entrevista

Sangue de índio

Wellington Dias, que deixou o governo do Piauí em abril, conta como mudou a política e o IDH no estado, que já foi o mais pobre do país

Benonias Cardoso

Wellington Dias, ex-governador do Piauí

Wellington Dias foi bancário do Banco do Nordeste, do Banco do Estado do Piauí e da Caixa Econômica Federal. Presidiu a Associação de Pessoal da Caixa (Apcef) e o sindicato dos bancários de seu estado. Foi vereador, deputado estadual e federal e venceu no primeiro turno as duas eleições que disputou para governador, ambas contra políticos tradicionais. Em 2002 recebeu 51% dos votos, contra 44% de Hugo Napoleão. Em 2006, foram 61%, contra 25% do segundo colocado, Mão Santa. Dias deixou o governo do Piauí em abril com mais de 80% de aprovação para disputar uma cadeira no Senado, em outubro. Quando assumiu, em janeiro de 2003, enfrentou economia e autoestima em baixa: o PIB local era de R$ 7 bilhões, e chegou aos R$ 18 bilhões em 2009. Pesquisas locais apontavam que apenas metade da população, mais precisamente 51%, se dizia orgulhosa de ser piauiense. No final de 2009, essa taxa de autoestima estava em 88%. O Piauí terminou o século 20 na condição de estado mais pobre do Brasil – IDH (que vai de 0 a 1) na casa de 0,5 – e deve chegar à próxima década em 0,8. Isso se deve a um plano de modernização baseado em 40 metas relacionadas a qualidade de vida, algumas já são alcançadas: “Estamos completando este ano algo que vai ser novidade no Brasil: o acesso a todo o ciclo de educação, da pré-escola à pós-graduação, nos 224 municípios do Piauí”.

Como o Piauí, promessa econômica do século 19, tornou-se essa tristeza social do final do século 20?
O Piauí completou, no ano passado, 250 anos da sua criação. É um estado diferente dos outros porque foi ocupado do litoral para o interior a partir do ciclo do gado. E chegamos ainda no período depois da proclamação da República a ter um estágio internacional, o sexto maior exportador brasileiro. Veio a Revolução Industrial, e  ficamos de fora. Depois a Revolução Tecnológica, e outra vez o Piauí ficou de fora. A consequência é que outros estados avançaram e chegamos à posição de lanterninha brasileiro no final do século passado. Isso porque, apesar de ser um estado riquíssimo, houve erros de condução, por várias gerações. Há algumas teses de doutorado da Universidade Federal do Piauí. A do professor Roberto John analisa o período de 1940 a 1990 e conclui que havia um esquema para que todo recurso público pudesse ser distribuído entre algumas pessoas de algumas famílias. E, assim como em outras regiões do Brasil, a pobreza passou a ser uma necessidade da elite. Então, tanto não ter renda como baixa renda ou baixa escolaridade passou a ser um instrumento de dominação. Chegamos a ser praticamente o pior Índice de Desenvolvimento Humano do país, a mais baixa renda per capita, com uma  imensa população analfabeta ou com baixa escolaridade. Foi essa a situação que encontramos no início deste século, no ano de 2002. Trabalhamos então num plano de longo prazo, um conjunto de metas, programas, obras e ações para duas décadas.

Nessas regiões onde a pobreza é grande, o nível de acesso das pessoas à informação também é ruim. Como romper com isso?
Se você perguntar a qualquer brasileiro a imagem que tem do Piauí, verá que ele tem uma imagem distorcida. Terra rachada, caveira de gado na seca à beira das estradas, menino tocando jumento com ancoretas carregando água, retirantes com trouxas nas costas. Essa foi a imagem amplamente propagada. Eu não quero negar que isso também era uma realidade, mas apenas em algumas regiões. Encontramos o estado muito desorganizado, tinha perdido a capacidade de investimento, uma dívida quase duas vezes maior que a receita própria. Atrasava pagamentos, encargos, não conseguia prestar contas dos convênios que fazia com a União. Quando assumi, em 2003, tivemos de tomar medidas duras. Encerrei 35 mil contratos ilegais, tive de fechar 12 secretarias, cortar 30% dos cargos em comissão. Introduzimos uma nova cultura política. E a forma de quebrar isso é o ingresso do servidor por meio de concurso público, selecionar da sociedade o que ela tem de melhor para compor a estrutura do estado. Apostamos na qualificação. Passamos a criar uma forma de remuneração, uma parte é fixa e outra variável, de acordo com a produtividade. Passamos a demitir pessoas por justa causa, as que não trabalhavam, que cometiam irregularidades. Já são mais de 1.100 demitidas desde 2003, e isso vai criando um novo parâmetro.

Qual era o número do funcionalismo em 2003 e quanto é hoje?
Era 100 mil. Hoje, 70 mil. Ao mesmo tempo, era preciso informatizar com equipamentos modernos. A arrecadação era nas cancelas. Hoje temos a nota fiscal eletrônica. Era preciso investir ao mesmo tempo em educação, saúde, segurança… Estamos completando este ano algo que vai ser novidade no Brasil: o acesso a todo o ciclo de educação nos 224 municípios do Piauí. Seja em Alegrete, que tem 4.000 habitantes, seja na capital, com 800 mil, todos têm acesso a alfabetização, ensino fundamental, médio, profissionalizante, ensino superior ou pós-graduação, especialização. Estamos com uma rede com 50 bases presenciais de ensino profissionalizante e superior. A partir de cada cidade-polo, trabalhamos a implantação do ensino, que é um misto de presencial e a distância. Com o uso da tecnologia, posso ter professores com doutorado, mestrado, espalhando conhecimento em todas as regiões. Fizemos uma divisão do estado em 11 territórios de desenvolvimento. A partir do potencial de cada região, planejamos tudo. Por exemplo, a região de Bom Jesus, sul do Piauí, polo dos Cerrados, se tem potencial para a produção de soja, milho, algodão, feijão, frango, se tem potencial para o florestamento, como imaginá-la sem um curso de Agronomia, de Veterinária, de Engenharia Florestal? Criamos base nessas áreas, e a partir daí temos ensino técnico e superior.

Como o estado lida com a necessidade do acesso à banda larga?
Chegamos a 2009 com 181 dos 224 municípios com a comunicação de velocidade, com banda larga. Vamos chegar agora em julho com 100% dos municípios com banda larga e telefonia móvel, ou seja, é uma revolução. No início da década, tínhamos seis municípios que contavam com isso. Investimos pesado, governo federal, estado e municípios, em habitação. Vamos completar mais de 100 mil habitações, e serão mais de 1.200 novos assentamentos, aliviando a tensão no campo. Há 160 cidades com investimentos na área hospitalar ou adequando o Centro de Saúde, transformando-o em hospital ou equipando-o, desde a estrutura física até a do pessoal. Toda cidade com mercado, cemitério, ponto de cultura, campo de futebol com vestiário, ginásio poliesportivo, calçamento, base de inclusão digital, ou seja, biblioteca. São cerca de 40 itens que listamos como essenciais para a vida e estamos implantando até este ano em todos os municípios. Essas metas vêm impactando positivamente a qualidade de vida das pessoas. O Piauí, no final do século passado, tinha um IDH de 0,5. Agora ultrapassamos 0,7, e a previsão é chegarmos na próxima década na casa do 0,8, que é a média nacional. Vamos ter uma média de escolaridade acima de 12 anos, expectativa de vida acima de 75 anos e renda média per capita na casa de R$ 10 mil, US$ 6 mil.

As pessoas percebem isso, ou foi preciso uma política pública de comunicação para reforçar a divulgação dos atos?
Eu acredito muito no que se faz. Muitas vezes há jornal A ou televisão B dizendo isso ou aquilo. Quando a gente trabalha de modo planejado, as ações sempre chegam para quem mais precisa. A realização de obras como habitação, saneamento, energia, educação, saúde, essas coisas, não há como esconder. A população sabe que tem muita coisa a fazer, mas também percebe. A aprovação do presidente Lula no Piauí chega a 93%. A do meu governo é de 88%. Quando fiz campanha, em 2002, uma pesquisa apontava somente 51% da população com elevada autoestima e orgulho de ser piauiense.No final de 2009, essa taxa era de 88%.

É possível perceber nas gerações mais jovens se há alguma mudança de valores na relação com a política, do clientelismo e do individualismo para algo mais coletivista, solidário?
É um momento positivo, porque temos uma melhora considerável em relação ao velho modelo “quem está do meu lado tem direito a tudo, quem não está é meu inimigo”. À medida que as lideranças vão dando o exemplo, as outras gerações passam a se espelhar nisso. A juventude do Piauí demonstra que teremos um futuro melhor. Temos várias escolas bem conceituadas, vários cursos superiores conceituados, alunos que só estudaram na rede pública preenchendo aproximadamente dois terços das vagas dos vestibulares em áreas que antes eram somente dos mais ricos, como Medicina, Engenharia Elétrica, primeiro lugar de Administração, primeiro lugar de Matemática. Para mim, isso é uma revolução, porque são pessoas que pela educação vão chegar a um estágio de melhor qualidade de vida, e isso vai refletir em toda a sua família, em todas as futuras gerações.

O setor privado investe? Chegaram empresas? As pessoas estão montando negócios? Enfim, o capitalismo cresce no Piauí?
O que temos trabalhado é: vão chegar investidores de fora, mas primeiro temos de fazer a nossa parte. Os que nasceram aqui, ou que vieram de algum lugar, têm de acreditar no estado. O Piauí foi premiado no ano passado como o estado mais empreendedor do Brasil. O Sebrae apresentou um estudo em que 18,5% da população piauiense é empreendedora. Seja alguém que tem um carrinho de cachorro-quente, seja a maior fábrica de bicicletas da América Latina, que é a Houston Bike (com sede em Teresina) ou a 16ª maior rede de comércio atacadista do país, que é a Comercial Carvalho. Temos várias médias e grandes empresas. Uma média ou grande empresa, ao se instalar, se obriga a ter uma relação direta com os pequenos. O grupo Olho D’Água, que trabalha com cana-de-açúcar, tem hoje um conjunto de proprietários que são seus fornecedores diretos; o grupo Duas Barras, que industrializa o leite na região de Picos, tem milhares de pequenos fornecedores de leite; a Bunge Alimentos tem um número grande de fornecedores, incluindo pequenas cooperativas que produzem soja, grãos, na região dos Cerrados…

Mas a Bunge não está avançando demais, a soja não está avançando demais sobre o Cerrado?
É preciso ter muito cuidado quanto a isso. Sempre que se abria esse debate, eu perguntava quando viajava para países desenvolvidos: “Quantos por cento da reserva nativa vocês têm aqui?” Na Alemanha tem 7%; nos Estados Unidos, 8%; na Itália e em Portugal, mais ou menos 6%. Então, você pega os 20 países mais desenvolvidos, e é raro um que ainda tenha 10% das suas reservas vegetais…

Mas o senhor não quer chegar lá, quer?
Claro que não. O Piauí ainda tem próximo de 80% de reservas nativas. Temos hoje cerca de 4 milhões de hectares de reservas protegidas. Fora da região amazônica, é a maior reserva existente. Estamos recuperando a maior área de desertificação do país, que é a região de Gilbués. Há um programa de R$ 240 milhões do PAC, em parceria com a Codevasf (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba), os governos do Piauí e do Maranhão e municípios, para proteger toda a calha do rio Parnaíba. O Congresso Nacional vai votar o Programa Permanente de Revitalização das Bacias. Estamos falando de uma área de mais ou menos 10 milhões de hectares no norte e no sul do estado. Temos 700 mil hectares explorados. Então, acho que é possível uma expansão (da soja, da cana) ainda maior, mas com os cuidados adequados. Não aceitamos a monocultura, há toda uma política para que se tenha as condições de trabalhar uma diversificação na produção.

Um problema no Piauí, grave, é saber de quem são as terras. Ou seja, o problema da grilagem. De que forma o estado tem olhado para essa questão, que impede inclusive a chegada de investimentos?
Esse é um dos problemas mais graves do estado. Da forma como foi ocupado o Piauí, primeiro os baixões, as chamadas chapadas – que são muitas, os platôs, onde está a região dos Cerrados, mas também outras regiões – ficaram na verdade como propriedades do próprio estado ou da União. E essas terras, ao longo dos anos, foram ocupadas irregularmente. Depois de três anos de forte debate, conseguimos aprovar na Assembleia Legislativa uma legislação que vai permitir agilidade na regularização fundiária. As pessoas serão obrigadas a comparecer e apresentar a documentação devida. Quem não tiver vai pagar um valor, relativamente baixo, dependendo da localização, mas vai legalizar aquela propriedade, e se submeter às regras de exploração, aos cuidados ambientais etc. E isso vai dar maior segurança também aos investidores. É a melhor maneira de combater grileiro, ou seja, só vai comprar uma propriedade ilegal quem estiver com outras intenções. 

Recentemente, quando a Suzano Celulose anunciou um grande investimento no estado, verificou-se a falta de mão de obra especializada.
Eu imaginei enfrentar muitos problemas no Piauí, mas confesso que não esperava enfrentar esse problema. Ter uma quantidade gigantesca de vagas não preenchidas nos leva de um lado a uma alegria, já que significa uma expansão do emprego, e de outro a uma grande responsabilidade. Nós estamos agora inovando. Criamos um caminhão que faz cursos de qualificação para a construção civil, nas áreas de habitação, de estradas e ferrovias, energia elétrica, água e saneamento e na área do agronegócio, que é o caso. Tínhamos cinco escolas técnicas, passamos para 53, e estamos abrindo na região de Teresina e Nazária, que é onde vai ficar a base da Suzano, o centro de qualificação específico para a demanda na área de cerâmica e na de celulose. Só a Suzano é um investimento de R$ 4,5 bilhões, gerando cerca de 15 mil empregos. Da mesma forma, ao trabalhar também com parceiros, terá em torno de 40% de seu plantio em propriedades já existentes, que vão receber a assistência técnica devida. Há no sistema integrado de emprego do estado 90 mil pessoas querendo emprego e, na outra ponta, há 40 mil vagas à procura de mão de obra especializada. Nesse momento, estamos qualificando 25 mil pessoas para as áreas que sabemos que tem mercado. Acredito que essa rede de educação que estamos fazendo vai preparar para daqui três, quatro, cinco anos uma gigantesca mão de obra para as demandas que vão continuar crescendo. A gente tem de trocar o pneu com o carro andando. Eu não posso proibir que as empresas venham para cá porque não tenho mão de obra, e tenho, ao mesmo tempo, de correr atrás para qualificar mão de obra. 

Há um sabor especial em ter provado que um trabalhador pode fazer algo diferente para modernizar a política?
É… Na década de 1990, os setores dominantes da política e da imprensa já diziam que era preciso “modernizar” o país e atribuíam a pessoas como eu – bancário com militância sindical – a pecha de  “atrasados”, “dinossauros”… Eu continuo acreditando no socialismo, um modelo em que o objetivo é trabalhar o atendimento de desejos e necessidades do ser humano. Eu me orgulho muito desse Brasil que estamos construindo. Hoje, o presidente Lula é chamado nas várias reuniões do planeta para contar a experiência do Brasil. Imagine se a gente tivesse privatizado BNDES, Caixa Econômica, Banco do Brasil, Petrobras, todas essas coisas. Como a gente teria enfrentado a crise? Está tudo perfeito? Não, ainda tem muita coisa para resolver. O Brasil precisa de reforma política, da reforma das comunicações, precisa ainda atacar fortemente a desigualdade. Temos um modelo de crescimento econômico que ainda é muito concentrador de riqueza. Eu acho que a gente deu o passo e temos chances de dar mais e mais passos no caminho de uma sociedade cada vez mais livre. É preciso que se consolide uma base em que haja atenção para todos. A partir daí vale o livre talento, a capacidade de cada um.

O senhor tem ascendência indígena ou é só semelhança física?
(Risos) A avó da minha mãe era índia, e o avô dela, meu trisavô, uma mistura de negro com índio. E é daí que eu venho. As pessoas me chamam carinhosamente de Índio, e eu tenho orgulho disso. É interessante, porque para o Brasil o Piauí não tem índios. Na verdade, como era muito caro comprar escravos, no Piauí tentaram escravizar índios, mas eles se rebelaram. Teve um herói nosso aqui, o Mandu Ladino. Ele liderou um movimento contra a escravidão dos índios, e por conta disso houve grandes chacinas, muitos índios terminaram sendo expulsos, muitos fugiram. Depois que eu assumi publicamente a identidade de índio, o IBGE me mostrou outro dia que tivemos um salto de qualidade. Passamos de 300 pessoas que viviam no Piauí e se assumiam como “índio” para mais de 5 mil. Estamos agora reconhecendo uma tribo na região de Piripiri, guajajaras, e uma outra na região de Queimada Nova. Seriam as duas primeiras tribos que têm mais características… Muitos piauienses vão encontrar no sangue a nossa origem.