O mito dos 100 dias

A história política é perturbada por lugares-comuns que pouco têm a ver com a realidade. Alguns acreditam que os primeiros dias de um governante definem o desempenho posterior

A expressão nasceu dos famosos “100 dias de Napoleão”, que na verdade foram 114, de 1º de março, quando retornou à França depois de fugir da Ilha de Elba, a 22 de junho de 1815, quando abdicou do trono pela segunda vez. Napoleão reconquistou o trono com exemplar coragem, mas o perdeu porque a correlação de forças militares na Europa já não o favorecia. Desde a retirada da Rússia, em 1812, seu destino estava selado. A um de seus secretários de então – Henry Beyle, famoso com o pseudônimo de Stendhal – ditou decretos de promoção de oficiais, depois de derrotado em Moscou, e assinou “Pompeu”. Era a assunção antecipada da derrota definitiva, como a sofrida por Pompeu contra César.

Os 100 primeiros dias de um governante podem mostrar seu caráter, mas não significam êxito ou malogro do mandato. Quando o governante encontra o país em crise grave, como ocorreu a Roosevelt em 1933, a atuação tem de ser contundente e imediata – o que ele fez com o New Deal, a intervenção fulminante do Estado nas atividades econômicas. Nesse caso, os primeiros dias são decisivos. Outra é a situação de Dilma Rousseff. Ela é conhecedora da realidade nacional e dos mecanismos do poder, pela experiência de sua carreira de administradora. Provavelmente não encontrará situações desconhecidas, embora o poder sempre reserve surpresas: o caráter das pessoas nunca é exposto nas linhas da face.

A presidenta tem o desafio de arbitrar os interesses em disputa do poder. Isso não lhe será difícil, mas exigirá permanente atenção. Seu perfil é de alguém que se dedica exaustivamente ao trabalho. É uma grande vantagem para quem chefia um governo, mas não basta para quem chefia um Estado democrático. Ela atendeu os grupos empresariais, ao convocar o industrial Jorge Gerdau para assessorar o governo. Espera-se que essa presença não venha a significar retorno do pensamento neoliberal na condução ideológica do Estado, como nos tempos de Fernando Henrique.

A melhor advertência à conduta governamental é o contato direto com a população, e não somente mediante as informações dos ministros. É conhecido o estratagema do primeiro-ministro Potemkim, de Catarina, a fim de iludi-la durante uma visita ao Rio Dnieper. Potemkim montou ao longo do rio aldeias de fachada, com moradias coloridas como cenário, diante do qual camponeses saudavam a soberana do império russo (de 1762 a 1796), feliz com o “bem-estar” de seus súditos. Eram as famosas aldeias de Potemkim. O chefe de Estado deve estar em contato, sempre que possível, com o povo.

Além dos problemas internos, Dilma é convocada da mesma forma a manter contatos pessoais com os chefes de governo estrangeiros. Lula avançou muito na diplomacia do corpo a corpo, e o mundo se acostumou com essa presença brasileira, que se marcou pela altivez sem arrogância, pela firmeza­ sem impertinência.

Exemplo para todos os dias

Na abertura de seu livro Economics for a Civilized Society, Greg e Paul Davidson mostram que a sociedade se torna “civilizada” diante de catástrofes. As pessoas se sentem tocadas pelo sofrimento quando há incêndios, terremotos, inundações. Por que, perguntam os autores, o mesmo não ocorre na vida de todos os dias? As cenas de solidariedade na busca de sobreviventes e de mortos nas encostas da serra, em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, mostram um povo exemplar.

No entanto, contra as catástrofes sociais de todos os dias não há a mesma disposição, exceto de uma muito pequena parcela da população. Todos os dias, adolescentes são empurrados para a prostituição e para o crime; desabrigados e sem-teto adoecem e morrem nas calçadas das grandes cidades do mundo. As pessoas olham de lado. Há pouco tempo para que a sociedade se civilize e adote modelo econômico que a salve das catástrofes sociais devastadoras. É preciso que o sentimento humanista ocupe o mundo.