Crônica

O professor bem que avisou

São Luiz do Paraitinga é mais do que sua arquitetura inundada. A maior riqueza – o patrimônio imaterial, os moradores, seus hábitos, sua musicalidade – não se perderá

mendonça

Estava no primeiro ano da Geografia da USP, em 1967, e fui a São Luiz do Paraitinga numa excursão de estudos. A professora informou orgulhosa que o geógrafo Aziz Ab’Saber, um dos mais respeitados do mundo, nasceu ali, numa casa de esquina em frente ao mercado municipal. E, num casarão mais acima, o sanitarista Oswaldo Cruz. Como pode uma cidadezinha desse tamanho dar dois cientistas desse porte?

Em 1978 passei a frequentá-la, depois que meu amigo Américo mudou-se para lá. Minha namorada e eu ficávamos na casa dele. Nessa época, lá surgiu um belo grupo musical, o Paranga, formado por filhos do compositor Elpídio dos Santos, a namorada de um deles e mais os irmãos Nhô e Galvão.

No final da década de 1990 um casal de amigos, Alice e Jô, se apaixonou pela cidade e abriu o bar Sol Nascente. A cidade já tinha boas pousadas e bons restaurantes. No Sol Nascente às vezes aparece o Geraldo Tartaruga, artesão. Geraldo fala manso, narra causos espichados, e mesmo assim prende a atenção. Conta sobre os tempos em que o diabo costumava aparecer na roça. “Cês sabe, né? De antigamente, o diabo aparecia pros fazendeiros, agora não aparece mais… tem medo.” Rimos muito. Outro famoso é o Ditão Vergílio, grande intelectual caipira. Conhece tudo da roça, teoriza sobre ela, faz belos poemas, defende seu modo de vida, tem orgulho de ser caipira.

Dizem que a banda de música é a melhor do Estado. Na festa do Saci, ano passado, fui um dos espectadores sentados nos bancos da praça e nos degraus da igreja matriz. Banda não toca marchas e dobrados? Pois é, a de São Luiz também toca Pink Floyd. Há muitos músicos na cidade. Para se ter uma ideia da musicalidade de São Luiz, seus mais de 20 times de futebol têm hinos.

Ficou famoso, até demais, o Carnaval com as marchinhas, compostas por luizenses natos ou adotados. Participei da “refundação” do Carnaval, no final da década de 1970, com o bloco Peida n’Água – saía com poucas pessoas da chácara do Américo e chegava grande na praça. Depois o Carnaval foi ficando inchado, parei.

Mas tem mais coisas a serem apreciadas. Como o requeijão de prato, delícia da roça encontrável em qualquer padaria. E o afogado – com carnes e legumes cozidos em caldeirões enormes –, distribuído de graça a milhares de pessoas. Comer o afogado faz parte do ritual da Festa do Divino.

Quando resolvemos, em 2003, criar a Sosaci, Sociedade dos Observadores de Saci, propus e todos aceitaram: a sede tem de ser em São Luiz. E incluímos mais uma festa no calendário festeiro da cidade. Lá não existem grandes salões, grandes auditórios. O coreto é um palco privilegiado, e os degraus da frente da igreja lotam.

Uma coisa já incomodava muita gente nessa época: a invasão da monocultura do eucalipto. O professor Aziz chegou a fazer palestras e alertar sobre limites que deveriam ser impostos a ela. Não lhe deram ouvidos.

Passei algumas viradas de ano lá. Agora não deu. E no primeiro dia do ano vi a notícia da água se enchendo. Em 1996 houve uma grande enchente na cidade. Depois, soube-se que as comportas de uma represa haviam sido abertas, sem aviso. Será que uma enchente daquelas se repetiria?

E foi pior. Ultrapassou qualquer coisa imaginável. Cobriu casarões, o mercado, o centro histórico. Fui ver de perto. Quem frequentou São Luiz nos bons momentos não pode abandoná-la na hora da tristeza. A população se salvou por si mesma, graças ao trabalho de um bando de jovens, e não por obra de órgãos públicos. E estava traumatizada, mas pronta para se reconstruir.

Soube que o acervo de Elpídio dos Santos foi salvo antes de seu casarão ir abaixo. Mas o Américo e a Rose perderam tudo o que tinham. O bar Sol Nascente ficou submerso. Jô e Alice livraram-se com a roupa do corpo e nada mais. O coreto ficou de pé. Espero, durante o Carnaval, estar com um bando de amigos luizenses e não luizenses em torno dele, celebrando a vida, a solidariedade, reconstruindo a cidade, querendo saber o que causou a tragédia, e como evitar outras. Quem sabe o professor Aziz seja chamado. E seja ouvido.