Para o trabalho e para a vida

A concepção de ensino técnico defendida por especialistas, educadores e movimentos sociais no Conselho Nacional de Educação sugere corrigir distorções dos objetivos e da organização desse segmento estratégico para o país

Eduardo e Lucas criaram uma prótese para membros inferiores com materiais recicláveis, um dos destaques da Feira Internacional de Ciência e Engenharia (Foto: Juarez Machado)

Uma das bandeiras dos candidatos à Presidência da República, a educação profissional – ou ensino técnico – estará no centro do debate neste mês de agosto. E não é só por causa da campanha eleitoral. Convidados pelo Ministério da Educação (MEC), especialistas e representantes dos professores, dos trabalhadores, dos estudantes e dos movimentos sociais se reuniram para discutir propostas pedagógicas para o setor. As ideias, se apoiadas em uma audiência pública do Conselho Nacional de Educação, prevista para este mês, poderão compor a resolução sobre as Diretrizes para a Educação Profissional Técnica de Nível Médio.
“Esperamos a aprovação para que possamos, enfim, ter uma formação sólida para o mundo do trabalho, e não mais um modelo­ superficial, ditado pelas regras exclu­dentes do mercado”, afirma a professora Marise­ Ramos, pesquisadora da Faculdade­ de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e integrante da comissão formada pelo MEC.

O mercado, como ela salienta, não deve ser o objeto da formação, mas precisa se relacionar­ com a educação tecnológica numa perspectiva do desenvolvimento da capacidade produtiva do sujeito – o trabalhador. A educação voltada para atender só ao capital tem conteúdos organizados de maneira superficial, que podem mudar de acordo com o contexto socioeconômico. Já a formação que Marise e os setores progressistas defendem consistiria de uma sólida base científica e tecnológica que fundamentam os processos produtivos e permitem ao trabalhador compreender e assimilar revoluções e inovações que venham a ocorrer.

O educador Almerico Biondi, superintendente de Educação Profissional do governo da Bahia, diz que as diretrizes que ajudou a formular são norteadas pela vinculação entre a educação básica e a profissional e por princípios educativos que respaldem a formação sólida – aquela que desenvolve uma inteligência individual e social, além da profissional. Ou seja, para qualquer ramo de atividade técnica que venha a escolher, o indivíduo precisa ter acesso a um patrimônio pessoal de conhecimento.
“O desenvolvimento social, econômico e ambiental em curso no país exige a formação de técnicos que, mais do que apertar botões, compreendam os fundamentos científicos e tecnológicos do sistema produtivo onde atuam e também o contexto socioeco­nômico no qual estão inseridos”, sustenta Biondi. O documento, segundo ele, pela primeira vez coloca a formação profissional como direito e é também uma resposta ao atual modelo que, entre outras coisas, culpa o trabalhador pela falta de “capacitação”,­ por ser inexperiente, ou velho e ultrapassado ou até por morar longe do trabalho e representar mais tempo e custos com transporte.

“Temos de superar a ideologia que obriga os trabalhadores a se adaptar às incertezas de um mercado de trabalho baseado na pedagogia das competências, que preconiza o seu conformismo diante de uma realidade em que somente alguns são empregáveis”, completa Rosana Miyashiro, coordenadora pedagógica da Escola de Turismo e Hotelaria Canto da Ilha, em Florianópolis, ligada à CUT. Para ela, o cenário de crescimento econômico previsto para os próximos anos exigirá uma estratégia de desenvolvimento sustentável,­ pautada pela cidadania e pela inclusão. “E a educação profissional, ferramenta no processo de ampliação das capacidades do trabalhador, é fundamental”, diz.

Longa história

O modelo de formação profissionalizante brasileiro tem raízes assistencialistas e data de 1840, quando foram criadas nas capitais as chamadas casas de educandos e artífices. Conforme Francisco Cordão, no livro Ensino Médio e Ensino Técnico no Brasil e em Portugal – Raízes Históricas e Panorama Atual, a criação desses espaços, bem como dos “asilos da infância e dos meninos desvalidos”, visava também a redução “da criminalidade e vagabundagem”. Depois de alfabetizados, os menores eram levados para o trabalho em oficinas públicas. Em 1910, o governo construiu 19 escolas profissionalizantes em várias regiões, que até o início de 1940 se limitavam a treinar para tarefas simples, repetitivas, em série.

A Constituição de 1937 previa a existência de escolas vocacionais e pré-vocacionais para as classes pobres, mantidas pelo Estado em colaboração com as indústrias e os sindicatos. O Senai e o Senac surgiram entre 1942 e 1946. Nesse mesmo período, foram definidas as Leis Orgânicas da Educação Nacional, que consolidaram o ensino secundário, normal e superior para “formar as elites condutoras do país” e o profissional para os filhos do operariado, que precisavam ingressar cedo na força de trabalho da industrialização.

Em 1971, quando a política desenvolvimentista dos militares exigia operários que produzissem mais e em tempo menor, o ensino de 1º e 2º graus foi reformado e a educação técnica de nível médio, universalizada. A medida – também para brecar o acesso ao ensino superior – levou à abertura de centenas de cursos, muitos distantes das demandas reais, oferecidos em classes de ensino regular e supletivo, sem instalações adequadas, professores capacitados e tampouco carga horária necessária para habilitar­ um técnico. Com o fracasso da experiência, essa modalidade voltou a ser restrita às escolas técnicas. “Nos anos 1980, houve um salto de qualidade e o segmento­ se tornou modelo. Era o chamado ensino de excelência”, afirma Silvia Elena de Lima, secretária-geral do Sinteps, o sindicato dos trabalhadores em escolas técnicas e faculdades de tecnologia estaduais paulistas e co-autora do livro Os (Des)Caminhos da Educação Profissional e Tecnológica no Estado­ de São Paulo.

Acima da média

Na época, o ensino regular público já perdia investimentos e qualidade. As redes técnicas passaram a atrair os filhos da classe média voltados para o vestibular das universidades públicas já elitizadas. Com o aumento da demanda, foram instituídos os vestibulinhos para ingresso – ou seja, de antemão, os alunos que ingressam nessas escolas já são acima da média. A clientela selecionada, em escolas bem equipadas e com professores concursados, de excelente formação – com no mínimo especialização, e muitos com mestrado e doutorado – acentuou a diferença, que se mantém até hoje.

Dados do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2009, divulgados em julho, mostram o desempenho acima da média dos alunos dessas escolas. Os da Federal do Paraná, campus de Curitiba, obtiveram a primeira colocação não só naquele estado como em toda a região Sul. Na capital paulista, com escolas particulares consideradas top, o Centro Federal ficou em quinto lugar. No Ceará, a melhor média de todo o estado vem de alunos matriculados no ensino técnico mantido pela União.
Reitor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Cláudio Ricardo Gomes de Lima diz que é comum os alunos se destacarem também em competições científicas e matemáticas. “O bom desempenho no Enem se deve à formação que integra as disciplinas acadêmicas desta etapa às de cunho técnico, aos professores bem preparados, à pesquisa e ao desenvolvimento de projetos que consolidam o aprendizado que privilegia o raciocínio e o conhecimento, e não a decoreba”, explica o gestor.

Outro diferencial dos alunos da rede técnica é participação vitoriosa em mostras estu­dantis de ciência e tecnologia. Em maio, a Feira Internacional de Ciência e Engenharia, maior evento pré-universitário realizado nos Estados Unidos, concedeu 16 prêmios e duas menções honrosas a 11 estudantes brasileiros. Sete deles de escolas técnicas. Karoline Elis Lopes Martins, 18 anos, aluna do curso de Edificações do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet) de Minas Gerais, em Belo Horizonte, recebeu três prêmios, que totalizaram­ US$ 13 mil, pelo projeto de construção, com garrafas PET, de um canal integrado a um sistema de água e de tratamento de resíduos. Aspirante à graduação em Engenharia Hidráulica, ela sempre quis cursar ensino médio profissionalizante. “As instalações das escolas e a qualidade dos professores são fundamentais na qualidade do ensino”, resume.

A Fundação Escola Técnica Liberato Salzano Vieira da Cunha, de Novo Hamburgo (RS), foi destaque com as premiações de William Lopes, autor de um projeto de utilização de um fungo no tratamento de águas residuais, e de Eduardo Trierweiler Boff e Lucas Strasburg Ferreira, ambos com 18 anos, que projetaram uma prótese para membros inferiores, de baixo custo, a partir de materiais recicláveis. “Acredito que as aulas de metodologia científica me ensinaram muito, principalmente a me organizar e organizar o meu aprendizado”, diz Lucas, que já trabalha numa indústria e se prepara para cursar Engenharia. “O ensino técnico­ faz muita diferença na vida da gente. Trabalho numa grande empresa onde quase todos foram selecionados na escola em que estudei”, diz o colega Eduardo, hoje graduando­ em Engenharia.

Adequação

Nos anos 1990, marcados pela desindustrialização e o desemprego, o Estado reduziu a oferta de ensino profissionalizante. Surgiram cursos particulares, superficiais, de curta duração, sobretudo para o setor de serviços, e a iniciativa privada assumiu a requalificação de seus trabalhadores. No final de 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional desobrigou a vinculação da educação profissional ao ensino médio. No ano seguinte, com o Decreto 2.208, o governo de Fernando Henrique Cardoso fragmentou a educação técnica integrada, reduzindo a oferta de vagas nesse nível de ensino. As poucas escolas que as mantiveram empobreceram seus currículos, mas a peneira continuava forte. Restava aos estudantes mais pobres sair do ensino médio direto para o mercado de trabalho, sem nenhuma qualificação, para ganhar salários baixos, até que pudessem investir na própria qualificação.

Outra opção era abrir mão do nível médio em prol de uma formação profissional básica, também com baixa remuneração. Como na época não existiam políticas afirmativas, apenas o mais favorecidos ingressavam no ensino superior. “Faltam estudos sobre o impacto da fragmentação do ensino técnico, mas observações mais atentas mostram um apagão de mão de obra nos anos seguintes. Faltaram desde trabalhadores com capacitação básica até de nível superior”, diz Almerico Biondi, que entre 2003 e 2007 chefiou o Departamento de Qualificação no Ministério do Trabalho e Emprego. “A desarticulação do ensino profissional com o ensino básico é ruim para a formação do trabalhador e para o Brasil. O fruto da baixa escolaridade é o trabalho precário, a sub-remuneração, as migrações, que não trazem benefícios para ninguém.”

Em 2004, mesmo com a pressão de setores ligados à educação privada no Congresso Nacional, foi aprovado o Decreto 5.154, que revogou o 2.208. O ensino técnico voltou a ser vinculado à educação básica, foi assegurado o cumprimento da formação geral e da preparação técnica, com ampliação da carga horária do curso. “O decreto do presidente Lula resgatou a integração, mas de maneira opcional. E nem todos os estados aderiram”, observa Silvia Elena de Lima, do Sinteps.
São Paulo não aderiu. E a rede estadual continuou com os conteúdos separados e dupla jornada escolar: num período o aluno cursa o ensino médio, com duração de três anos, e no outro período, o ensino técnico, que dura dois ou três semestres. De acordo com Silvia Elena, quando o técnico era ministrado juntamente com o ensino médio, o conteúdo profissionalizante era desenvolvido ao longo dos três anos de curso, e solidificado junto com os conteúdos de Português, Matemática, Física, Biologia e Química, e enriquecido com Literatura, Artes e Línguas. “Havia envolvimento do aluno, e sua formação era mais completa. Atualmente com dois ou três semestres, no máximo, o conteúdo é reduzido, o tempo de absorção é muito menor, e é muito mais difícil os alunos se envolverem no cotidiano da escola”, diz a sindicalista.

Priscila Gaspar, estudante de Logística na Escola Técnica Estadual Basilides de Godoy, da Vila Leopoldina, zona oeste da capital paulista, não se incomoda de estar o dia todo na escola. Pela manhã, cursa as disciplinas acadêmicas e à tarde, as profissionalizantes. “Quando eu estava para concluir o ensino fundamental numa escola particular, comecei a pensar num colégio que oferecesse ensino de qualidade pelo menos igual ao da antiga escola, que fosse perto de casa e gratuito”, diz Priscila. “Embora pertença ao Estado, é uma escola diferenciada. Não é como as demais estaduais.”

Em 2005, o governo federal começou a expansão da sua rede. Até o final deste ano, terá entregue um total de 214 escolas. Outras unidades foram federalizadas com a reorga­nização. No total, serão mais de 500 mil vagas até o final do ano. Segundo Eliezer Pacheco, secretário de Educação Profissional e Tecnológica do MEC, há ainda acordo com o Senai e o Senac, que estão trazendo mais vagas de cursos técnicos e profissionalizantes a estudantes e trabalhadores de baixa renda. Dois terços dos recursos dessas entidades devem financiar a oferta gratuita dos cursos. O MEC transferiu recursos para as redes estaduais destinadas a construção, ampliação, reforma, compra de equipamentos e formação de professores na área de ciên­cias.

As redes estaduais também têm investido. Em São Paulo, nos últimos dez anos, em parcerias com os municípios, foram entregues 41 unidades – hoje são 186 escolas técnicas, em 158 municípios. Mas os trabalhadores da rede estadual lamentam a falta de investimentos em pessoal e equipamentos. Na rede federal, os servidores dizem acompanhar de perto uma ampliação tão grande que esbarra em questões como atraso na entregas das obras ou equipamentos. “Mesmo acreditando que muitos dos problemas sejam frutos da fase de implantação e serão resolvidos, estamos atentos”, diz Ricardo Eugênio, coordenador nacional do Sindicato Nacional dos Servidores Federais da Educação Básica e Profissional (Sinasefe).

O debate das questões filosóficas e pedagógicas e a ampliação da rede técnica, no entanto, são insuficientes. “Buscamos também novos modelos de financiamento para garantir as atuais conquistas para que as gerações futuras não venham a sofrer retrocessos”, ressalta o reitor Cláudio Ricardo Gomes de Lima, do IFCE. O principal deles, segundo o educador cearense, é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 24, que se encontra na Comissão de Constituição e Justiça do Senado e prevê a criação de um fundo para a educação profissional.

Para o engenheiro mecânico Regivaldo Claudino de Souza, de São Paulo, o debate em torno do ensino técnico é fundamental. Com dois cursos profissionalizantes de nível médio no currículo – Mecânica e Eletrotécnica –, ele credita à formação técnica o acesso a melhores postos de trabalho e a salários que o permitiram viver bem enquanto estudava para obter o tão sonhado diploma de engenheiro. Atuando hoje no setor de assistência técnica de uma empresa multinacional, Regivaldo diz que a bolsa paga a estagiários técnicos que ele está recrutando é bem superior à media recebida por estagiários de nível superior. “Por essas e outras, já converso com meu filho sobre começar a formação profissional a partir de uma escola técnica.”

Tecnologia no campo

Em Água Doce, interior de Santa Catarina, está localizado o Centro Estadual de Educação Profissional Agrotécnico Prof. Jaldyr Behering da Silva. Nessa verdadeira fazenda, cerca de 200 estudantes recebem formação técnica em agropecuária. A maioria deles frequenta o curso integrado ao ensino médio regular. Quando concluírem o curso e o estágio, poderão ir para a universidade ou trabalhar em propriedades voltadas à produção agrícola e pecuária ou indústrias de processamento. “Já tivemos aluno que veio do Pará”, conta o professor Lindomar Menegati, hoje assessor de direção da unidade. Com um programa que inclui tecnologias para o aumento da produção de alimentos e ao mesmo tempo o respeito ao meio ambiente, além de parcerias com grandes empresas e entidades, o professor Lindomar sente falta apenas do acesso a equipamentos de última geração, como instrumentos usados na agricultura altamente mecanizada ou de precisão, que tem levado o Brasil ao topo da produção de alimentos.