A hora da bandeira branca

Os golpes baixos da campanha deixaram marcas e ressentimentos. E, se o segundo turno revelou uma oposição sem projeto, indicou também que a participação da sociedade na política é fundamental para a governabilidade

Teve de tudo, mas quase nada de política. O Brasil assistiu a uma das mais pobres campanhas eleitorais de sua história, em termos de ideias e debates. As polêmicas alimentadas pela imprensa mais serviram para aquecer os caldeirões de maldades que para trazer o debate de diferenças. Com o fim da campanha e o advento de um novo governo, fica a dúvida sobre como restabelecer laços e o diálogo político, após meses tão tensos. Dessa resposta dependem a chamada governabilidade e a própria democracia. Até o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) espantou-se com o tiroteio. A ministra Carmen Lúcia Antunes Rocha falou em “faroeste”, enquanto o presidente, Ricardo Lewandowski­, declarou que o espaço em TV e rádio é um “horário nobilíssimo, que deve ser utilizado para matéria política”.

O advogado Luiz Edson Fachin, professor titular da Universidade Federal do Paraná (UFPR), observa que as democracias representativas contêm diferenças entre o que é estrutural e conjuntural. No caso desta eleição, alguns limites podem ter sido ultrapassados, pondo em risco a própria governabilidade. “O embate, quando se dá no plano das ideias e propostas, ainda que haja algum agravamento na retórica, é conjuntural, passa. Do ponto de vista da governabilidade, é preciso que fique claro que somente um será eleito. É imprescindível o estabelecimento do limite político. Oposição se opõe ao governo, não ao Estado”, define Fachin.

“Depois desta eleição, é preciso com­preender que uma sociedade democrática é uma sociedade plural”, afirma o professor. Segundo ele, o “discurso plebiscitário” que marcou a campanha – sempre na base do contra ou a favor para tudo – ameaça essa pluralidade. Passada a tempestade, começa a engrossar o coro dos descontentes com o atual sistema político-eleitoral. Uma discussão fundamental para o próximo governo, segundo Fachin, será a reforma política. “É uma pauta tão importante que precisa de um debate com serenidade”, sustenta, lamentando a falta de informações relevantes para a população. “O eleitorado não teve muito esclarecimento sobre as divergências no plano das ideias.”

“A campanha se despolitizou, tornou-se religiosa, moralista”, concorda Renato Janine Ribeiro, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade de São Paulo (USP). Ele lamenta a “falta de capacidade de argumentação”, alerta para riscos políticos e chama a atenção para uma ironia: “Tudo isso (as hostilidades de parte a parte) vem de dois partidos que se originaram da luta contra a ditadura. Muitos estiveram do mesmo lado. No entanto, a hostilidade está enorme”. PT e PSDB, por sinal, mantêm hegemonia no período pós-ditadura. Dos 21 anos de governos eleitos pelo voto direto, 16 foram ligados aos dois partidos. Com o resultado desta eleição, até 2014 terão sido 20 anos em 25, com duas gestões tucanas e três petistas.

Habilidade

Janine acredita que PT e PSDB consigam mobilizar interlocutores para permitir uma convivência razoável na próxima gestão. Do lado dos tucanos, em sua avaliação, essa interlocução viria principalmente dos mineiros. Mas seria preciso que o vencedor “estendesse a mão”, basicamente às lideranças moderadas do PSDB, para que o diálogo se iniciasse. “O que passa de certa forma por uma neutralização do Serra, que comandou uma campanha muito agressiva”, acrescenta. O filósofo acredita, porém, que a votação ao fim alcançada por Serra, 44%, o mantenha forte na cena política.

Em seu discurso de reconhecimento da derrota, Serra demonstrou gratidão ao empenho de Geraldo Alckmin – com quem deve estreitar relações para deter um eventual voo solo de Aécio Neves a partir de Minas Gerais. No mesmo momento, o ex-governador paulista sinalizou que a derrota não o aposentará, afirmando que a despedida da batalha não será um adeus da guerra, mas um “até logo”. Já Dilma, em seu discurso de vitória, fez acenos à oposição. “Junto comigo foram eleitos novos governadores, senadores, deputados. Convido a todos, independentemente de cor partidária, para uma ação determinada, efetiva e enérgica em prol do futuro de nosso país, sempre com a convicção de que a nação brasileira será exatamente da grandeza daquilo que nós todos, juntos, fizermos por ela.”

O presidente da Fundação Perseu Abramo, o mineiro Nilmário Miranda, recorre a uma expressão comum em seu estado para defender a importância da interlocução. É preciso “deixar as ideias se confrontarem”. Passado o calor da campanha eleitoral, o ex-deputado acredita que as sequelas do segundo turno tendem a diminuir. “Houve um encolhimento da oposição, especialmente a mais raivosa, que defendia CPIs 24 horas por dia. Tem um grupo ligado a Serra e a FHC que está saindo de cena, sem falar do DEM. O PPS desidratou”, observa. “O tipo de oposição que fazia o PSDB não vai prevalecer. A oposição vai negociar mais”, acredita.

Por outro lado, na opinião de Nilmário, a coligação que apoiou Dilma não é feita apenas de posições progressistas, o que exigirá muita articulação também no campo situacionista. “A revolução democrática é lenta e não se faz com eliminação de adversário. Talvez o grande papel do Lula tenha sido ensinar a se manter sempre aberto à negociação”, avalia.

Projetos

Para a deputada federal reeleita Luiza Erundina (PSB-SP), a iniciativa para a retomada do diálogo deve partir dos vencedores. “E a mulher tem muito mais sensibilidade para isso. A iniciativa deve ser dela (Dilma), estabelecendo pontes, mas também explicitando de forma clara seu projeto de governo. Ela vai ter de explicitar metas, objetivos, prazos, responsabilidades. E isso, a meu ver, tem de ser feito antes da posse”, afirma, calejada por ter comandado a Prefeitura de São Paulo (1989-1992) num tempo em que seu partido, na época o PT, não tinha o hábito de estender alianças fora do eixo ideológico da esquerda.

O procedimento – estabelecer o diálogo a partir de projetos e metas – é válido inclusive para a base aliada, segundo a ex-prefeita. Compromissos com eleitores devem ser traduzidos em compromissos de governo, para que os partidos indiquem nomes com base em diretrizes. A oposição, por sua vez, terá de se reciclar. “PSDB, DEM e também o PPS não foram suficientemente competentes para demarcar seu campo, não têm outro projeto (alternativo ao do governo). Isso foi ruim para o país e também para a candidatura deles. A oposição terá de passar por uma reciclagem, de nomes, métodos e propostas.”

A deputada acrescenta que essa clareza também precisa existir do lado governista, pois o governo Dilma não deve repetir o “equívoco” de reduzir a governabilidade apenas ao Congresso. “Não pode ser apenas uma relação de troca, fisiológica. Mesmo a base ampla do governo Lula foi em grande parte heterogênea, clientelista.” Assim, para Erundina, a relação governo-Congresso precisa ser mediada por uma terceira força: a sociedade, que deve se sentir corresponsável pelo processo político. Para pressionar pelas mudanças – “Não esperem que o Congresso faça uma reforma política” – e também para apoiar o governo, de forma independente. “A base de sustentação popular, que estava dispersa, foi quem deu a Lula condições políticas de se manter no poder”, acredita.

O recado é que, sem participação da sociedade na política, não há política que se salve. E o caminho fica livre para todo tipo de exploração e difusão de informações falsas, como se viu nesta campanha. Um samba composto sob inspiração de um dos mais anedóticos episódios da política brasileira, o da bolinha de papel, lembra: “É bom que saibam que não estamos em guerra/ Que em 31 de outubro essa história se encerra”.

Luta de classes

O jornal português Público viu, no processo eleitoral, um confronto entre dois países­. “De um lado, o Brasil do povo, que vê em Lula sobretudo um líder que tirou 30 milhões da pobreza. Do outro, o Brasil das elites, que vê em Lula sobretudo um populista saloio (rústico). Cenas da luta de classes, em 2010”, definiu a jornalista Alexandra Lucas Coelho. Alexandra comentava o episódio da saída da psicanalista Maria Rita Kehl do jornal O Estado de S. Paulo após a publicação de um artigo no qual ela questionava uma tentativa de desqualificação do eleitorado mais pobre. Enquanto Maria Rita falava em demissão por “um delito de opinião”, o diretor de Conteúdo do jornal, Ricardo Gandour, refutava. “Não é uma demissão. Colunistas vão e vêm”, afirmou ao Público, assegurando que a intenção de mudar a coluna já existia.

Foi mais um episódio do debate truncado, tal como a introdução de temas religiosos durante o processo eleitoral. “Lamento que numa campanha presidencial temas que são importantes, mas não prioritários – como aborto e religião –, tenham se destacado”, afirmou o escritor e religioso Frei Betto, durante um ato de juristas e intelectuais realizado na reta final da campanha.

As polêmicas renderam comentário irônico do jornalista Elio Gaspari em coluna publicada duas semanas antes das eleições. “Contumaz retardatário, José Serra conseguiu bater todas as suas marcas. Chegou com 46 anos de atraso à Marcha da Família com Deus pela Liberdade, que juntou 200 mil pessoas no centro de São Paulo manifestando-se contra o governo de João Goulart. (…) Quem deu musculatura à manifestação foram organizações religiosas e líderes políticos.”

Na mesma entrevista ao Público, o veterano jornalista Janio de Freitas, da Folha de S.Paulo, observou que existe de fato um mal-estar nas relações entre imprensa e governo. “Criou-se na imprensa brasileira uma indisposição quanto a Lula e à continuidade do governo por intermédio de Dilma. Mas não há nenhuma indicação objetiva de que Lula fosse criar constrangimentos à imprensa. A imprensa brasileira é muito forte politicamente e é um grande poder. Quando se move, geralmente obtém o que quer.”

O colunista identificou também “preconceito de classe” na relação tensa entre imprensa e Lula. “A elite brasileira é extremamente preconceituosa e há uma grande influência desse preconceito quanto a Lula, não apenas neste caso. Essa elite considera intolerável alguém que não saiu da universidade e sobretudo não tem posses. Porque essa elite não é culta, pelo contrário. A parcela culta é muito pequena”, afirmou Freitas.

Na eleição anterior, em 2006, Lula também enfrentou a oposição da imprensa. “Os fazedores de opinião não fizeram opinião, estavam todos contra Lula e Lula foi eleito”, lembrou Maria Rita, para quem o maior defeito do governo “foi não ter combatido eficazmente a corrupção”. Também para Renato Janine Ribeiro, esse pode ser visto como um ponto fraco. “O PT deixou de certa forma a bandeira ética ficar em segundo plano. A preocupação com uma política rea­lista se tornou muito forte.”