A saga do povo da cratera

Na periferia de São Paulo, uma fabulosa cratera de milhões de anos tornou-se lar de milhares de famílias

(Foto: Jailton Garcia)

Eram como peregrinos chegando à terra prometida, embora sequer desconfiassem seguir o rastro de um cometa que por ali passara há 10 milhões, talvez 30 milhões de anos. Desembarcaram aos magotes dos ônibus e caminhões. As panelas repletas de macarronada, arroz e feijão seguiam com as mulheres. Os homens, à frente, abriam picadas na mata a golpes de facão. À medida que avançavam,  nascentes se multiplicavam.

Na paisagem verde a perder de vista, ninguém duvidava que finalmente teria um pedaço de terra para criar os filhos sem medo da expulsão que marcava suas vidas – primeiro, pela seca do sertão nordestino, onde a maioria deles havia nascido; depois pelas máquinas que destruíram seus barracos a mando da Justiça.

Desta vez eles não seriam invasores ocupando a franja da cidade reservada à especulação imobiliária. Teriam um terreno de papel passado como exigia a lei, mesmo que isso significasse meses de salários. Também não se assustavam com a perspectiva de enfrentar duas, três horas e 35 quilômetros, numa única linha de ônibus, que separam o distrito de Parelheiros do centro de São Paulo. Luz elétrica, esgoto, água encanada, escola, telefone, posto de saúde seriam conquistados depois. Até mesmo a notícia de que bem perto dali se erguia um cadeião, do qual já se avistava a torre, foi desconsiderada. Quem eram eles, sempre escorraçados pela polícia, para julgar ou temer os “vizinhos”?

Para obter o título de lotes de 250 metros quadrados, 1.200 famílias cadastradas no livro da União dos Favelados do Grajaú (Unifag) pagaram religiosamente seus carnês de duas parcelas no valor de cerca de um quarto do preço do metro quadrado nos loteamentos clandestinos onde antes viviam). Teriam também ar puro, cheiro de terra e flor, e a solidariedade que os unia. Não era esse o objetivo perseguido durante os quase dois anos de reuniões nas pracinhas nos confins da zona sul?

Os associados não tiveram dúvidas quando a presidente da Unifag, Maria Sipriana Henrique, perguntou se apoiariam a compra daquela terra. Alguns meses depois, chegaria a escritura lavrada no dia 22 de março de 1989 no 14º Cartório de Notas da Capital – que tornava a entidade proprietária de duas glebas de terra somando 2.932.100 metros quadrados por 300 mil cruzados novos (cerca de R$ 1,4 milhão em valores corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (INPC-IBGE)­ pagos à vista a João Rimsa, empresário do mercado de capitais. O bairro Vargem Grande, até então chamado de Colônia por extensão de outro agrupamento de alemães a sete quilômetros dali, povoado por ordem de Dom Pedro II, estava por nascer.

Café com bolo

Dona Lucima Galdino Barbosa, 70 anos, exibe a cópia da escritura ao contar a história que a levou até ali. Cearense criada na roça, chegou aos 10 anos de idade, aboletada no pau de arara com o pai, a mãe e os 16 irmãos, depois que a seca acabou com a criação de cabras e a lavoura da família. No interior do estado, trabalharam na colheita de café, onde ela ficou até se casar com José Henrique Barbosa, aos 21 anos. O casal mudou com a filhinha de 22 dias – ela para trabalhar na casa dos donos da fazenda na capital e ele para tomar conta da granja. Foram alojados em um galinheiro “raspado e pintado” para servir de residência. Quando a segunda filha nasceu, 11 meses depois, o casal juntou as economias para comprar um lote onde hoje está o Shopping Interlagos. “A gente era meio bobo e não sabia ver documento. Logo descobrimos que era tudo falso, a prefeitura nos tirou de lá e os donos da imobiliária fugiram.”

Antes de chegar a Vargem Grande, dona Lúcia do Cipó, como ficou conhecida no bairro por conta do hábito do marido de se deslocar como Tarzan na mata nativa, sofreu com outro despejo em 1986.

Daí se uniu ao povo da Unifag. Foi a 12ª associada e a segunda a ser sorteada na distribuição de lotes, conta, enquanto serve café com bolo e distribui bananas de um cacho recém-colhido para as vizinhas que se reúnem na cozinha aberta para o quintal de terra, sombreado por árvores. “No começo foi uma folia! Aqui era tão lindo, tinha macaquinho, veado, passarinho que não acabava mais”, conta. “A gente foi comprando os tijolos lá no bairro alemão e trazendo nas costas ou no carrinho de mão. As ruas eram estreitas demais para passar o caminhão, mas já eram numeradas do 1 ao 30.”

Dona Lúcia e o marido não sabiam que, embora a transação registrada em cartório fosse perfeitamente legal, era proibido fazer loteamento naquela região de mananciais que alimentam a represa Billings. A Unifag foi processada por crimes ambientais e os moradores de Vargem Grande, empurrados para ilegalidade. A crise rompeu a coesão e o bairro, isolado do centro, se tornou um faroeste. A Unifag passou a negociar os lotes por conta própria, instalou uma portaria com homens armados e passou a exigir carteirinha dos “condôminos”, obrigados a pagar uma taxa mensal, embora continuassem sem luz nas ruas nem água encanada.

Muitos não resistiram e foram embora, transferindo as terras, ainda em nome da Unifag, a famílias de classe média baixa que procuravam um lugar “tranquilo” para morar. Francesca Andrade Gomes, hoje uma das líderes da comunidade, e o marido João, metalúrgico da Villares, estavam entre os que chegaram nessa leva, em 1992. “Foi o motorista de ônibus que falou de Vargem Grande para o meu marido. Viemos conhecer. Era longe, mas achamos lindo; fizemos dois cômodos e quando a gente abria as janelas, o beija-flor entrava”, lembra Francesca.

Diante do gravador ligado, todas querem falar, exibir documentos, reiterar que pagaram por suas terras, explicar os detalhes das brigas que se estendem até hoje entre as diversas associações de bairro. Relembram o trabalho que elas e os maridos tiveram para construir a primeira escola fundamental – hoje municipal, com 1.900 alunos (há mais duas estaduais) –, abrir as ruas. Contam as muitas cobranças por mais linhas de ônibus (agora uma para o Terminal Varginha e outra para o Terminal Santo Amaro), o posto de saúde, a água encanada, a luz.

Relatam inúmeras tentativas de regularizar a situação, os votos dados a políticos que prometiam ajudar, sendo que os únicos representantes do poder público a aparecer por ali fora das eleições eram da polícia florestal e da Secretaria do Meio Ambiente. Foram eles que trouxeram a notícia, em junho de 1995, de que o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico (Condephaat, subordinado à Secretaria da Cultura de São Paulo) havia aprovado o tombamento da Cratera de Colônia, o que dificultaria ainda mais a vida dos moradores de Vargem Grande. Para espanto geral, descobriram que, além de apontado como ameaça à Mata Atlântica e aos mananciais, o sonhado bairro havia sido assentado em cima de outra riqueza, essa geológica, datada de milhões de anos.

Vida urbana na rua 30

Circulando pela rua 30, artéria comercial do bairro – e uma das oito ruas calçadas –, sente-se claramente a distância entre o projeto turístico (leia quadro) e a realidade de Vargem Grande. Com exceção de uma quadra meio abandonada, que pelo planejamento inicial do loteamento deveria ser um parque, não há nenhuma árvore. Crianças e adolescentes divertem-se com videogames e peladas e os mais velhos se reúnem na lan house e nos bares que tocam pagode e funk nas noites de fim de semana. “Eles não percebem o lugar diferente onde moram, parecem os jovens de qualquer periferia”, diz a diretora de escola Reginalda Silveira.

O lixo atirado nas ruas acumula-se pela falta de coleta e os córregos mal cheirosos ameaçam a saúde de todos. Ainda assim, a prefeitura tem um projeto de um parque e já começou a enviar notas de desapropriação às quase 2 mil famílias que seriam removidas para concretizá-lo.

“Somos contra a remoção de qualquer um dos 56 mil moradores daqui. Afinal, todos pagaram pela terra e o poder público limitou-se a fornecer um mínimo de infraestrutura quando não tinha mais o que fazer”, diz Francesca. “Nem os comerciantes acreditam em lucrar alguma coisa com esse tal complexo turístico. Quem em sã consciência­ acredita que alguém viria passear por essa periferia pobre?”, afirma a líder comunitária.

Entre os donos dos 55 estabelecimentos que ocupam a rua 30, a descrença com o projeto do parque é geral. “O que queremos é que a subprefeitura cumpra a promessa de regularizar o bairro para que a gente possa tirar os alvarás”, diz Everaldo Silva, 39 anos, ex-confeiteiro do bairro de Moema, na zona sul, hoje dono de padaria. Com 24 funcionários, Everaldo trabalha das 6h às 22h, consome 150 quilos de farinha por dia para fazer pão e bolo e ainda não conseguiu acompanhar a demanda pelo frango assado (R$ 11) e a porção de costela (R$ 12), que sempre acabam antes do meio-dia. O sucesso permitiu abrir mais uma mini-padaria e um lucro de 500% sobre o capital investido.

Cássia, dona da única academia de Vargem Grande, com 200 alunos, já recebeu a notificação da prefeitura, desapropriando parte de seu estabelecimento. “Na maquete, essa área e mais dez casas serão ocupadas por um estacionamento. Faz sentido?”, pergunta, mostrando a rua de terra cortada por um córrego parcialmente canalizado por sua própria iniciativa.
Por causa da resistência enfrentada até agora, a subprefeitura de Parelheiros retirou a maquete de sua sede, alegando que está “em manutenção”, e afirma que ainda não decidiu o futuro de Vargem Grande. Aos moradores, o subprefeito prometeu visitar o bairro e verificar a viabilidade do projeto. Inconformado com a ameaça de despejo, o segurança João Pimentel promete: “Com tudo que já passamos por aqui, se tentarem nos tirar daqui, vai acontecer outra Canudos”.

Turismo?

A cratera de Colônia, com 3.600 metros de diâmetro, profundidade de 150 metros nasbordas e 400 metros no fundo, foi formada pela colisão de um corpo celeste ocorrida entre 5 milhões e 36 milhões de anos atrás. “Esse tipo de formação tem grande valor geológico por guardar marcas da evolução do planeta e da vida”, diz o geólogo Victor Velázquez, paraguaio radicado no Brasil e professor da USP, que há nove anos pesquisa a Cratera de Colônia. “O Centro de Ciência Planetária e Espacial da Universidade de New Brunswick, no Canadá, mantém um banco de dados com a relação de estruturas de impacto descobertas em todos os pontos do planeta. São 176 até agora, entre elas oito crateras brasileiras.”

Análises de amostras divulgadas em 2008 pelo laboratório Genalysis, na Austrália, sustentam a probabilidade de a cratera ter surgido da colisão de asteróides da cauda de um cometa, e não pela queda de um meteorito.

Velázquez explica que o fato de ser um ambiente naturalmente “fechado” traz características específicas para a flora e a fauna da região, reunindo inclusive espécies em extinção. O fundo da cratera funciona como uma “esponja” gigantesca que armazena água da chuva, contribuindo para alimentar a Billings. Para o geólogo, o ideal seria que a população ficasse concentrada na área já degradada, próxima às bordas. E que o presídio Joaquim Fonseca Lopes, “que despeja esgoto a céu aberto no Ribeirão Vermelho”, fosse desativado e usado para abrigar um centro de pesquisas. Tanto o bairro como o presídio estão em área de preservação ambiental.

Velázquez cita o exemplo da Cratera de Ries, na Alemanha, uma das únicas habitadas e polo turístico que atrai gente do mundo inteiro. “Os moradores seriam recompensados pela possibilidade de explorar esse turismo, fortalecendo o comércio e oferecendo serviços de guias nas trilhas”, sonha. Mas o próprio poder público sequer cogita fechar ao presídio, onde vivem 1.300 presos, o dobro de seu limite.