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No meio do caminho

Numa das trilhas para quem se encoraja a bater pernas Chapada Diamantina adentro, as poucas famílias que resistiram ao fim do café e dos diamantes completam com sua graça o esplendor do Vale do Paty

Eduardo Zappia

Pouco importa qual o roteiro escolhido para conhecer o Vale do Paty, região que pertence ao Parque Nacional da Chapada Diamantina, bem no meio do mapa da Bahia. Para alcançar o seio do vale, só mesmo depois de andar muito. A distração fica por conta da paisagem, por todos os lados a linha do horizonte é um contorno sinuoso de cadeias de montanhas, num trajeto entre gigantes, algo majestoso e selvagem. O prêmio é chegar e ser recebido pelos hospitaleiros “patyzeiros”, os últimos moradores do Vale do Paty.

Considerado um dos trekkings mais bonitos do mundo, o vale encanta pela natureza rica e diversa. E o encontro com os patyzeiros é surpreendente. São pessoas humildes como Nara, filha de seu Wilson e dona Maria, que moram numa das casas mais utilizadas como ponto de apoio aos visitantes. Aos 20 e poucos anos, Nara nem pensa em sair do Paty. Afirma que, apesar de toda a rusticidade desse lugar, aonde a energia solar acaba de chegar, sua história já faz parte da paisagem.

Sua vizinha Renata trocou a tranquilidade dali pelas atrações de Andaraí, que fica em uma das saídas do Paty. Depois que o pai morreu, ela e a mãe decidiram deixar a casa e seguiram para a cidade. Na época, Renata estava com 18 anos. Os sete irmãos já tinham saído de casa em busca de trabalho. Só uma, Dagmar, continua por lá.

As lembranças que Renata, hoje com 31 anos, guarda da vida no Paty traduzem dias de fartura do alimento cultivado nas roças das casas e dos pés de manga e de jaca, de contato intenso com a natureza, de banhos de rio sem fim e de colheitas de café, das quais ela fugia com frequência. Nessa época o plantio do café já nem era o forte da economia da região, mas alguns dos milhares de pés que haviam dominado as montanhas do vale, no auge dos anos 1920 e 1930, continuam por lá. Até hoje o cafezinho que se toma no Paty é literalmente caseiro.

As histórias que contam os moradores mais antigos descrevem cenas de mulas e jegues subindo a serra do vale, conhecida como Ladeira do Império. Os animais estavam sempre abarrotados de sacas de café, para ser vendidas em Andaraí. Na volta, as famílias se fartavam com carnes, bebidas e objetos que o comércio permitia comprar.

Não fossem a crise de 1929 e a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina – em 1985, com o objetivo de proteger o ecossistema de uma área de 152 mil hectares da Serra do Sincorá –, talvez o turismo não viesse a ser a forte e promissora atividade econômica que consegue manter os negócios dos cerca de 50 moradores do local. Incrível pensar que esses 50, juntos, não representam nem 2% do total de pessoas que já habitaram as serras do vale.

Eduardo Zappiapaty
A trilha do Vale do Paty é considerada uma das mais bonitas do mundo

Novo ciclo

Com a crise de 1929, o governo passou a implantar a política de erradicação do café em todo o Brasil. A medida, na região, provocou a evasão das famílias, que sob concessão do governo queimavam as plantações em troca de dinheiro e abandonavam as terras. As que lá ficaram continuaram sobrevivendo de suas roças de subsistência e da venda do excedente na feira de Andaraí. Nas cidades da Chapada o garimpo de diamante aparecia como uma interessante proposta para muitas famílias em ritmo de retirada.

Contando os pormenores dos acontecimentos, desde a saída das famílias até a chegada dos primeiros turistas, seu Eduardo Araújo de Oliveira, 89 anos, carrega lembranças dessa época e tem certeza de que essa história ainda será contada por ele muitas vezes, para muitos passantes: do Paty ele garante que não sai.

Renata ainda era muito menina quando o turismo começou a despontar como viés econômico. Em suas lembranças estão os primeiros turistas que começaram a desvendar o vale, ao lado de guias locais. No início, as visitas não eram frequentes e era difícil imaginar que seria possível tirar o sustento dessa curiosa modalidade. As possibilidades de sobrevivência e de realizar sonhos pareciam mais promissoras do outro lado da serra.

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Os suprimentos chegam no lombo de burros

Como conseguir emprego em Andaraí não foi tão fácil, Renata resolveu rumar para Lençóis, já então porta de entrada do turismo na Chapada. Renata trabalha há seis anos numa pousada e, com o salário, está terminando de construir sua casa. Os moradores mais velhos que haviam se mantido no vale mesmo depois da crise conseguiram a aposentadoria pelas prefeituras das cidades vizinhas, Andaraí e Mucugê, o que estimulou sua saída. Hoje, as poucas famílias que restaram sobrevivem exclusivamente do turismo. Continuam com suas roças, mas dependem do comércio de Andaraí, dessa vez para alimentar os turistas.

Enquanto a crise foi responsável pela retirada da primeira leva de moradores do local, a criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina obriga as famílias remanescentes a deixar as terras por uma questão legal, pois a lei, ainda que permita a prática do turismo, proíbe a moradia de pessoas na área. O analista ambiental do parque, Pablo Casella, é enfático, no entanto, ao afirmar: “Sem que haja a indenização, nenhuma família terá de sair. Isso seria inconstitucional, além de imoral”.

O plano de manejo do parque foi aprovado em março deste ano. De fato, é necessária a adoção de mecanismos para reduzir os impactos causados não só pela moradia dessas famílias, mas também pelas visitas. O acesso ao vale se dá apenas por caminhada ou no lombo de animais. Por isso, a preocupação com a preservação das águas e das trilhas deve ser prioridade. Por outro lado, o turismo foi a alternativa que os acontecimentos históricos, sociais e econômicos deixaram para o lugar.

Nara, filha de dona Maria e seu Wilson, vivencia o auge desse ciclo e está acostumada com a rotina de atender os visitantes. Acorda cedo e prepara o café da manhã, que será servido na cozinha da casa. Ao redor, o cenário é de encher os olhos. E o melhor é saber que ainda se terá um dia inteiro de passeio pela frente, muito lugar lindo para conhecer, muita gente interessante para conversar e muita história para ouvir.

Em grupo é mais barato

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O Vale do Paty 15 km de extensão. Os três principais pontos de partida para lá são:  Vale do Capão, distrito de Palmeiras; pelo Guiné, distrito de Mucugê; e por Andaraí.

É preciso de pelo duas noites para se conhecer lugares como Morro do Castelo, cachoeira dos Funis, da Altina, Igrejinha – e quatro para conhecer todas essas mais Prefeitura, Poção, Cachoeirão e Calixto.

Os percursos – de 30 km a 80 km – são lindos e silenciosos. E exigem a companhia de guias. Nas casas dos nativos há acomodações e refeições bem servidas.

Todo o caminho se faz andando, requer certo preparo físico, calçado confortável para trekking, roupas leves para o dia, agasalhos para as noites e capa de chuva.

A maneira mais prática de preparar a ida é chegar primeiro em Lençóis, que tem a melhor infraestrutura da Chapada, e contratar serviços de uma agência que ofereça toda logística operacional e monte um desses roteiros.

O custo com tudo incluído (logística, alimentação, hospedagem, transporte) varia de R$ 200 a 250/dia por pessoa, e pode cair 20% para grupos com quatro pessoas.

Mais sobre a Chapada Diamantina:www.guiachapadadiamantina.com.br e www.guialencois.com.br.