidade física até melhor que a de alguns magros. “Embora o risco de diabetes, pressão alta e problemas cardíacos seja maior entre elas, não se pode garantir que todas vão ter tais doenças”, atesta a endocrinologista Claudia Cozer, da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e da Síndrome Metabólica (Abeso).

Para o departamento de perícia da Secretaria Estadual de Gestão Pública de São Paulo, porém, não é bem assim. Conforme laudos assinados por seus médicos, os professores obesos aprovados no concurso público de 2010 foram considerados inaptos ao trabalho docente na rede estadual. Todos foram reprovados no exame médico e não puderam ser efetivados, apesar de a nomeação ter sido publicada no Diário Oficial.

“Em janeiro, quando já me preparava para assumir as aulas, me telefonaram da escola avisando que eu tinha sido reprovada no exame médico”, conta a professora de matemática Lídia Eliane de Souza, de Ribeirão­ Pires, na região do ABC paulista, que viu adiado o sonho de ser efetivada. Segundo ela, que está entrando com mandado de segurança para ingressar na rede enquanto o caso não se resolve, só não perdeu o prazo para entrar com recurso porque conseguiu consultar seu prontuário a tempo, no começo de fevereiro, durante a gravação de uma reportagem para um programa de TV.

A decisão não conta com o respaldo de especialistas no estudo e tratamento da obesidade e começou a ganhar repercussão a partir de denúncias publicadas num site de relacionamentos. Ali, os servidores compartilharam a frustração e a revolta por terem sido impedidos de assumir o cargo depois de aprovados em concurso público que incluía provas teóricas, curso de formação e uma segunda rodada de testes. O edital­ do concurso não vedava a participação­ de pessoas com obesidade.

“Por ironia, a inclusão e o respeito às diferenças eram um tema muito presente nesse curso de formação que fizemos”, observa a professora Fabiana de Souza Azevedo, da capital. “Mas na realidade é tudo muito diferente. Como a gente não se encaixa naquela­ forma que acham que é perfeita, acaba descartada.” A surpresa desagradável da reprovação – até então só conhecia casos na iniciativa privada – não a desanima. Vai buscar na Justiça o direito de assumir o espaço conquistado por mérito. “Ainda acredito na educação como agente de transformação.”

Em junho de 2009, um professor que viveu o mesmo drama obteve na Justiça uma decisão provisória favorável e, de lá para cá, leciona em uma escola da Grande São Paulo. No mesmo ano, o Ministério Público estadual, por meio da promotoria de inclusão social, abriu inquérito para apurar denúncias de discriminação contra professores obesos. No começo do mês passado, a história foi parar nos jornais e na TV. As câmeras de um programa dominical chegaram a exibir a burocracia enfrentada por professoras que queriam exercer o direito de saber o motivo de ser impedidas de assumir um cargo que, afinal de contas, já vinha sendo ocupado de maneira temporária havia anos.

A Secretaria de Gestão não atendeu a Revista do Brasil para explicar, entre outras coisas, quantos são os professores barrados, de onde vem a regra de considerar inapto quem está acima do peso e, ao contrário dos professores, precisam de condição física mais favorável que a dos bandidos que deveriam perseguir. À televisão o diretor técnico do órgão, Valter Haddad, se manifestou. Negou discriminação e foi categórico: “Elas foram reprovadas por serem consideradas doentes”.

Esse posicionamento, no entanto, nada tem a ver com o estado de saúde dos servidores. “O distúrbio não incapacita ninguém. É discriminação mesmo”, ressalta Claudia Cozer, para quem o tratamento injusto e desigual revela a preocupação do governo estadual unicamente com o ônus que pode vir a ter caso contrate pessoas sujeitas a adoecer.

O episódio é visto também como mais um pilar de uma política educacional pragmática lastreada em bônus e prêmios. “É a busca por resultados a todo custo, que pressiona, adoece e descarta os professores”, opina Heleno Araújo, da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Embora ainda não tenha visto iniciativa semelhante em outra parte do país, a entidade não descarta a possibilidade de o estado de São Paulo fazer escola e a ideia se espalhar.

“Enquanto a sociedade discute alternativas para prevenir e combater o bullying nas escolas, que afeta alunos e profissionais da educação, vítimas da perseguição constante de colegas de classe, de trabalho e de superiores, o estado promove outra forma de bullying ao potencializar o preconceito”, compara Maria Izabel Azevedo Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp).

“Por que gordo não pode dar aulas?”, questiona o jornalista Ricardo Kotscho em seu blog Balaio do Kotscho. Em seu desabafo, publicado na época em que a truculência do governo paulista veio à tona, ele conta que o episódio da reprovação dos professores obesos o fez lembrar um caso parecido, quando era editor de um grande jornal paulistano. Um repórter muito bom foi vetado no exame médico porque seus dentes estavam em péssimo estado. Mesmo concordando, Kotscho argumentou que o sujeito era ótimo profissional e só poderia cuidar da saúde bucal se fosse contratado. Como faria isso se estava desempregado e sem dinheiro? O tal repórter foi contratado e tornou-se um grande jornalista.

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De acordo com reportagem de Suzana Vier, da Rede Brasil Atual, a médica e pesquisadora da Fundacentro, Maria Maeno, critica a prática do governo paulista. Leia mais

Na RBA, Letícia Cruz ouviu também a opinião de uma consultora de RH da Catho, especializada em intermediação de mão de obra: “É discriminatório”. Leia mais

Intolerância inclui miopia e depressão

A discriminação do governo paulista não se restringe aos obesos. Há denúncias de professores que não puderam ser efetivados porque são míopes ou por terem sofrido de depressão. Para especialistas e juristas, essa filosofia – que se assemelha à de uma companhia de seguros que encarece ou recusa uma apólice depedendo do “risco” que o segurado oferece – é preconceituosa e imoral. Para a Apeosp, é também ineficaz. “Enquanto persistirem os baixos salários, o desestímulo, a superlotação das salas de aula e escolas precárias, os professores continuarão adoecendo”, diz Maria Izabel Noronha, presidente da entidade. A Secretaria Estadual de Gestão Pública diz, em nota, que o candidato pode solicitar vistas de seu prontuário e entrar com recurso contra o que considerar erros e injustiças. Uma nova junta médica reavaliará a perícia, mas caberá ainda novo recurso ao secretário de Gestão Pública.