cidadania

Educação contra a violência

A formação de Promotoras Legais Populares fortalece as mulheres na batalha pela aplicação da Lei Maria da Penha. Informadas e destemidas, elas conseguem impor respeito a autoridades que não levam denúncias a sério

Alberto Araújo

Lúcia: “No curso aprendi sobre o direito de todos nós. Antes as mulheres iam na delegacia e ninguém dava atenção”

Ao longo de um ano, nas manhãs de sábado, Lucia de Souza, 35 anos, dois filhos, tomava a condução no centro de Manacapuru, próximo do rio Solimões. Viajava por hora e meia à beira dos igarapés até chegar ao porto do Cacau, já nas margens do Negro. Dali saem as balsas que cruzam o rio e vão atracar no porto de São Raimundo, em Manaus. Durante esses meses Lúcia fez parte do primeiro grupo de formação de Promotoras Legais Populares, as PLPs, realizado para 40 mulheres de Manaus e das regiões ribeirinhas. Um segundo curso terminou em agosto e quase não há mais vagas para o próximo.

O primeiro foi realizado na Faculdade de Pedagogia Tahirih e os estudantes atuavam como monitores, cuidando das crianças que as mulheres traziam nos barcos. Enquanto as mães tinham aulas sobre direitos humanos e organização do Estado, com professores e especialistas do direito, seus filhos eram iniciados no beabá de pequenos cuidados ecológicos e aprendizados sobre a região amazônica.

Manacapuru, onde Lucia mora, é visitada por seus prédios históricos dos tempos da borracha, pelas praias do Solimões e as festas de ciranda. Conhecida como Princesinha do Solimões, tem 90 mil habitantes e mais de 500 prostitutas cadastradas num projeto que leva o mesmo nome. A cidade fica a 80 quilômetros de Manaus. O Projeto Princesinha trabalha com prevenção às DST-Aids  e era coordenado por Lúcia quando foi convidada a participar do curso de Promotoras Populares. “As meninas de programa formam o grupo mais vulnerável”, diz Lúcia. “Muitas relatam a violência sofrida dos clientes. Quando voltam para casa em dia de movimento fraco, aí apanham dos companheiros.”

O número de “meninas de programa”  é na verdade maior que as 500 cadastradas, porque muitas trabalham escondidas, ou vêm “para faturar” nos finais de semana e retornam para os vilarejos ribeirinhos onde moram, explica Lúcia. “Descobri a violência convivendo com essas meninas, porque todo dia a gente estava com elas, choravam para desabafar”, relata. “No curso aprendi sobre o direito de todos nós, seja prostituta ou dona de casa. Antes as mulheres chegavam na delegacia, ninguém dava atenção. Agora já não é assim, a gente sabe os direitos que tem, mas a maioria ainda prefere ficar quieta. Se vai denunciar na delegacia, apanha quando volta para casa. Elas têm mais medo por causa dos filhos, porque não têm para onde ir.”

Lúcia acha que o cenário vem mudando com a Lei Maria da Penha, que completou três anos agora em agosto. “Os delegados sabem da lei, as mulheres sabem que se denunciar o marido ele pode ir preso. Nas ruas, quando se ouve uma discussão de marido e mulher, alguém sempre diz, ‘olha a Lei Maria da Penha’. Mas as pessoas preferem não se envolver, porque acaba sempre sobrando para quem denunciar ou servir de testemunha.” Quando alguma mulher vítima de agressão a procura, ela informa a quem deve recorrer, o processo, as testemunhas, o boletim na delegacia. “Eu aprendi tudo isso no curso, mas a gente fica meio de fora, porque aí o marido e a mulher fazem as pazes e fica ruim para quem denunciou.” 

Silvia perdeu a irmã  quando começava o curso

Silvia

A professora de História Silvia Regina Fracasso, 41 anos, participou da turma de 2007 das PLPs de São Paulo. Em julho, alguns meses depois do início do curso, sua irmã foi assassinada pelo marido que não concordava com a separação. Silvia guarda a certeza que se tivesse feito o curso um ano antes teria salvado a irmã, tirando-a de uma relação que tudo indicava um final trágico.

A irmã, auxiliar de serviços, morava com os dois filhos e o marido, tratorista, em Guaira, interior do Estado. “O delegado não registrou as denúncias que ela fazia nem determinou as medidas protetivas, como exige a lei Maria da Penha. Só hoje eu sei disso”, conta Silvia. O casal já tinha se separado uma vez e retornou um mês antes do crime. “Ele jogava tudo pela janela e a ameaçava de morte, ela se separou de vez. Num domingo ele apareceu, tentou matá-la, e foram levados para a delegacia. Feita a ocorrência, ele simplesmente foi embora e ela voltou desprotegida para a casa. Na quinta-feira ele voltou, botou fogo no colchão, nas roupas dela e a matou a golpes de facão.” O caso ainda não foi julgado. A filha menor do casal hoje vive com Silvia, que passou a incluir em suas aulas debates sobre as relações de poder entre homens e mulheres. “Os alunos e muitas mães me procuram nos corredores, querem saber qual a razão de tanta violência. Outros relatam brigas nas suas casas e falam do medo que sentem.”

Sem dentes

O curso de PLPs de Manaus começou em 2006 depois de contatos com a União de Mulheres de São Paulo, que formara sua primeira turma ainda em 1994. Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, presidente da União de Mulheres e coordenadora do curso em São Paulo, fez a ponte que depois se abriu em parcerias com o curso de Direito da Universidade Federal do Amazonas, o Judiciário local, e algumas secretarias de Estado do Amazonas, como a de Justiça e Direitos Humanos e a de Assistência Social.

O curso hoje é coordenado pelo Instituto Pro Hominus, uma ONG que já trabalhava com o tema junto à universidade. Alichelly Carina Macedo Ventura, 23 anos, bacharel em direito, preside o Instituto. “Queríamos um curso, porque aqui sobra violência e faltam informação e serviços. As ribeirinhas, isoladas, não têm a quem recorrer. Com o curso, elas podem se defender e se tornar disseminadoras dos seus direitos.” As articulações começaram com um grupo de mulheres e o primeiro curso tomou mais de um ano por conta da dificuldade de professores e tropeços iniciais. Foram formadas 40 mulheres, algumas de Manaus e vilarejos ribeirinhos, outras de cidades próximas, como Itaquatiara e Manacapu.

Alichelly não tem dados do estado, mas segundo números que obteve na Secretaria de Segurança Pública, só em 2008 foram 13 mil casos de violência doméstica registrados na única Delegacia Especializada da Mulher, em Manaus. Mais de mil a cada mês. “O número é bem maior, porque há muita dificuldade na aplicação da lei, por falta de informação da comunidade e o medo das mulheres. A Vara Maria da Penha está abarrotada. Em abril, quando levantamos os dados, havia audiência marcada para dezembro. Na maioria das cidades, não há nem delegacia muito menos vara especializada.”

Quase todas as mulheres participantes do curso conhecem casos de violência, dentro e fora de casa. “Na primeira turma, uma delas não tinha quase dentes na boca, de tanto apanhar do marido”, relata Alichelly. “Com o curso, mesmo tendo sete filhos, conseguiu colocar o marido alcoólatra fora de casa, voltou a estudar, hoje está engajada nos movimentos sociais. Ela diz que tinha reconquistou a autoestima.”

A intenção agora é capacitar mulheres de diferentes regiões para que possam organizar cursos em suas próprias cidades. Muitos dos professores viajarão para essas regiões aos sábados, facilitando a participação de mulheres de diferentes cidades do estado. Em Manacapuru, Lucia já está iniciando os contatos. Ela voltou a estudar e cursa gestão ambiental. “Além de acesso à Justiça, as mulheres estão sendo informadas e educadas, mudando suas vidas”, diz Alichelly.

Outra realidade pouco conhecida, mas muito presente na região, é o tráfico de mulheres. São comuns relatos de meninas desaparecidas, porque as saídas não são controladas, os espaços são enormes e há muita pobreza. “Como não há dados sobre esse tráfico, não há como convencer as autoridades de que esse é um problema muito sério na região”, lamenta.

Só a lei não basta

O braço das Promotoras Legais Populares que se estende pelos igarapés do Solimões e do rio Negro, e em dezenas de cidades brasileiras, tem sua origem no Grupo Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, de Porto Alegre, que iniciou em 1992 um projeto inspirado em iniciativas semelhantes de países da América Latina. Cursos populares de acesso ao direito, inclusive com a participação de homens, já existem em países da Ásia e da África. São conhecidos como orientadores jurídicos para-legais.

Em todos os países, especialmente no Brasil, constata-se que mesmo quando há uma legislação bem estabelecida e democrática, o desconhecimento da população leva ao não cumprimento das leis. Desta forma, embora a violência seja o pano de fundo dos cursos de PLPs, elas recebem uma extensa formação em direito das minorias, idosos, deficientes, diversidade sexual. E discutem temas como violência urbana, questões agrárias, direito do consumidor e, o principal deles, o direito à saúde.

O curso coordenado pela União de Mulheres de São Paulo já formou 15 turmas e foi realizado em 20 cidades do estado. O mais distante vem sendo feito em Manaus, voltado para as mulheres ribeirinhas. O Themis criou grupos em várias capitais do país. O Geledés, Instituto da Mulher Negra, já está iniciando sua nona turma em São Paulo. Além do trabalho nas ruas em que moram, escolas ou fábricas, o grupo Geledés conseguiu um espaço no Hospital Municipal de São Mateus, zona leste de São Paulo, onde funcionárias que fizeram o curso ficam de plantão atendendo mulheres vítimas de violência.

“Os médicos plantonistas chamam de poli-queixosas essas pacientes que reclamam de dores em todos os lugares e que voltam sempre com as mesmas dores”, diz a advogada Sonia Nascimento, do Instituto Geledés e cordenadora de formação das PLPs. “Se os médicos ouvissem essas mulheres, descobririam que muitas são vítimas da violência doméstica, muitas vezes psicológica, que não deixa marcas.”

A promotora de Justiça Eliana Faleiros Vendramini por iniciativa própria é coordenadora do programa de PLPs dentro do Ministério Público e uma de suas professoras. No momento, ela padroniza o curso e revisa a cartilha adotada em todo o país.

“As Promotoras Populares estão preparadas para questões mais amplas que as da violência contra a mulher. Embora não sejam remuneradas nem reconhecidas, elas assumem a defesa dos direitos dos cidadãos de forma surpreendente”, diz Eliana.

“Quando chegam na delegacia com uma vítima de violência, o delegado já sabe que está lidando com quem conhece a lei. Elas falam na cara da autoridade, porque ao mesmo tempo que não são reconhecidas nem pagas, a força da ideologia é tão grande que elas não têm medo de nada. O delegado pode fazer o que fizer, que elas não saem dali.”

Segundo Eiana, as Promotoras Legais Populares estão provocando mudanças nas delegacias de polícia e no Judiciário. Até mesmo nas questões de direitos do consumidor em supermercados, bancos e outros serviços públicos.

“No início,a intenção era promover cursos para atender apenas o movimento de mulheres”, diz Amelinha, da União de Mulheres de São Paulo. “Hoje tem gente do movimento por moradia, movimento negro, educação, saúde, gente da classe média buscando conhecer seus direitos.”

Os cursos em São Paulo e nas diversas cidades do país são sempre realizados em parceria com alguma ONG feminista, o Ministério Público, as associações de magistrados, as secretarias de Justiça, Direitos Humanos, Assistência Social e professores de universidades locais.

Visite
www.uniaodemulheres.org.br
www.themis.org.br
www.geledes.org.br
www.promotoraslegaispopulares.org.br  

Grupos para agressores reduzem reincidência a menos de 5%

Previstos na Lei Maria da Penha, grupos reflexivos apresentam resultados surpreendentes, mas ainda são poucos e encontram resistência da sociedade e do Judiciário. Menos de 5% dos homens que praticam violência contra a mulher e participam de grupos de reflexão por determinação da Justiça voltam a agredir suas companheiras. Em São Gonçalo (RJ) os números do Juizado Especial Criminal da Violência Doméstica registram reincidência em torno de 2%. Lá, há dez anos, o juiz Marcelo Anátocles propõe a participação em grupos reflexivos como alternativa para a suspensão temporária do processo ou mesmo como cumprimento da pena.

Em Nova Iguaçu, também no Rio, um projeto piloto de grupos onde estão ou já passaram 474 homens, a reincidência é de 5% considerando o período de um ano de seguimento. Em São Caetano do Sul, no ABC paulista, em grupos de reflexão realizados ao longo de dois anos e meio, um único participante voltou a agredir sua companheira. Uma pesquisa feita na Vara Especial de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, de São Luiz, no Maranhão, onde não há grupos para homens, revelou que 75% dos agressores são reincidentes.

Em Belo Horizonte, o Projeto Andros, do Instituto Albam, que também tem grupos reflexivos para homens, ainda não tem estatísticas sobre reincidência. “Não sou tão otimista, porque o impacto do grupo é muito variado para cada homem”, diz a psicóloga Claudia Natividade, que desde 2005 coordena o trabalho.  “Alguns se mantêm fechados e dentro de suas posições hegemônicas, não conseguem reflexionar absolutamente nada. Outros mostram sinais de mudança. Na verdade, a proposta que estamos levando, que é a mudança das relações de poder, não é simples e precisará ser galgada por muitas gerações.”

Centros de educação e reabilitação de homens agressores estão previstos na Lei Maria da Penha, que em agosto completou três anos. Mas mesmo os serviços especializados de atendimento à mulher agredida, como delegacias, abrigos e centros de referência, já previstos em legislações anteriores, ainda são pouquíssimos no país. O número de delegacias de polícia, embora tenha dobrado nos últimos anos, não chega a 450.

A tímida resposta do Estado levou grupos de mulheres à criação do Programa de Promotoras Legais Populares, cujas “formandas” acolhem, informam e acompanham voluntariamente as vítimas de violência (veja texto nesta reportagem).

Os serviços para homens agressores são em número menor ainda e sua criação e manutenção sofrem com resistência da sociedade, das entidades do Judiciário, além da compreensão de alguns grupos de mulheres. Pesquisas feitas com a população em geral, com participação do Ibope, Instituto Avon e Instituto Patrícia Galvão, mostram que mais de 50% das pessoas acham que a prisão é a sanção mais indicada para homens agressores.

alberto araújoAlichelly
Alichelly: “As ribeirinhas, isoladas, não têm a quem recorrer”

Briga de casal não  é como briga de bar

“A prisão nunca foi uma solução para a violência doméstica e as mulheres sempre souberam disso”, diz Karla Bugarib, promotora de Justiça criminal de São Caetano. “O grande avanço da Lei Maria da Penha foi reconhecer que a violência doméstica não é como briga de bar, por isso demanda atenção e tratamento multidisciplinar, tanto para o agressor quanto para a vítima.” São Caetano manteve por mais de dois anos grupos de homens coordenados por voluntários, mas faltou apoio da prefeitura. Segundo a Lei Maria da Penha, a criação de serviços e campanhas compete à União, estados e municípios, mas depende igualmente do Judiciário, já que compete ao juiz o encaminhamento dos homens para os grupos.

A equipe que atuava na cidade do ABC está agora se reunindo com a Defensoria Pública e o Juizado Especial da Violência Doméstica da capital paulista para iniciar grupos em setembro. “Ainda encontramos resistência”, diz o filósofo Sergio Barbosa, especialista no tema, que dirigiu o grupo e conta com uma equipe de quatro profissionais. Segundo ele, até agora a titular do recém-criado Juizado Especial da capital paulista vem encaminhando homens agressores para grupos alternativos como alcoólatras anônimos, instituições religiosas e outros de autoajuda, de acordo com o perfil do agressor. “Ela não vê a Maria da Penha como uma lei de isonomia dos direitos humanos.”

Para Barbosa, a intenção é  mostrar, estatisticamente, que a reincidência diminui muito e que o homem começa a aprender uma nova perspectiva de gênero. Ele acredita que quando os juízes começarem a adotar a Lei Maria da Penha não haverá grupos suficientes para receber os agressores, a menos que os governos se mobilizem. Como solução de urgência, propõe uma triagem para analisar cada processo e avaliar casos em que as mulheres correm maior risco.

Belo Horizonte segue um caminho parecido. Embora tenha duas varas especializadas em violência contra a mulher, a cidade ainda não tem um Juizado Especial de Violência Doméstica. Só nessas duas varas existem 22 mil processos, envolvendo pelo menos 10 mil casos que ferem a Lei Maria da Penha, diz Eduardo Machado, da Promotoria de Combate à Violência Contra a Mulher. Na maioria, eles são encaminhados para a Central de Triagem Alternativa, como qualquer outra infração considerada de menor potencial ofensivo, e aguardam na fila.

Enquanto o Juizado não é criado, o Ministério Público de Belo Horizonte e o Instituto Albam firmaram convênio para que os grupos reflexivos sejam reconhecidos como medida preventiva. “Ou seja, no curso do processo, quando a gente percebe que a vítima está em situação de risco, solicitamos que esse homem seja incluído num desses grupos”, diz o promotor Eduardo Machado. “Dentro dos grupos os homens são monitorados de perto pelos profissionais”, diz Claudia Natividade, do Instituto Albam. “É muito difícil que um homem agrida uma mulher durante os meses em que participa do grupo.” Claudia vê na idéia uma solução avançada. “É como se você trabalhasse uma ação preventiva, dentro de uma ação penal tradicional penal e organizada, com todos seus ritos.” Antes de ser apenas punitivo, o grupo impediria que outras violências venham a ser cometidas.

O Instituto criou o Projeto Andros – Homens Gestando Alternativas para o Fim da Violência –  ainda em 2005, na esteira da Lei 9.099, que estabeleceu os Juizados Especiais Civis e Criminais. A intenção era dar um tratamento diferenciado para o caso de violência doméstica, que não fosse só cesta básica e prestação de serviços à comunidade. Com a Lei Maria da Penha, o projeto passa a ser uma política pública de Estado.

“O trabalho ainda é pequeno e acaba atingindo poucos homens diante do número de violações no contexto doméstico, mas é um momento para que eles possam refletir, se responsabilizar pelo que fizeram”, diz Claudia. “Muitos nunca tiveram a oportunidade de conversar a respeito com outras pessoas. Entram no grupo dizendo, ‘eu só dei um empurrão’, ‘eu não fiz nada’, ‘ela me provocou’. Eles não conseguem perceber os malefícios dessa desestruturação familiar. Quando percebem, passam a refletir.”

Os grupos como proteção às mulheres

Belo Horizonte segue um caminho parecido. Embora tenha duas varas especializadas em violência contra a mulher, a cidade ainda não tem um Juizado Especial de Violência Doméstica. Só nessas duas varas existem 22 mil processos, envolvendo pelo menos 10 mil casos que ferem a Lei Maria da Penha, diz Eduardo Machado, da Promotoria de Combate à Violência Contra a Mulher. Na maioria, eles são encaminhados para a Central de Triagem Alternativa, como qualquer outra infração considerada de menor potencial ofensivo, e aguardam na fila.

Enquanto o Juizado não é  criado, o Ministério Público de Belo Horizonte e o Instituto Albam firmaram convênio para que os grupos reflexivos sejam reconhecidos como medida preventiva. “Ou seja, no curso do processo, quando a gente percebe que a vítima está em situação de risco, solicitamos que esse homem seja incluído num desses grupos”, diz o promotor Eduardo Machado.

“Dentro dos grupos os homens são monitorados de perto pelos profissionais”, diz Claudia Natividade, do Instituto Albam. “É muito difícil que um homem agrida uma mulher durante os meses em que participa do grupo.” Claudia vê na idéia uma solução avançada. “É como se você trabalhasse uma ação preventiva, dentro de uma ação penal tradicional penal e organizada, com todos seus ritos.” Antes de ser apenas punitivo, o grupo impediria que outras violências venham a ser cometidas.

O Instituto criou o Projeto Andros – Homens Gestando Alternativas para o Fim da Violência –  ainda em 2005, na esteira da Lei 9.099, que estabeleceu os Juizados Especiais Civis e Criminais. A intenção era dar um tratamento diferenciado para o caso de violência doméstica, que não fosse só cesta básica e prestação de serviços à comunidade. Com a Lei Maria da Penha, o projeto passa a ser uma política pública de Estado.

“O trabalho ainda é pequeno e acaba atingindo poucos homens diante do número de violações no contexto doméstico, mas é um momento para que eles possam refletir, se responsabilizar pelo que fizeram”, diz Claudia. “Muitos nunca tiveram a oportunidade de conversar a respeito com outras pessoas. Entram no grupo dizendo, ‘eu só dei um empurrão’, ‘eu não fiz nada’, ‘ela me provocou’. Eles não conseguem perceber os malefícios dessa desestruturação familiar. Quando percebem, passam a refletir.”

O grupo Andros mantém sempre dois coordenadores nos grupos, um homem e uma mulher. “É uma estratégia para que eles possam ouvir as mulheres dentro de situações diferenciadas de poder”, diz a psicóloga.

Abordagem terapêutica

O psicólogo Fernando Acosta foi um dos primeiros a colocar em prática a tese de que o homem não pode apenas ser punido e excluído do drama social que é a violência contra a mulher. Desde 1993 ele viaja pelo país falando com operadores do direito, delegados, grupos de mulheres. “Levamos anos para selar uma aliança com o movimento feminista, mas com o poder Judiciário, mesmo com a Lei Maria da Penha, este ainda é um grande desafio. É preciso entender que essa violência não faz bem às mulheres, aos homens nem às crianças que a testemunham”, diz.

“Os grupos não são de conscientização”, explica Fernando Acosta. “Trabalhamos com a subjetividade da masculinidade, com a violência que ela pode gerar. Não é um grupo de tratamento, mas tem uma abordagem clínica, terapêutica, que é uma tendência mundial. Na Escandinávia,  por exemplo, o trabalho é feito antes que o caso chegue na Justiça.”

Depoimentos

“O grupo tirou o véu da ignorância da gente”

O cabeleireiro Edvaldo César Alves tem 42 anos, dois meninos do primeiro casamento e três do atual. No ano passado, ele participou do Projeto Andros, grupo para homens acusados de violência contra a mulher e coordenado pelo Instituto Albam, de Belo Horizonte. Foi encaminhado pelo Judiciário. Alves conta que ficou revoltado nos primeiros encontros, mas hoje faz um balanço positivo. “Minha própria mulher me denunciou, por essa história de agressão. Na época, caí nessa armadilha e retribuí. Como o homem é mais forte, ela levou a pior”, relata.

“Fui chamado para a Delegacia da Mulher e o juiz me mandou para o grupo. Me senti revoltado. Eu trabalho honestamente e estou sendo tratado como bandido, não deixo faltar nada para os filhos, e estou aqui. Fiquei revoltado”, lembra, admitindo que com o passar dos dias foi se acostumando e vendo a situação com interesse: “Aprendi muito sobre a vida, o que é importante, o que não é. Caiu a ignorância, de eu achar que o homem pode tudo. Ouvindo o relato de outras pessoas, a gente vê que isso prejudica mais ainda o relacionamento e a convivência com os filhos”.

O cabeleireiro observa que muitas autoridades são despreparadas para lidar com um tema tão delicado. “Veja bem como são as coisas, uma vez ela me agrediu sem eu ter feito nada, e na de frente de testemunha. Chamei a polícia e fomos todos para a delegacia. Chegando lá, uma oficial de polícia foi dizendo, ‘tem que fazer isso mesmo, eles  tem que tomar na cara mesmo’”, descreve. “Incentivar a violência, incentivar a pessoa a agir errado, isso não é coisa que se espera de uma autoridade. Se eu der na cara de uma mulher, ela vai sentir, se ela der na minha cara, mesmo sendo homem, eu vou sentir.”

“Eu a agredia para acalmá-la”

Amarildo, 48 anos, três ex-companheiras, três filhos do último casamento, está na quinta sessão de um total de 20 do grupo de homens em Nova Iguaçu. Ele conta que as confusões começaram por falta de dinheiro, porque não parava muito em casa e às vezes chegava alcoolizado. “Eu agredia ela, é verdade, mas era para ela parar, para tranqüilizar. Eu empurrava ela no sofá, até ela ficar quieta, porque ela é tinhosa, teimosa. Os filhos viam as discussões, isso era ruim. Fui umas três vezes na delegacia, mas minha mulher não queria me ver preso. Até que me mandaram para o curso e ela foi para a casa da mãe.”

Elias (o nome é fictício), motorista, 49 anos, está terminando a série de 16 encontros no grupo coordenado pelo Instituto Albam e o Ministério Público, em Belo Horizonte. Para ele, as divergências que levaram o caso à polícia foram provocadas pelos filhos do primeiro casamento, que não aceitavam a segunda mulher. “Estou pagando 16 semanas de curso, aprendendo com o erro dos outros. Meu filho me ameaçava, diz que se eu voltar onde eles estão morando, eu sou um homem morto. Eu estava tão revoltado que pensei em saltar do prédio onde fazia o curso. Hoje eu penso que toda família passa por desestruturação, está bem no café da manhã, no jantar já está em crise, todos deveriam fazer terapia em família. Agora me resta recomeçar a vida, que eu quero deixar o ódio de lado.”

Como a sociedade vê  a violência contra a mulher
55% dos entrevistados conhecem casos de agressões a mulheres

56% apontam a violência doméstica como o problema que mais preocupa a brasileira

64% acreditam que a mulher não abandona o agressor por razões econômicas, preocupação com os filhos e medo de ser morta

51% defendem a prisão do agressor

11% defendem a participação em grupos de reeducação como medida jurídica

44% acreditam que a Lei Maria da Penha já está tendo efeito

56% não confiam na proteção jurídica e policial

38% acham que o alcoolismo está  por trás da violência contra a mulher

48% acreditam que o exemplo dos pais pode prevenir a violência doméstica

Fonte: Pesquisa Ibope-Instituto Avon, 2009, com planejamento e supervisão do Instituto Patrícia Galvão