Trote: nada justifica

Em pleno século 21 a violência de universitários veteranos contra os novatos ainda acontece. Muitas vezes, o que deveria ser motivo de festa dá lugar a traumas e tragédias

(Foto: Larissa Januzzi)

Os calouros acreditavam que eram levados a conhecer o campus, os professores. Foram todos para o anfiteatro do hospital. Depois, cada professor foi para um canto e veteranos passaram a trancar saídas. Checavam até nos banheiros se tinha alguém escondido. O relato é de Bruna Ramirez, estudante de Medicina da Fundação ABC, em Santo André (SP). “Assim que eles trancaram as portas começou a gritaria. Todos tínhamos de ficar ajoelhados e com a cabeça baixa. Éramos xingados e coagidos a dar dinheiro para a Atlética, sob ameaças de exclusão de todos os eventos da faculdade.”

Bruna entrou na faculdade em 2006. Naquele dia de fevereiro saiu da sala de mãos dadas com outros calouros, depois de um deles ter ligado para os pais, que avisaram a polícia. A estudante conta que em determinado momento um dos coordenadores entrou na sala de aula e os veteranos apontaram o dedo na cara dele. “Disseram que não estava acontecendo nada. Percebi que havia uma brecha, que o professor via aquilo e não fazia nada”, afirma.

Para o psicólogo José Leon Crochík, do Instituto de Psicologia da USP, essa forma de violência está em ascensão. “A violência física é direta, pode ser coibida e delimitada. A psicológica é mais astuta, mais difícil de ser identificada.” Para Crochík, o trote se estrutura como a própria sociedade. “Existe uma hierarquia social que valoriza quem tem poder; os que não têm se submetem para subir socialmente. Uma certa elite que consegue chegar à universidade deixa a barbárie e outras formas primitivas reaparecerem com a ideia do trote.”

Vivian Moreira Sales, de 23 anos, participou na mesma faculdade de ritual semelhante: “Era só os professores darem um intervalo que os veteranos entravam. Eu sempre saía, mas um dia não consegui, e eles já mandaram abaixar a cabeça. Eu estava com uma pulseira na mão, quando uma veterana viu começou a gritar: ‘Tira isso, você pensa que vai pra balada? Prende esse cabelo!’ Fiquei com muita raiva”. Segundo ela, o clima pesado vai até 13 de maio, dia escolhido para liberar os novatos por ser data da libertação dos escravos. Mas a humilhação continua durante o ano. Argumentam que, se o aluno sofre por um ano, aplicará o trote por mais cinco. “Existem pessoas que não querem reproduzir isso, mas outras aguardam ansiosamente pela oportunidade”, diz Vivian.

Crochík responsabiliza a competição e a banalização da violência pelo cenário. “É um problema estrutural da sociedade, as pessoas são formadas para competir, ver quem é melhor, e ano a ano o aluno quer ridicularizar o outro da mesma forma que foi ridicularizado”, afirma.

O limite da brincadeira

Há 12 anos, um caso de violência fatal marcou fortemente o debate sobre trotes universitários no Brasil. Edson Tsung Chi Hsueh, calouro da Medicina da USP, foi encontrado morto na piscina da Associação Atlética Acadêmica Oswaldo Cruz em 22 de fevereiro de 1999, depois de passar pelo roteiro dos veteranos. O fato estimulou a criação de mecanismos de denúncias e de ações preventivas nas universidades e despertou discussões antropológicas sobre as motivações do ritual.

Para a socióloga Carla Alonso Diéguez, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, o trote tem a função de mostrar ao indivíduo o ingresso numa nova realidade, mas aos poucos a prática cedeu lugar à violência do dia a dia. “É um rito muito antigo, que remete às universidades europeias e norte-americanas. O aluno se submete a determinadas ações para pertencer a grupos específicos, os chamados colleges. O calouro que se submete é aceito mais rápido do que aquele que não passa”, explica.

O estudante de Medicina Ricardo Godoy, de 23 anos, que abandonou o curso na Faculdade de Ciências Médicas de Santos em 2007, lembra-se das “brincadeiras” mais violentas impostas pela Atlética aos calouros da 45ª turma. “Os veteranos costumam obrigar os alunos a nadar nos canais de Santos, onde desembocam as redes de esgoto”, conta. Ricardo recorda de uma vez, quando estava em um bar com os amigos, os veteranos passarem de carro e os convidarem para ir à praia comemorar o ingresso na faculdade: “Chegando lá, tivemos de ficar sem roupa e entrar no mar. Tinha pessoas da Atlética e veteranos mais tranquilos, por sorte não aconteceu mais nada.”

Depois de um ano, Ricardo mudou para São Paulo e passou a estudar Medicina na Uninove. As formas de violência observadas por ele no trote eram quase as mesmas. “Em Santos, os trotes eram mais depreciativos. Na Uninove, são mais pesados para as pessoas que querem fazer parte de grupos específicos dentro da faculdade.” Esses calouros são submetidos diariamente ao que chamam de “lavagem cerebral”: os veteranos colocam a cabeça deles no vaso sanitário e puxam a descarga várias vezes.

Na cidade de Guaratinguetá (SP), André Caetano Prado, de 22 anos, aluno do curso de Engenharia Elétrica da Universidade Estadual Paulista, sofreu as humilhações de quem precisa dividir o espaço de uma república. “Eu era o único ‘bicho’ de lá, então, muitas vezes, eles deixavam uma mensagem na lousa: ‘bicho vai morrer’”, lembra. “As situações mais difíceis que passei foi ficar com a cabeça dentro do vaso sanitário com a água respingando no meu rosto e ter de fazer uma prova todo fantasiado de mulher.”

Para Crochík, há certo enaltecimento daqueles que passam nos cursos mais difíceis. “As carreiras mais concorridas têm caráter humanista menor. Há uma compensação que gera a crueldade e, por sua vez, nega todo o esforço que foi feito para participar do curso”, analisa o psicólogo.

“Os grupos com maior status, como as atléticas, usam esse poder para fazer valer certas atitudes”, explica a socióloga Carla Diéguez. Veteranos que empregam a violência na recepção de calouros sofrem a ausência de limites, normas e regras sociais. “Esses indivíduos não têm dentro de si valores bem estabelecidos. Ao longo do tempo, percebemos uma desestruturação familiar e a terceirização do processo educacional, ou seja, pai e mãe não ensinam mais valores, e a escola não dá conta.”

Além dos muros

Segundo o procurador regional dos Direitos do Cidadão, Jefferson Aparecido Dias, os anos de 2008 e 2009 registraram muitos casos de trotes com o uso de violência física. No estado de São Paulo, onde há uma lei específica contra a prática, o Ministério Público Federal emitiu, em setembro de 2009, recomendação a todas as universidades para que desenvolvessem campanhas de conscientização e sanções para atos violentos. Para Dias, o principal desafio é elaborar métodos para interromper esse ciclo – “em que o aluno que é vítima como calouro reproduz a violência depois”.

O procurador discorda de um aspecto da política de segurança adotada pela maioria das universidades – de restringir punições a eventos ocorridos no perímetro que consideram de sua responsabilidade – e defende que os atos violentos sejam criminalizados como quaisquer outros: “Se um servidor público comete um ato de corrupção, em qualquer lugar, ele deve ser punido. Com o aluno violento é a mesma coisa, o vínculo com a instituição faz com que ela possa sancioná-lo”.

Dias se refere a situações como a vivida por Mariana Sanchez Flores, de 28 anos, ex-aluna do curso de Medicina da Universidade de Mogi das Cruzes, da turma de 2005. Da sala de aula os calouros seriam levados para uma “atividade de socialização” na cidade. “Eles enfiaram todo mundo em um ônibus e em uma hora estávamos em um sítio sem nada por perto”, conta. “Os calouros tinham de fazer serviços domésticos. Depois, quando a maioria deles já estava bêbada, me puseram num freezer com uma amiga. Jogaram frutas, ovos podres, farinha e depois empurraram todo mundo na piscina.”

Mariana começou a ficar deprimida, mal-humorada, doente e depois de uma semana não quis mais voltar à faculdade. “A voz não saía. Pedi para a minha mãe cancelar tudo porque eu queria voltar para o cursinho.” A mãe da estudante procurou a diretoria um dia depois das agressões. “A faculdade se absteve completamente. Disseram que se os alunos quiseram ir o problema era deles”, conta.

O portal Antitrote.org observa que as vítimas de abusos encontram ainda dificuldades em recorrer à Justiça e, quando o fazem, na maioria dos casos têm como alvo apenas os alunos que praticaram o trote. Em sua página na internet, a organização aconselha que os agredidos acionem também as instituições de ensino “que não se preocupam em oferecer ambiente seguro e, sutil ou descaradamente, estimulam o trote, como se este fosse apenas uma brincadeira”.

Como coibir a violência no trote

A denúncia é fundamental para combater a violência, segundo o procurador Jefferson Dias. “Reconheço que é difícil, mas acredito que nunca foi tão fácil como hoje denunciar. Com a internet e celulares que gravam vozes e imagens, existem mais formas de fazer o registro e as pessoas podem se valer do anonimato.” Em sua opinião, o cenário tem evoluído. “Após a recomendação, todas as faculdades responderam que cumpririam as medidas solicitadas. Nas que já tiveram problemas, o sistema de segurança melhorou”, afirma. “O pontapé inicial já foi dado, mas se trata de um processo de construção que leva alguns anos. Hoje temos iniciativas muito positivas, como os trotes solidários e os métodos de proteção”, ressalta.

Dicas de quem já passou por isso

“É normal chegar perdido em um ambiente novo. Eu conversava com outros calouros e a gente se ajudava” André Caetano Prado

“Tem de procurar saber o que acontece na universidade para ser surpreendido o mínimo possível” Vivian Moreira Silva

“É importante dividir o que se está sentindo com as pessoas, com os amigos e principalmente com a família” Bruna Ramirez

“Se a situação começar a fugir do controle é preciso coragem, bater o pé no chão e não temer retaliações” Ricardo Godoy

“Tem de chegar de cabeça erguida, escutar o que vão dizer e, se você se sentir lesado, dizer não”, Mariana Sanchez Flores

Um ano antes da morte de Edson Tsung Chi Hsueh, a USP já havia adotado um mecanismo para ajudar os alunos ingressantes a denunciar qualquer caso de violência durante o trote. O Disque Trote, criado e coordenado pelo professor Oswaldo Crivello Júnior, começa a funcionar durante a matrícula e se encerra duas semanas após o início das aulas. A equipe que recebe os relatos, composta por alunos, os encaminha à unidade administrativa da faculdade de onde partiu a denúncia.

“Essa ferramenta deveria existir em todas as faculdades, porque os alunos ingressantes são de responsabilidade da instituição. É importante mostrar que há limites e que o calouro tem a quem recorrer”, enfatiza o coordenador. Segundo ele, a ampla divulgação do Disque Trote na semana de recepção dos calouros tem gradualmente trazido avanços.

O secretário-executivo da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), Gustavo Balduíno, afirma que é obrigação da faculdade oferecer ações preventivas. “O melhor caminho é criar novas formas de recepção de calouros, incluir os veteranos nessas atividades, mas não deixar tudo a cargo dos alunos. Toda a instituição tem de se envolver.”

Recepção saudável

A partir da recomendação emitida pelo Ministério Público Federal, em 2009, as universidades desenvolveram uma série de ações positivas em prol das comunidades próximas. Essa prática – que já existia em algumas faculdades – é conhecida como “trote solidário”.

Serviços

Trote da Cidadania: http://www.trotedacidadania.org.br 
Disque Trote USP: 0800 121090

 

A experiência do projeto Trote da Cidadania, criado há 12 anos pela Fundação Educar DPaschoal, é considerada uma das pioneiras em estimular a sensibilidade social entre os ingressados na faculdade. A iniciativa começou em Campinas (SP) e hoje se estende por 15 estados. Marina Carvalho, coordenadora, explica que os projetos são voluntários, começam de forma assistencialista, com ação pontual, e depois os organizadores percebem a necessidade de continuar. “Assim, o que se inicia como uma ação de trote acaba engajando a vida acadêmica na realidade da comunidade”, afirma, embora admita que nas faculdades em que o trote violento é mais forte a resistência é maior.

Uma das iniciativas premiadas pelo Trote Cidadão foi o projeto “Pelo Consumo Consciente”, coordenado pelo aluno da Unicamp André Caetano Prado. O estudante de Engenharia Química conta que a ideia ganhou força em 2003, com três cursos da instituição unidos para pôr em prática o trote solidário. Segundo ele, foi feita uma mobilização para conscientizar a comunidade sobre a relevância de uma cooperativa de reciclagem da região.

Atualmente, 37 cursos da instituição ajudam quatro cooperativas de reciclagem, entre outras organizações. “Desde 2007, a reitoria da universidade aboliu a palavra trote da instituição e adotou nosso modelo como semana oficial de recepção de novos alunos”, comemora. Para André, essa cultura é muito boa, mas é importante a participação das faculdades na coibição dos trotes pesados e no incentivo das práticas solidárias. “Mas só incentivar. Quem deve executar são os universitários, porque são os alunos que têm de se entender e se relacionar.”

O que dizem as escolas

O professor Ricardo Peres do Souto, integrante da Comissão de Recepção de Novos Alunos da Faculdade de Medicina da Fundação ABC, garante que 2011 será diferenciado. “Tudo o que estiver fora do nosso planejamento da semana de recepção será considerado trote. Estamos ampliando a capacidade de acompanhamento no campus com a instalação de novas câmeras de segurança”, conta. Qualquer comunicação com alunos ingressantes deve ser informada e aprovada pela diretoria. “Os grupos como centros acadêmicos e atléticas já estão sabendo disso. Se não for dessa forma, será considerado trote”, enfatiza. “Com as medidas que estamos tomando, espero que práticas como a detenção de calouros por veteranos em sala de aula deixem de existir.”

O vice-reitor da Universidade de Mogi das Cruzes, José Augusto Peres, informou por meio da assessoria de imprensa que foram criadas comissões específicas para atenção ao calouro, como reforço na equipe de segurança, realização de palestras e reuniões com alunos e representantes de diretórios e centros acadêmicos. Sanções como suspensão e desligamento poderão ser aplicadas. A assessoria não soube informar, no entanto, com que mecanismos de defesa contarão os alunos que se sentirem prejudicados, nem quais procedimentos devem ser tomados em casos de agressões praticadas fora dos limites do campus.

De acordo com o professor Heraldo Lorena Guida, presidente do Fórum de Vice-Diretores da Unesp (instituição que proíbe o trote há mais de uma década), a universidade se responsabiliza por todo tipo de ação que fuja à normalidade dentro do campus e no entorno. Ele defende uma parceria que envolva mais o poder público e a Polícia Militar nos ambientes de risco. E enfatiza a relevância da denúncia. “Quem se sentiu atingido tem de denunciar; se forem alunos da universidade, ela tem condição de tomar medidas. Se o aluno que aplicou o trote tem vínculo com a instituição, ainda que esteja numa república, isso já permite fazer a apuração”, garante.

A reitoria da Universidade de Ciências Médicas de Santos foi procurada, mas não quis se manifestar. A assessoria da Uninove também não respondeu à reportagem.

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