Erupção nas arábias

Em uma das regiões mais ricas do mundo, com uma das populações mais pobres, a tirania de regimes estrategicamente importantes para o capitalismo ocidental está em xeque

Num país, a Tunísia, a erupção devastou um governo, o do ditador Ben Ali, depois de 23 anos de despotismo. Noutro, o Egito, estremeceu um regime, o implantado a partir da presidência de Anwar el-Sadat (1970-1981) e consolidado por seu sucessor, Hosni Mubarak, desde 1981. Outros países do mundo árabe registraram tremores mais ou menos significativos, como na Argélia, no Iêmen, em Omã, na Jordânia e na Líbia. Em toda a extensão da Liga Árabe – que reúne 22 países desde o leste do Atlântico até o Golfo Pérsico –, ditadores, monarcas, sultões e emires estão com as barbas de molho, na expectativa do que está por vir.

Além das injunções políticas, que são herança de todos os imperialismos que ali encontraram terreno fértil, da Guerra Fria depois de 1945, e das disputas locais, alguns números e fatos econômicos ajudam a entender o apetite das potências ocidentais pela região (no passado, o da finada União Soviética e, hoje, o da China). A Liga Árabe compreende 14 milhões de quilômetros quadrados e uma população que já passou de 360 milhões, com um PIB anual de US$ 2 trilhões. A União Europeia, com 27 países, tem 500 milhões de habitantes e PIB de US$ 14 trilhões. A comparação desses números evidencia o enorme poderio econômico da região – para as potências ocidentais ou à revelia delas, o que provoca nelas sonhos e pesadelos. Um exemplo desse potencial é a construção do Gasoduto Árabe, que permitirá o transporte de gás do Egito e Iraque para Jordânia, Síria, Líbano e Turquia – e talvez, no futuro, possa ir mais longe ainda.

Vários de seus países são produtores de petróleo. O maior é a Arábia Saudita. O Egito, que também produz petróleo e gás, gerencia o Canal de Suez, por onde passa o “ouro negro” para a Ásia, a Europa e outros continentes. A região – que conta com algumas das civilizações mais antigas do mundo – explora ainda o turismo, e, no momento, tem presença significativa no mundo das telecomunicações, com empresas como a Orascom e a Etisalat, além da agência de notícias Al Jazeera, com grande penetração no mundo árabe e também no Ocidente.

Tudo isso mostra uma região tão rica quanto prenhe de contradições. Quase todos os países têm problemas de abastecimento agrícola. O Egito é um exemplo notável: importando grande parte de produtos de alimentação (inclusive do Brasil), entre os quais o trigo, e com uma população em crescimento de grande proporção, é presa fácil das oscilações dos preços das commodities no mercado internacional. A parte sul do Sudão, fértil para a agricultura, era considerada “o celeiro” do mundo árabe.

Além de as sucessivas guerras civis terem devastado esse “celeiro”, o recente plebiscito em que a divisão do país ganhou no sul por esmagadora maioria joga o futuro na incerteza. Um país independente no sul do Sudão dificilmente permanecerá na Liga Árabe. A recente elevação dos preços das commodities, não compensada pelo aumento do preço do petróleo, combinada com a grande pobreza da maioria da população, ajuda a explicar o porquê dos levantes começados neste janeiro contra o governo de Mubarak.

Mas não explica tudo. Durante décadas, o jogo pesado das potências do Ocidente ajudou a montar nessa região uma extensa rede de déspotas – a maioria deles não esclarecida –, sob a forma de monarquias, emirados ou repúblicas de fachada, da que o regime ditatorial de Mubarak é apenas um exemplar, embora dos mais eloquentes. O último a ser cooptado foi Muammar al-Gaddafi, da Líbia, outrora feroz inimigo, hoje caríssimo amigo.

Um dos objetivos dessa montagem – que agora pode se revelar um dominó ou um castelo de cartas a perigo – era vencer a Guerra Fria, o que foi alcançado. Outro era garantir o abastecimento de petróleo, o que teve curso. O terceiro era manter uma vasta quantidade da população mundial, vista como potencialmente hostil, em posição submissa, que é o que agora está a perigo.

Mas a região mudou o seu perfil, o que talvez tenha escapado aos analistas e arautos do império do Ocidente: uma maioria daqueles 360 milhões de habitantes é de jovens com menos de 30 anos. No Egito, a população sub-25 representa 52%; na Tunísia, primeiro país a entrar em erupção, 42%, e na Jordânia, 54%. Isso não quer dizer, naturalmente, que a região esteja vivendo o seu “maio de 68”. O dado mais significativo é que uma grande proporção desses jovens é de desempregados e vive na pobreza, sem perspectiva de futuro enquanto a política de seus países permanecer como está. E mais: esses jovens, como geração, não têm maiores compromissos com aquela cadeia de governos autoritários e ditaduras que foi montada quando a maioria nem tinha nascido ou, no máximo, tinha acabado de vir ao mundo.

Quando a ditadura da Tunísia caiu (ou melhor, levantou voo do país, parece que levando 1,5 milhão de toneladas de ouro para a Arábia Saudita), ficou claro que a erupção ia se estender, e o Egito seria a bola da vez. Assim mesmo, de público, nada aconteceu. De Davos, cidade suíça que sedia o Fórum Econômico Mundial, a Washington, nos Estados Unidos, criou-se um clima de consternação e, ao mesmo tempo, de “grande descoberta”. É como se os líderes das hegemonias econômicas do mundo dissessem em coro: “Nossa, Mubarak é um ditador, quem diria, hein?”

Passaram também a mobilizar o argumento de que algum movimento radical islâmico poderia assumir o governo do Egito, como a Irmandade Islâmica. Essa Irmandade, que atua em muitos países, e não só no mundo árabe, foi fundada em 1928 e sempre lutou contra os movimentos laicos promovidos pelos militares nacionalistas, como Gamal Abdel Nasser, no Egito. Envolveu-se no passado em atentados contra governantes, como na Síria, e em levantes que custaram milhares de mortos, além dos que mergulharam na clandestinidade, como no Egito.

Mas essa é uma hipótese distante, pelo menos no momento. O movimento de protesto contra Mubarak, no Egito, começou à revelia da organização islâmica. E, segundo analistas, pode estar acontecendo o contrário, pelo menos no Egito: a revolta popular também se reflete no interior da Irmandade, promovendo novas lideranças distanciadas da velha-guarda fundamentalista.

De todo modo, a única coisa certa, por ora, é que o mundo árabe está pegando fogo e tão cedo essa inquietação não vai se extinguir. 

No tabuleiro da Guerra Fria

A Liga dos Estados Árabes, ou Liga Árabe, foi fundada em 1945, surgindo paralelamente ao desenrolar da Guerra Fria – o embate que, na segunda metade do século passado, opôs o mundo capitalista ocidental ao bloco liderado pelo comunismo soviético. Seus membros fundadores foram o Egito (sede), o Iraque, a Transjordânia (hoje Jordânia), o Líbano, a Arábia Saudita e a Síria. A estes se juntou o Iêmen. Com as sucessivas adesões, até reunir 22 estados em que, sem exceção, o árabe é a língua oficial (às vezes com o francês), a Liga Árabe hoje vai do Marrocos, no Atlântico, aos Emirados Árabes e a Omã, seus membros mais a leste, junto ao Golfo Pérsico e diante do Irã, na outra margem (que não é membro da Liga e cuja população majoritária não é árabe).

No caminho, reúne gigantes como o Egito (80 milhões de habitantes, o maior) e o Sudão (o maior em área, pelo menos antes da sua divisão a partir do plebiscito de janeiro de 2011) e pequenos países, como o Catar (840 mil). A ela pertencem também países como Argélia, Líbia, Iraque, Marrocos e Tunísia, além da Autoridade Palestina entre outros. E conta ainda com quatro países observadores: a pequena Eritreia, ao norte da Etiópia, a Índia, a Venezuela e o Brasil, onde a população árabe passa de 1,2 milhão.