américa latina

Integração, pero no mucho

Apesar de terem favorecido processos de integração, as afinidades ideológicas entre os governos sul-americanos não foram capazes de acabar com rusgas diplomáticas, econômicas e militares bilaterais entre vizinhos

mendonça

A Venezuela tem problemas com a Colômbia, que também não agrada ao Equador. Equador e Venezuela, porém, são bons amigos. O Uruguai está de mal com a Argentina, mas só com a Argentina. O Peru não vê o Chile com bons olhos, mas compartilha opiniões políticas com a Colômbia. A Bolívia mantém grande afinidade com Venezuela e Equador, e pouco a pouco ia resolvendo diferenças com o Chile, enquanto a presidente era Michelle Bachelet. O Brasil não tem nenhum inimigo declarado na vizinhança, porém negocia em silêncio reclamações de Bolívia, Equador e Paraguai.

Eis o panorama geral das relações bilaterais na América do Sul, que mais parecem fofoca de condomínio, mas são fruto do fenômeno político iniciado com a vitória eleitoral de Hugo Chávez, em 1998. A opção por candidatos de origem popular ou inspiração socialista em quase todo o continente tem agilizado os processos de integração. Recentemente saíram do papel projetos como o Banco do Sul e o Conselho de Defesa do Sul, a União de Nações Sul-Americanas (Unasul) se fortaleceu e estão em gestação mecanismos financeiros para reduzir a dependência regional de dólares.

Entretanto, as afinidades ideológicas parecem não ser suficientes para concretizar o sonho de Simón Bolívar, e a consolidação da “pátria grande” tem esbarrado em divergências estratégicas que frequentemente colocam países vizinhos em lados opostos da arena diplomática.

O entrevero mais antigo é o que contrapõe argentinos e uruguaios devido à instalação de uma usina de celulose às margens do rio Uruguai. Em 2007, a companhia finlandesa Botnia começou a operar no município de Fray Bentos, ligado por uma ponte à localidade de Gualeguaychú, na Argentina. Os gualeguaychulenhos acreditam que o processamento da celulose vai poluir as águas do rio que serve a ambos os países. Por isso, são contrários ao funcionamento do complexo industrial. De olho nos empregos trazidos pela transnacional, os uruguaios negam qualquer tipo de risco de contaminação.

As chancelarias de Montevidéu e Buenos Aires entraram na briga quando alguns movimentos socioambientais e sindicatos argentinos resolveram bloquear a ponte que conecta os dois países. O caminho já leva três anos fechado e a disputa foi parar no Tribunal Internacional de Haia, na Holanda. O governo argentino diz que os uruguaios violaram um acordo sobre a utilização das margens do rio e pede que a fábrica da Botnia seja removida para um lugar onde não ofereça riscos às águas binacionais. A corte dará seu veredicto sobre a contenda em março.

Feridas abertas

Outro desacordo diplomático que foi parar na arbitragem internacional diz respeito aos limites marítimos do Chile, que em tese estariam violando milhas oceânicas que pertencem ao Peru. O presidente Alan García quer modificar os termos de um acordo assinado entre Lima e Santiago na esteira da Guerra do Pacífico (1879-1883). O tratado define a extensão territorial soberana de cada um sobre o mar. O governo peruano acredita que saiu prejudicado na assinatura do documento e pretende revertê-lo, também em Haia.

“O Peru quer aumentar em mais de um terço seu domínio marítimo-econômico, passando a ter mais acesso a recursos pesqueiros”, explica Guillermo Holzmann, analista político da Universidade do Chile. “Ao conduzir a questão a Haia, o Peru tem um objetivo estratégico, do qual deriva outro, de cunho histórico, que tem maior impacto na opinião pública.”

A presidenta Michelle Bachelet levou a mal o recurso movido por Alan García e decidiu congelar as relações políticas com o vizinho. Contudo, conservou o diálogo diplomático e, para não prejudicar os investimentos chilenos no Peru, manteve intactos os laços financeiros.

Mas a complicada relação se agravou quando foi descoberto um caso de espionagem chilena na força aérea peruana. O pivô da crise é o suboficial Víctor Ariza, que teria sido recrutado há sete anos pelo serviço secreto de Santiago para repassar informações confidenciais sobre os planos militares do vizinho. Bachelet negou qualquer relação com o episódio e garantiu que iria apurar a acusação junto às Forças Armadas. “A resposta chilena é positiva e alivia a tensão”, diz o chanceler peruano José Antonio Balaunde. “Falta que nos informem sobre o resultado das investigações. Esperamos uma resposta antes de março, quando muda o governo no Chile.”

Outra coisa que incomoda o Peru é o armamentismo chileno: “Não entendemos por que o Chile gasta tanto em armas e por que essas armas apontam para o Peru”, questiona Balaunde. A preocupação é tamanha que Alan García acaba de propor um acordo para reduzir a militarização dentro da Unasul. O plano também estabelece pactos de não agressão e resolução pacífica de conflitos entre os países do bloco. É um recado para o Chile, mas não só.

Quem lidera o processo de modernização militar na América do Sul é o Brasil. O acordo assinado pelo presidente Lula com a França deve equipar o país com tanques, helicópteros, submarinos – um deles com propulsão nuclear – e talvez caças Rafale de última geração. Se as compras se concretizarem, o Brasil gastará R$ 30 bilhões para equipar suas Forças Armadas e defender os recursos naturais da Amazônia e do pré-sal.

A Venezuela também chama a atenção quando o assunto é rearmamento. Hugo Chávez argumenta que precisa se defender. Primeiro porque tem na bacia do rio Orinoco uma das maiores reservas petrolíferas do mundo. Depois, porque os Estados Unidos assinaram um acordo com a Colômbia que permite a instalação de soldados e armamentos em sete bases espalhadas pelo país. Álvaro Uribe também tem problemas com o Equador desde que, em março de 2008, decidiu violar o território equatoriano para eliminar um acampamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) camuflado do lado de lá da fronteira. Ao tomar conhecimento do episódio, o presidente Rafael Correa cortou relações com Bogotá.

“Os conflitos diplomáticos criam uma cultura em que a opinião pública não encontra razões para se mobilizar a favor da integração”, observa Tullo Vigevani, pesquisador do Instituto de Estudos Econômicos e Internacionais. “A maior dificuldade para a integração, porém, está nos sistemas econômicos e na estrutura social das nações sul-americanas. Por exemplo, todos os países são produtores de bens agrícolas. Portanto, não há complementaridade econômica”, observa. “Para que exista uma integração efetiva, os países vizinhos devem ser também os primeiros sócios comerciais uns dos outros”, comenta Guillaume Long, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso), em Quito. “Mas na América Latina o principal parceiro comercial dos países são os Estados Unidos.” E agora também a China.