Nova safra de leitores

Programa leva mais de 2 milhões de livros a comunidades rurais, semeia o interesse pela alfabetização e colhe a paixão pela leitura

Crianças se entregam aos livros no quilombo Chácara das Rosas, perto de Porto Alegre. Rafael (de camisa branca) quer melhorar e ler todos (Foto: Andréa Graiz)

“Pra leitura, achei que o mundo tinha acabado para mim.” Dona Maria Virgínia só aprendeu a ler aos 81 anos, em 2009. Por isso celebra cada livro lido e recorre continuamente à pequena biblioteca de Choro Pedrinha, um distrito de Cascavel (CE). “Leio antes de dormir e até quando estou fazendo o almoço”, diz, orgulhosa. Distante quase 60 quilômetros de Fortaleza e uma hora do centro de Cascavel, o lugarejo não tinha biblioteca nem para auxiliar nas pesquisas escolares. Essa página foi virada em outubro de 2009, com a inauguração de uma minibiblioteca. Foi o ponto de partida para que 130 famílias do povoado passassem a ter um contato inédito com livros. E para que a agente de saúde Maria Iracilda pudesse ajudar outras pessoas, entre elas sua mãe, Maria Virgínia, a encontrar sentido nas palavras escritas.

Na casa de Maria Iracilda estão acomodados em uma caixa-estante os 220 livros cedidos a Choro Pedrinha pelo programa Bibliotecas Rurais Arca das Letras. Lançado em 2003 pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), a iniciativa é dirigida a famílias de agricultores, assentados da reforma agrária, pescadores, quilombolas, indígenas e ribeirinhos. Para fazer o material chegar a essas populações, o MDA se vale de parcerias com outros órgãos públicos, como superintendências regionais do trabalho, secretarias de agricultura e com sindicatos de trabalhadores rurais. Nas comunidades, voluntários – como Iracilda – são treinados para ser agentes de leitura, incentivar a participação da população e cuidar dos empréstimos dos livros. Mais de 15 mil agentes em todo o país já receberam esse treinamento.

A filha de dona Maria Virgínia mantém a sua “biblioteca” aberta diariamente até as 21h. “Empresto muitos livros. Eles são como filhos para mim, tenho ciúme, peço cuidado. Eles são um orgulho muito grande porque a gente não tinha livro nem para pesquisa escolar. Isso está mudando bastante a aprendizagem aqui”, afirma Iracilda, que tem um filho de 6 anos já apaixonado pelo acervo.

Ao todo, já foram inauguradas 7.620 bibliotecas em 2.490 municípios. Mais de 2 milhões de livros foram distribuídos, principalmente em áreas rurais. “Esse povo é invisível e o objetivo das arcas é ajudar essas pessoas a conquistar visibilidade. Em sete anos já vemos um aumento do índice de leitura no campo, estamos conseguindo atingir o objetivo de formar lideranças culturais e de inserir a biblioteca na vida dos trabalhadores e estudantes do campo”, avalia Cleide Cristina Soares, coordenadora de Ação Cultural do MDA e do programa Arca das Letras.

Colheita futura

Quando a associação do pequeno bairro de São Miguel, em Cachoeira Paulista, no Vale do Paraíba (SP), reivindicou ao MDA uma Arca, o diretor Laurindo Pinto já sabia quem convidaria para ser agente de leitura. Ana Júlia de Carvalho, de 17 anos, aprendeu a ler aos 4 com a ajuda da mãe, Maria José, que só estudou até a 5ª série. Afora os livros da escola, a biblioteca mais próxima está a mais de 40 quilômetros, pelo menos 35 deles de estrada de terra de difícil acesso.

Os livros chegaram no final de 2008 e eram o assunto de Ana Júlia em todas as quermesses, reuniões de pais e festinhas. Ela espalhou cartazes no posto de saúde e na paróquia convidando todos a visitar a Arca das Letras, que naquela época ainda estava em seu quarto. Quando percebeu que o espaço era pequeno demais para o móvel, levou o acervo para a escola. Apesar da empolgação, ela admite que a tarefa não é simples. “É difícil, mas está acontecendo. Por enquanto são os alunos da escola os que mais pegam emprestado, mas nosso desafio é que todos façam o mesmo. Eu já conheço o gosto de todo mundo aqui, então indico, explico, incentivo”, conta a voluntária.

Ela sabe, por exemplo, que o vizinho da escola, Renan César dos Santos, de 15 anos, gosta de aventuras e contos. “Só comecei a ler quando essa biblioteca chegou. Antes só jogava futebol e ajudava meu tio na vendinha. A leitura abre os horizontes, a gente fica mais evoluído”, diz o tímido Renan.

Ainda que lentamente, as mudanças no bairro começam a aparecer. E até dentro da casa da agente de leitura. Há tempos ela insiste para que a mãe volte a estudar. Maria José, de 32 anos, não gosta muito de ler, mas faz planos para o próximo ano. “Agora que meus três filhos estão grandinhos, posso voltar para a escola. A Ana fala sempre: ‘Eu não vou desistir de estudar’. Eu sinto muito orgulho disso que ela está fazendo aqui.”

Prestes a acabar o terceiro ano do ensino médio, Ana pretende fazer Direito ou História. “Com boa vontade, acho que consigo. Já não estou trazendo a leitura pra minha comunidade?”, questiona. O diretor da escola, que deu aula para Ana e Maria José, vê avanços: “Antes os alunos liam só aqueles livros que os professores pediam. A Arca complementou a biblioteca da escola e a Ana está espalhando o encanto da leitura na região”, diz Laurindo.

Virar a página

De acordo com a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, são lidos 4,7 livros por habitante ao ano, contabilizando os didáticos, número que cai bastante quando se leva em consideração apenas os lidos fora da escola: 1,3 por habitante ao ano. As dificuldades aumentam nas cidades menores, onde os moradores são os que menos leem revistas e livros, os que não gostam de ler (59%, chegando a 76% entre os mais idosos) e não frequentam bibliotecas (83%). Nesses locais, as dificuldades declaradas pelos entrevistados configuram um quadro de má formação das habilidades necessárias à leitura: 17% leem muito devagar, 7% dizem não compreender o que leem, 11% não têm paciência e 7% não têm concentração.

É contra esses obstáculos que luta a artesã e dona de casa Rosa Maria, de 52 anos, moradora do quilombo Chácara das Rosas, em Canoas, na Grande Porto Alegre. Seu filho Rafael, de 8 anos, trouxe no boletim da 2ª série a preocupante notícia de que sua aprendizagem está atrasada. “A professora me aconselhou a procurar aula particular e eu vou tentar que ele melhore. Ele forma as palavras, mas tem dificuldade”, preocupa-se a mãe, que também recorre à Arca. “Quero melhorar pra ler todos os livros”, diz Rafael.

Apesar de ser um quilombo urbano, o programa chegou ao bairro Marechal Rondon em 2009 por reivindicação da Associação Remanescente de Quilombo Chácara das Rosas. A assistente social Isabel Cristina Genelício, coordenadora da entidade, afirma que a biblioteca da cidade não é distante dali, mesmo assim os moradores não a frequentam. “Fica no Centro, é só para a elite. Quando vamos lá, os olhares nos constrangem. Apesar de ainda estar devagar, agora temos a Arca”, afirma Isabel, que sugere a inclusão de livros com temática racial no acervo.

A composição da biblioteca muda de acordo com o perfil da comunidade, mas praticamente todas contam com autores consagrados como Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Luis Fernando Verissimo, Mario Quintana, Clarice Lispector, Shakespeare, Franz Kafka, entre outros. Também há livros de história, alguns técnicos e muitos gibis, que são, disparado, os preferidos em praticamente todos os povoados. No ano passado, o quadrinista Mauricio de Sousa doou para o projeto 300 mil gibis que já se espalharam pelos rincões do Brasil.

Eles estão fazendo o maior sucesso em Viana (ES), a 22 quilômetros de Vitória. Aberta em meados de maio no Quilombo Vila de Araçatiba, a Arca já conquistou adeptos. As agentes de leitura Rosinéia do Nascimento Cristóvão, de 32 anos, e Renata Gomes Alves, de 17, ainda não a inauguraram oficialmente. “Queremos promover um teatro baseado em algum livro para lançar de verdade o projeto. Quando fizermos isso, tenho certeza de que os livros de literatura vão sair mais. Por enquanto, o que mais sai são os gibis. Meu filho Adriel, de 10 anos, ama. Adrieli, de 9, gosta menos, mas já começou a pegar gibis. O começo é assim mesmo, né?”, diz Néia, dona de casa e artesã que também participa do projeto de geração de renda chamado Costurarte, em cuja oficina está o baú de livros.

A coordenadora do Fórum Comunitário de Araçatiba e mobilizadora do Costurarte, Janne Coutinho, está empolgada. “Nossa ideia era que a Arca não fosse uma extensão da biblioteca da escola. Às vezes, um idoso fica acanhado de ler na escola e, por isso, ter uma biblioteca aberta a todos é muito importante”, opina. “Quando a pessoa tem acesso à informação, ela não se sente à margem, percebe seu potencial e sabe que é capaz de se situar no mercado.”

Chegar longe

No ano passado, o professor Geraldo Prado, criador da maior biblioteca comunitária do mundo, em São José do Paiaiá, distrito de Nova Soure (BA), realizou a pesquisa Bibliotecas Comunitárias como Território de Memória no Semiárido Brasileiro, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Geraldo andou por 254 municípios, do Maranhão ao Espírito Santo, e mapeou as bibliotecas comunitárias de cidades com até 50 mil habitantes. O professor constatou que as bibliotecas públicas municipais funcionam pouco e precariamente. Por outro lado, acompanhou de perto o aumento no índice de leitura a partir de iniciativas das próprias comunidades.

“Em mais de 90% dos casos, o poder público não tinha interesse na manutenção das bibliotecas municipais. Uma parte das iniciativas comunitárias é formada pela Arca das Letras e mais ou menos 80% estão funcionando satisfatoriamente, com resultado interessante para a população”, afirma Geraldo, que garante nunca ter visto um camponês do alto sertão, no semiárido, com um livro na mão. “Por isso achei a iniciativa brilhante. Mas, apesar de ser difícil, é preciso fazer um acompanhamento mais sistemático do projeto para potencializar o efeito.”

A coordenadora do programa, Cleide Cristina Soares, sabe disso. A cobrança pela atualização dos acervos é um dos problemas a serem resolvidos. Segundo ela, obras são enviadas com regularidade às comunidades, mas como a maioria é distante das cidades, muitas vezes retornam ao remetente porque ninguém aparece a tempo de retirá-las na agência dos Correios.

Obras técnicas sobre agricultura, pecuária, piscicultura e trabalhos sobre cultura quilombola e indígena são pedidos constantes dos agentes. “O acervo é bom, tem títulos que são raros no mercado, mas é importante complementar com obras sobre nossa cultura”, sugere Janne, do Quilombo Vila de Araçatiba.

Cleide aponta a dificuldade de conseguir doação de livros técnicos e afirma que os agentes recebem treinamento para fazerem, juntamente com a comunidade, a gestão coletiva de seus acervos. “Incentivamos que eles façam campanhas locais de doação de livros, com os autores próximos, de cultura local. Temos várias bibliotecas, com 2 mil, 3 mil e até 4 mil livros, que foram conquistadas sozinhas.”

É um cultivo que não para de crescer. Mais de 80 mil comunidades manifestaram interesse em receber o baú de livros. Sinal de que a colheita promete mais frutos, como a alfabetização de dona Maria Virgínia e a leitura fluente de Rafael. Para que o projeto tenha continuidade, Cleide afirma que está sendo criada a Rede Nacional de Bibliotecas Rurais. “Apesar das dificuldades, nossas bibliotecas estão ajudando muitas pessoas. A criação da rede é importante para que elas não acabem caso outra equipe assuma. Será um forte espaço de mobilização e fortalecimento para que os livros cheguem cada vez mais longe.”