Economia

A mesma ladainha

Os videntes do mercado financeiro não previram a crise mundial e raramente acertam as previsões de inflação. Na dúvida chutam alto para, quem sabe, empurrar também os juros

Paulo Whitaker/Reuters
Paulo Whitaker/Reuters
O mercado e seus índices de bola de cristal: atrás do ganho fácil

Não é novidade. Passada a tempestade, mal surge a bonança e o mercado financeiro arregaça as mangas para que os juros voltem a subir e para que o Estado pare de gastar, a pretexto de manter a inflação sob controle. Quando a crise atingiu o Brasil, os estoques de montadoras e distribuidoras de aço chegaram a níveis recordes, enquanto a construção civil suspendeu lançamentos. Para recuperar o ritmo, o governo começou a reduzir os juros, ampliou gastos em infraestrutura, impulsionou o crédito por meio dos bancos públicos e desonerou impostos. E conseguiu fazer o PIB retomar o crescimento a ponto de terminar este ano no positivo, revertendo a conta de analistas que chegaram a prever queda de até 2%.

A taxa básica de juros, que estava em 13,75% ao ano em dezembro, caiu para 8,75% em julho, a mais baixa da história. Apesar do patamar inédito, a Selic empacou nos 8,75% nas duas reuniões seguintes do Copom, depois de cinco sucessivas quedas. “Tecnicamente, haveria condições para que caísse outra vez em outubro, porque a inflação mantém sua trajetória declinante”, diz o economista e sócio da RC Consultores Fabio Silveira. A inflação em setembro chegou a 0,24%, quase metade do 0,47% apurado em maio e praticamente o mesmo nível de setembro de 2008.

Mas o retrato não é compartilhado por todos. Para 2010, muitos bancos e consultorias financeiras preveem crescimento do PIB de no mínimo 4% – alguns mais otimistas falam em expansão de 6%. Mas o mercado financeiro já começa a influenciar para que a Selic volte a subir. A LCA Consultores, de São Paulo, estima que a taxa básica chegue a 10%, com a primeira elevação feita em setembro do próximo ano. Já para a Quest Investimentos, gestora de recursos capitaneada pelo ex-ministro Luiz Carlos Mendonça de Barros, o crescimento do PIB deverá ser de 6% em 2010, mas os juros ficarão entre 11,25% e 11,75%, com a primeira alta no segundo trimestre.

Os argumentos para subir os juros: gastos públicos em alta, oferta de crédito crescente e mercado de trabalho aquecido, o que incentiva aumentos reais de salário. Os juros elevados em relação à inflação vêm engordando os resultados do setor bancário desde o início do Plano Real, em 1994.

Palpite ou desejo

O setor financeiro tem um papel de destaque na influência das expectativas de inflação e de juros. Semanalmente, o Banco Central conduz uma pesquisa com cerca de 100 instituições financeiras, para captar suas percepções sobre a economia brasileira. Publicada todas as manhãs de segunda-feira no site do BC, a pesquisa, chamada Focus, mensura as expectativas futuras de inflação, crescimento do PIB, câmbio e juros e é um importante mecanismo para a tomada de decisões. “As previsões do mercado financeiro influenciam as do BC, e vice-versa, razão pela qual são normalmente muito próximas”, escreve o economista especialista em contas públicas Amir Khair, em recente trabalho sobre o assunto.

Khair buscou entender se a pesquisa e suas previsões realmente se aproximam da realidade, ou seja, se de fato conseguem compreender o momento econômico e são uma ferramenta útil para calibrar juros. Com dados desde 2002, ele chegou à seguinte conclusão: “Será que essas previsões se aproximam da realidade? Infelizmente a resposta é negativa, pois o coeficiente de correlação entre a inflação prevista e a ocorrida foi de apenas 17,2%. A razão disso é simples: são inúmeros os fatores que influenciam a inflação, e esses fatores podem sofrer alterações significativas de comportamento ao longo do tempo”.

O economista ainda nota que as expectativas de inflação do Banco Central são muito próximas às do mercado financeiro. “O último boletim Focus já prevê que a taxa Selic deverá subir em 2010 e 2011; essa taxa seria em média de 10% ao final de 2010 e de 10,3% ao final de 2011. Como as entidades do mercado financeiro ampliam seus lucros com a elevação da Selic, é possível que essas previsões tenham um viés distorcido”, destaca.

Desde 1999, o país tem obedecido, invariavelmente, a um tripé macroeconômico: câmbio flexível, metas de superávit primário (dinheiro que tem de sobrar no caixa para pagar juros) e de inflação. Variáveis importantes, como emprego ou investimentos do Estado, vêm sendo deixadas de lado, o que não ocorre nem nos maiores defensores do liberalismo no mundo – os Estados Unidos têm nos números do mercado de trabalho um dos principais indicadores de orientação de sua política monetária. Taxas elevadas de desemprego fazem com que o BC norte-americano passe a defender a queda dos juros. Qual a lógica? Juros menores estimulam o investimento das empresas e aumentam a oferta de crédito ao consumidor, que pode gastar mais, o que incentiva a maior produção das indústrias.

Ex-ministro do Planejamento durante o regime militar e interlocutor frequente do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o economista Delfim Netto também vê problemas nos juros elevados. Para ele, a questão é que o BC mira a inflação em 2022 e utiliza para ajustar suas metas uma consulta feita com analistas do mercado financeiro, que têm interesses divergentes e emitem sinais cruzados. “Esses analistas não sabem o que vai acontecer nesta semana; imaginem saber o que vai acontecer no fim do ano”, ironizou em recente seminário.

Os juros ainda elevados para padrões internacionais – o Brasil tem uma das seis maiores taxas reais de juros do mundo – acabam tendo influência sobre o câmbio, valorizando o real. Se um americano tivesse trazido US$ 1.000 para o Brasil na primeira semana de janeiro e ingressasse na Bolsa, teria obtido até a última semana de junho retorno mensal de 5,6%. Nos Estados Unidos, em um papel do governo de dois anos, seu rendimento seria de 1% ao ano,  de acordo com Delfim Netto. “Nós somos o último peru com farofa do Dia de Ação de Graças”, afirma. Para ele, a taxa real de juros deveria estar em 2,5% ou 3% ao ano, e não nos atuais 4,5% e 5%.

Se o câmbio valorizado faz a festa de investidores internacionais, traz maciças doses de dor de cabeça para o setor industrial que emprega e exporta suas mercadorias. Com um real forte, os produtos brasileiros vendidos lá fora ficam mais caros. Com menor competitividade, as exportadoras reduzem investimentos e a contratação de novos funcionários.

Em paralelo, a alta taxa de juros aumenta o capital especulativo no país. Segundo o governo, entre janeiro e o início de fevereiro ingressaram US$ 20 bilhões de estrangeiros na Bolsa em investimentos em ações. Para atenuar esse problema, em outubro o Ministério da Fazenda anunciou que vai taxar em 2% a entrada em dólares com prazo inferior a 12 meses para aplicações em Bolsa ou títulos de renda fixa. A medida visa reduzir a ação de especuladores, que voltou a crescer com a expansão da liquidez no mercado financeiro mundial.