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Crime amargo: causa e consequência

Gigante do setor sucroalcooleiro, Cosan viu desabar preço de suas ações por uso do trabalho escravo. Empresa responsabiliza terceirizada por irregularidades e consegue liminar para sair da “lista suja”

Renato Alves/MTE

A promessa de emprego motivou o deslocamento das pessoas. A viagem foi cobrada antecipadamente, R$ 210 de cada um. Até ferramentas de trabalho tinham custo

A Cosan S.A. – Indústria e Comércio é uma das maiores companhias do setor de açúcar e álcool do mundo. Possui, ao todo, 23 usinas (21 em SP e duas em construção, uma em GO e outra no MS), quatro refinarias e dois terminais portuários. É dona dos postos Esso de combustíveis e detentora das marcas de açúcar União e Da Barra. O grupo faturou cerca de R$ 14 bilhões em 2008. No período da safra da cana-de-açúcar, chega a empregar 43 mil pessoas.

A “lista suja” é o cadastro de empregadores envolvidos em flagrantes de trabalho escravo, instituído pela Portaria nº 540/04 do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A Cosan foi inserida na atualização semestral da “lista suja”, em 31 de dezembro de 2009, por causa de uma fiscalização que libertou 42 trabalhadores da Usina Junqueira, em Igarapava (SP), em junho de 2007. Incorporada pela Cosan em 2002, a Usina Junqueira tem capacidade para moer 16 mil toneladas de cana por dia, que podem render até 24 mil sacas de açúcar e 900 metros cúbicos de etanol.

O boletim da manhã do dia 8 de janeiro de um site de informação especializada em ações e bolsas de valores não deixava dúvidas: “Cosan desaba após entrar em ‘lista suja’ ”. Os golpes mais duros sofridos pela companhia – e que influíram para a queda de seus ativos – vieram, porém, de dois anúncios anteriores. Primeiro, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) bloqueou operações com o tradicional grupo sucroalcooleiro, em caráter preventivo. “A celebração de novos contratos com o BNDES fica condicionada à exclusão da companhia do referido cadastro”, informou, em nota, a instituição estatal. Na data do anúncio, 7 de janeiro, as ações da Cosan caíram 5,32% na Bovespa e 3,46% na Bolsa de Nova York.

No dia seguinte, veio o comunicado da rede varejista Walmart. Uma das signatárias do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo – que reúne mais de 200 empresas e associações comprometidas em restringir relações comerciais com empregadores envolvidos em casos de escravidão –, a rede anunciou a suspensão temporária de compras dos produtos da parceira comercial após sua inclusão no “clube” de maus empregadores.

Pressionada pelos desdobramentos, a Cosan correu à Justiça e conseguiu liminar para a retirada de seu nome da “lista suja” ainda em 8 de janeiro. A decisão foi expedida pelo juiz substituto Raul Gualberto Fernandes Kasper de Amorim, do Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região (TRT-10), em Brasília (DF). Na segunda-feira (11) seguinte, BNDES e Walmart comunicaram a reativação dos negócios com a Cosan.

O abalo na reputação da gigante dos canaviais é apenas uma pequena prova do tamanho da desvalorização de uma marca e do constrangimento que o envolvimento em casos graves de impactos sociais, como o de trabalho escravo, poderão causar daqui para a frente. O próprio caso da Cosan ainda não se encerrou com a liminar. A Advocacia-Geral da União (AGU) recorreu e a questão pode ser revertida para o retorno da companhia sucroalcooleira à (cada vez mais temida) “lista suja”.

Iberê Thenório/Repórter BrasilUsina
Usina Junqueira, em Igarapava (SP): Cosan culpa a terceirização

Caracterização

Declarações do ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, resumem bem os dois argumentos centrais apresentados pela Cosan contra a inclusão no cadastro oficial. De acordo com ele, a atitude do MTE teria sido um “exagero”, pois a situação não era tão grave a ponto de ser caracterizada como trabalho escravo, e um “erro”, já que as irregularidades eram de responsabilidade de um empregador terceirizado.

Essas foram, aliás, as justificativas apresentadas pelo juiz Raul Gualberto na liminar favorável à Cosan. Para ele, os autos de infração relativos ao caso (entre eles: limitar, por qualquer forma, a liberdade do empregado de dispor de seu salário; admitir ou manter empregado sem o respectivo registro em livro, ficha ou sistema eletrônico competente; e manter empregado com idade inferior a 18 anos em atividade nos locais e serviços insalubres ou perigosos) são insuficientes para a “tipificação da redução à condição análoga à de escravo”.

A avaliação da procuradora do Ministério Público do Trabalho Carina Rodrigues Bicalho, que participou da operação de fiscalização na Usina Junqueira, não coincide com a do juiz. Ela enumera constatações que considera suficientes para a configuração do trabalho escravo contemporâneo: aliciamento de mão de obra, submissão a sistema de endividamento e condições degradantes e desumanas nas frentes de trabalho (alimentação, transporte etc.) e nos alojamentos.

Relatos colhidos pelo grupo móvel responsável pela ação respaldam a ocorrência de aliciamento. Um preposto da suposta empresa terceirizada, José Luiz Bispo Colheita ME, arregimentou mão de obra em Araripina (PE). De lá, mobilizou transporte irregular – sem a Certidão Declaratória exigida pelo MTE – até Delta (MG), na divisa entre São Paulo e Minas, próximo a Igarapava (SP). A promessa de emprego em usina da Cosan motivou o deslocamento das pessoas. A viagem foi cobrada antecipadamente (R$ 210) de cada um. As vítimas contaram que, no momento da abordagem inicial, não foram informadas de que teriam de arcar com aluguel, comida e ferramentas de trabalho.

Quando chegaram ao precário “Alojamento do Guri”, em Delta, as vítimas se viram obrigadas a pagar pela estadia. Alimentos e itens essenciais (chapéu de proteção contra o sol, marmita para refeições e garrafa térmica para levar água) adquiridos nos supermercados do Carlinhos e do Juarez, indicados por intermediários, eram contabilizados como dívidas e descontados dos salários. A maior parte do grupo começou a trabalhar em maio de 2007 e a fiscalização recolheu “vales” correspondentes aos produtos contabilizados no sistema de dívidas.

No comunicado divulgado sobre o caso, a Cosan manifesta “repúdio veemente” contra “qualquer prática que não respeite os direitos trabalhistas de colaboradores do seu quadro de empregados e dos quadros de seus fornecedores e parceiros”. Entre os libertados da Usina Junqueira, entretanto, havia um jovem de 17 anos trabalhando no corte de cana, atividade proibida para quem não tem 18 anos completos.

Durante a inspeção do “Alojamento do Guri”, foram constatadas outras irregularidades, como excesso de pessoas (algumas com a família), alimentos dispostos no chão (próximos a equipamentos de proteção individual e ferramentas sujas), pedaços de carne pendurados em varais pelos cômodos, instalações sanitárias sem condições de uso e fiação elétrica totalmente inadequada.

Havia ainda problemas graves nas frentes de trabalho, como ausência de água potável e transporte irregular. A água que os trabalhadores levavam para beber era retirada diretamente das torneiras do “Alojamento do Guri”, sem passar por filtragem ou purificação. Sem documentação regular e em péssimo estado de conservação, o ônibus que levava o grupo estava sem freio e foi apreendido pela fiscalização.

Carina Bicalho relata que representantes da Cosan concordaram em providenciar o retorno dos trabalhadores para Pernambuco e em pagar dois tipos de indenização: por danos materiais  e “pela situação verificada” (de R$ 800 para cada trabalhador). “Na prática, essa última indenização foi paga a título de danos morais individuais”, explica a procuradora do ministério. Para ela, a empresa não teria por que aceitar esse desembolso extra se o quadro fosse apenas de meras irregularidades trabalhistas.

Renato Alves/MTESelva
Trabalhadores sem luvas, botas ou água limpa para beber não são cena rara

Terceirização

A liminar que livrou a Cosan também referenda a tese de que “as irregularidades que apontariam a configuração do trabalho escravo indicam sua prática por outra pessoa jurídica (José Bispo Colheita ME), não pela impetrante (Cosan)”. Tal posição é reforçada pela própria Cosan. “A empresa José Luiz Bispo Colheita ME prestava serviços de corte de cana-de-açúcar para diversos produtores do interior do Estado de São Paulo que faziam parte da cadeia produtiva da Cosan”, sustenta a nota divulgada pela empresa.

“O evento que envolveu a empresa José Luiz Bispo Colheita ME não contou com a cooperação ou concordância da Cosan”, emenda o grupo, reafirmando que se viu “envolvido como responsável solidário por tais irregularidades” e providenciou o “descredenciamento” da prestadora de serviços terceirizada.

A Cosan não chega nem a citar, porém, que já havia assinado Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com a Procuradoria Regional do Trabalho da 15ª Região (PRT-15) – sob o nº 2803/2006, em março de 2007 (três meses antes da fiscalização). O TAC trata da contratação de terceirizados na Usina Junqueira e em outras 16 mantidas pelo grupo no interior paulista à época do acordo. Este define limites (20% na safra de 2007; 15% na safra de 2008; 10% na safra de 2009; e redução a zero na safra de 2010), além de estabelecer condições para a contratação de prestadoras para o corte manual da cana.

No referido TAC, a Cosan se compromete a contratar somente empresas terceirizadas “regularmente constituídas e financeiramente idôneas, assegurando ao trabalhador (da contratada) condições análogas às dispensadas aos empregados próprios”. À fiscalização, o próprio José Luiz Bispo, dono da José Bispo Colheita ME, confirmou que sua empresa não era dotada de capacidade financeira.

Algumas evidências saltaram aos olhos da inspeção. A remuneração dos trabalhadores (R$ 2,44 por tonelada de cana derrubada) era paga com o dinheiro que a própria Cosan depositava para o intermediário, que recebia valor equivalente a 135% da produção dos cortadores. Funcionários da Usina Junqueira acompanhavam as empreitadas. Além disso, José Bispo declarou que possuía apenas uma casa popular e um Ford Pampa 1986 sem seguro que, após acidente que resultou na perda total do veículo, virou sucata.

“Não era um problema de terceirizado, de fornecedor”, sustenta, categoricamente, a procuradora. Para Carina, José Luiz atuava na prática como “gato” (aliciador) da Cosan e a empresa intermediária (José Bispo Colheita ME) não era “financeiramente idônea” para ser aceita como terceirizada. Portanto, a relação dos cortadores de cana com a empresa maior seria bem mais direta.

Em artigo sobre o caso Cosan, o juiz Jorge Souto Maior, da 3ª Vara do Trabalho de Jundiaí (SP) e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, critica a atribuição de toda a culpa à empresa terceirizada. Segundo o magistrado, “de tudo o que restou foi a certeza de que todo o mal foi promovido, unicamente, pela empresa terceirizada”. Ele completa: “E, ampliando-se a lógica da perversão da realidade, é até provável que se venha a dizer que os verdadeiros culpados pela situação foram os próprios trabalhadores, que aceitaram trabalhar nas condições que lhes foram oferecidas. Se não tivessem aceitado, nenhum problema teria ocorrido…”

Mercado salgado

Por Thiago Domenici

Nas mãos dos usineiros

De acordo com a Pesquisa Nacional da Cesta Básica, realizada mensalmente pelo Dieese, o custo da cesta teve redução em 2009. No entanto, alguns gêneros alimentícios de primeira necessidade não seguiram a tendência, e o açúcar é um deles. Na Região Sudeste, a maior produtora de cana do país, o açúcar refinado teve alta de 50,39% em um ano. O Dieese afirma que a queda da produção na Índia, por conta das condições climáticas, elevou o preço no mercado internacional – e o Brasil é um grande exportador do produto. O setor alega, porém, que as fortes chuvas da região reduziram o nível de sacarose, o que influenciou a alta dos preços. Mesmo assim, segundo a pesquisa, as usinas implementaram a produção do açúcar em detrimento do álcool, devido ao preço mais atraente. Com isso, também o etanol é outro item cujo preço disparou para o consumidor. A Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) constatou que o álcool combustível ficou 14% mais caro em 2009.

De acordo com a União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), a principal causa dessa apreciação foi o clima desfavorável, que prejudicou a colheita. Em comunicado, a entidade nega que a opção de algumas usinas de aumentar a produção de açúcar tenha sido determinante para a redução da oferta de etanol. Mas para José Alberto Paiva, presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Derivados de Petróleo do Estado de São Paulo, o mercado apenas optou pelo negócio mais vantajoso. “Se o açúcar estava dando mais preço, o usineiro focou nele. Produziu etanol suficiente apenas para abastecer o mercado, mas com zero de estoque, e com a cana excedente foi buscar fazer açúcar para exportar. E aí é lei de mercado. Estoques altos, preços baixos. Estoque baixo, preço alto”, finaliza.