Liberdade limitada

Para a velha mídia e as forças políticas a ela ligadas, liberdade de imprensa tem limite e jornalistas e publicações independentes são um estorvo

(Foto: Paulo Pepe)

O presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos, exibe um exemplar da Revista do Brasil que teve sua distribuição suspensa por uma ação do PSDB: “Essa não pode”. A publicação estampava o apoio da revista a Dilma Rousseff. Na outra mão, um exemplar da revista Veja com o senador eleito por Minas Gerais Aécio Neves (PSDB), como quem apela ao mesmo tempo ao político mineiro e ao (e)leitor para que dirija seu apoio ao candidato José Serra (PSDB). “Essa pode.”

Artur mostra ainda outras duas capas de Veja que abordam assuntos semelhantes, enchentes. “Para tratar das enchentes de São Paulo, a Veja saiu com a chamada ‘Por que chove tanto’. E explica: ‘Uma rara combinação de fatores atmosféricos é a causa do dilúvio que há mais de 40 dias castiga o Sul e o Sudeste do Brasil’. Em outra edição, sobre o Rio de Janeiro, traz o Cristo Redentor chorando na capa e a chamada “Culpar as chuvas é demagogia”. No último dia 27 de outubro, em uma manifestação contra a censura e pela liberdade de expressão, sindicalista usou esses exemplos de como a mídia se manifesta eleitoralmente sem cerimônia.

Para o professor e pesquisador Venício Artur de Lima, do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (Nemp) da Universidade de Brasília (UnB), o caso é exemplar. “Se você adotasse o mesmo critério que levou à suspensão da Revista do Brasil, a revista Veja não circulava.” Para ele, a grande imprensa no Brasil goza de liberdade total, mas a liberdade que apregoa não serve para todos. “Há grupos que não podem se expressar”, alerta. Essa constatação ficou nítida na reta final, quando blogues, sites, jornais e revistas independentes sofreram uma sequência de atentados à liberdade de expressão.

Além da Revista do Brasil, a representação do PSDB levou à suspensão do Jornal da CUT de setembro. O site Falha de S.Paulo, uma sátira à Folha de S.Paulo, foi acionado na Justiça e seus criadores, os irmãos Lino e Mario Bocchini, um jornalista e o outro designer, estão sendo processados pelo jornal. Para não perder o humor, eles já criaram o site Desculpem a Nossa Falha.

A psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida do Estadão por um artigo que desagradou a opinião do jornal. Blogues como os dos jornalistas Paulo Henrique Amorim, Luiz Carlos Azenha e Renato Rovai sofreram ameaças de multa. A TV Record foi notificada por uma reportagem depois do primeiro turno na qual demonstrava bairros de São Paulo em que Dilma e Serra foram mais bem votados. A revista CartaCapital também sofreu tentativa de intimidação.

Para Juvandia Moreira, presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo e diretora da Editora Atitude, responsável pela RdB, ações como essa têm o objetivo de calar um projeto identificado com o mundo do trabalho e com os movimentos sociais, historicamente deixados de lado pela imprensa conservadora. “Os meios de comunicação têm donos e eles têm interesses. O problema não é que tenham interesses. O problema é que eles não dizem quais são.”

Na avaliação do presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre, a censura à RdB foi “criminosa”, porque impediu a sociedade de ter acesso a reportagens que não têm espaço em outras mídias. “Eu vi uma reportagem muito boa sobre o que acontece com trabalhadores que chegam à beira do suicídio por conta de pressão­ absurda­, meta de produção nas empresas, as humilhações que passam no dia a dia do trabalho. Conteúdo relevante para o povo brasileiro, em que revista do país, em que grande jornal alguém encontra isso?”, indaga Sérgio, também diretor da Editora Atitude.

Credibilidade ameaçada

As sucessivas tentativas de censura a profissionais e veículos de comunicação independentes fazem parte de um contexto em que os grandes veículos assumiram o papel de partidos políticos. O professor Venício lembra que o aviso veio em março. Naquele mês, a presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ), Judith Brito, ligada à Folha, afirmou que, diante de uma oposição partidária fraca, a grande mídia teria o papel de atuar como oposição. “A campanha eleitoral exacerbou o papel de partido político da grande mídia. Mas o papel já vinha sendo desempenhado mesmo antes da campanha”, observa o professor. Na troca de papéis, quem ficou de fora foi a própria política. “A campanha se rendeu ao espetáculo e a política, com P maiúsculo, saiu da cena”, analisa.

Para a história entraram mesmo, nestas eleições, boatos, acusações e uma chuva de baixarias, não só pela internet como por panfletos apócrifos e mensagens via telemarketing, difundindo preconceito e ódio.

Na tentativa de amplificar o alcance das “denúncias”, os grandes veículos criaram uma espécie de “dueto”, conceitua Venício. Um grande jornal ou revista apresenta uma denúncia não comprovada e no mesmo dia a notícia é repetida por incontáveis outros meios, ganhando amplitude e força. “Um começava e outro repetia”, afirma o pesquisador, para quem a postura acabou ferindo a credibilidade da imprensa brasileira.

Correndo por fora, a internet ganhou espaço na disputa com mídias tradicionais, atuando principalmente na detecção e esclarecimento de boatos e denúncias infundadas. “A internet abriu espaço para vozes dissonantes, fundamentais para filtrar e impedir armações. A internet foi fundamental para desmoralizar o episódio da bolinha de papel, do aborto, da morte antecipada do Romeu Tuma”, descreve Renato Rovai, blogueiro e editor da revista Fórum.

Na visão da professora Regina Helena Alves da Silva, do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais, nestas eleições a internet – particularmente o Twitter – ratificou seu poder de disseminação de informações, mas também ajudou a exibir um lado atrasado do país, fazendo com que as tentativas de desqualificação superassem a apresentação de propostas. “Esta campanha foi pior que a anterior. O tipo de coisa que apareceu revela a sociedade que nós somos. Uma sociedade que não consegue discutir abertamente o preconceito, que não consegue viver com a diferença”, afirma.

Como coordenadora do Centro de Convergência de Novas Mídias, ela também foi uma das responsáveis pelo monitoramento do Observatório das Eleições, vinculado ao Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para a Web (InWeb). Para Regina Helena, o Brasil ainda tem dificuldade de discutir de fato temas relacionados a valores morais. Com isso, acontece o que ela chama de “sequestro da política”, deslocando a discussão do ambiente público para o privado.

“Eu, como mulher, estou indignada com esta eleição”, diz a professora, referindo-se às seguidas polêmicas sobre o aborto. Uma discussão tão rasa que, segundo ela, fazer ou não um aborto parecia uma opção entre marcas de cerveja. Como traduziu a jornalista Maria Inês Nassif, em artigo no Valor Econômico, houve instrumentalização política de um dogma pelos setores religiosos conservadores, num cenário que excluiu a maior interessada, a mulher: “A eleição conseguiu retroceder décadas nesse debate”.