cidadania

Política do pão e circo

A Prefeitura de São Paulo trata com descaso a situação de mais de 10 mil moradores de rua na cidade

Jailton Garcia

Adriana vive com os filhos na rua há seis meses

A tarde do dia 19 de agosto em São Paulo presenciou um cortejo diferente. Moradores de rua, que habitualmente sobrevivem invisíveis ao longo do dia, saíram de quatro pontos da cidade para protestar pelos cinco anos de impunidade do crime que escancarou o espírito da região central da capital, até então encoberto pelas sombras do cinismo. Em agosto de 2004 sete moradores de rua foram assassinados como animais. Outros oito ficaram feridos.

Mas a procissão não apenas relembrava a barbaridade. Também denunciava que “o massacre continua”, como costuma dizer Anderson Lopes Miranda, 33 anos, do Movimento Nacional da População de Rua (MNPR). Anderson viveu em orfanatos até os 14 anos de idade, quando decidiu pegar o “trecho” – gíria para os deslocamentos de uma cidade a outra – e dormir nas ruas. O movimento começou após os assassinatos na região da Sé. De lá para cá, já foram organizados dois encontros nacionais da população de rua. “Chega de assistencialismo. Precisamos de políticas públicas de qualidade”, afirma. 

Anderson não vive mais nas ruas. Conseguiu um apartamento da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), onde mora com a mulher e dois filhos. É uma exceção entre seus “iguais”, homens, mulheres e crianças que estão nas calçadas.

Caminho pela noite fria no centro de São Paulo e encontro, sob um amontoado de papelões, Adriana Maria Leão, de 25 anos, com os filhos Jéferson e Mateus, de 5 e 3. Há seis meses nas ruas, ela aguarda a doação de comida, realizada toda terça-feira à noite por um grupo de evangélicos, nas proximidades do Pátio do Colégio. Adriana não é a única. Centenas de outras pessoas, nas mais diferentes e complexas condições físicas e psíquicas, ocupam as cinzentas calçadas à procura de alimento, trabalho e dignidade, exaustas de desalento.

Sebastião Nicomedes de Oliveira, 41 anos, já conseguiu mudar sua história trabalhando como escritor e dramaturgo (ele possui diversas peças e um livro publicado). “Apesar de viver hoje numa pensão, não consigo andar pelas ruas como se fosse um ex-morador de rua. Eu me interesso pelas pessoas que vejo nessa situação e ando com elas”, conta Tião. Nero Valter, 72 anos e há três nas ruas, ex-motorista, relembra antigos trabalhos glamurosos com personalidades. E interrompe a história no episódio do acidente de carro com a família. O catador de papelão Clarin da Silva, 64 anos, veio para São Paulo há mais de duas décadas, deixando quatro filhos em Cachoeiro do Itapemirim (ES). Ninguém de sua família sabe da sua real situação.

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Sem saída

Essas pessoas formam um contingente estimado em mais de 10 mil, segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (Smads), que parece uma máquina de assistencialismo sem nenhum compromisso com a reabilitação delas. Deveria ser diferente. De acordo com a Lei Municipal nº 12.316, de 1997, regulamentada em 2001, cabe ao poder público municipal prestar atendimento à população de rua na cidade e ter um plano de reinserção social dividido em três passos básicos. Os albergues seriam apenas a porta de entrada nesse processo de reabilitação. Depois de seis meses, no máximo, a pessoa migraria para a moradia provisória, onde teria mais autonomia e responsabilidades. O passo seguinte seria ir para a moradia definitiva, através de subsídio da prefeitura. A Smads, dirigida pela vice-prefeita, Alda Marco Antônio, alega que é assim que funciona e muitas pessoas vivem nas ruas porque querem, uma vez que há trabalhos de abordagem e vagas nos albergues.

“Eu nunca escolhi nada. Não queria estar na rua com meus filhos”, conta Adriana, que já passou por diversos dos 40 albergues da rede municipal, mas sempre acaba voltando às ruas. A prefeitura já fechou dois albergues no centro da cidade e planeja fechar o terceiro, no bairro da Liberdade. “A secretária não fala com o povo da rua. Ela está sempre ocupada como vice-prefeita”, critica Robson César Correia Mendonça, 58, líder do Movimento Estadual dos Moradores de Rua, uma subdivisão do movimento nacional.

Alda alega que “tem muita gente que ganha R$ 1.000 e continua morando nos albergues por comodismo”. Na Câmara Municipal, em depoimento à Comissão de Direitos Humanos, a vice-prefeita declarou que pretende reduzir o número de vagas nos albergues pela metade. Atualmente há 8 mil vagas na rede para atender mais de 10 mil pessoas nas ruas, segundo a prefeitura, ou 19 mil, segundo os movimentos sociais.

Outro plano da secretária é a criação dos centros de convivências. Um deles foi instalado no Parque Dom Pedro II, inaugurado em 24 de julho pelo prefeito Gilberto Kassab (DEM). O investimento foi de R$ 66 mil. Batizado de Espaço de Convivência Jardim da Vida Dom Luciano Mendes de Almeida, ocupa uma área de 100 metros quadrados, coberta por uma tenda, e é visitado diariamente, em média, por 100 pessoas. Há banheiros químicos e chuveiros, jogos de tabuleiro e espaço com TV. “Lá eles podem passar a noite seguros, como se estivessem nas ruas; tem banho oferecido, mas não obrigado, e, acima de tudo, tem educadores prontos para conversar”, disse a vice-prefeita.

A prefeitura pretende convencer também as entidades que distribuem alimentos pelas ruas a centralizar suas ações na tenda. Como “incentivo”, tem multado carros que estacionam em lugares irregulares para fazer a entrega da comida. Para Robson, do movimento social, a tenda lembra a famosa trupe “do Cirque de Soleil”, só que menos animada. “A prefeitura pensa que morador de rua é palhaço para colocá-lo sob uma lona”, esbraveja. Segundo ele, um homem teria morrido de frio ao se refugiar no circo, poucos dias depois de ser montado.

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Preconceito

Na opinião do sociólogo Cássio Giorgetti, 35 anos, o atendimento à população de rua patina devido a preconceito e falta de conhecimento do perfil desse público. “Medidas eleitoreiras são tomadas a todo instante. Um exemplo é a criação de vagas de trabalho para pessoas que ainda não foram recuperadas das sequelas de sua vivência nas ruas”, observa. Filho do cineasta Ugo Giorgetti, Cássio foi responsável pela Central de Atendimento Permanente e de Emergência (Cape), da Smads, de 2004 a 2007. A tarefa dos agentes sociais do Cape era encaminhar as pessoas em situação de rua aos abrigos. “A contradição é que não tínhamos vagas nos albergues para todos”, relembra.

Durante o tempo em que esteve na prefeitura, Cássio conheceu o que chama de “o outro lado da noite” (que deu título ao livro publicado por ele, em abril). Entre as piores carências está, em sua opinião, a falta de atendimento médico adequado para essas pessoas, principalmente contra o alcoolismo. Ele lembra de um caso, “entre as quase diárias mortes que ocorrem nos equipamentos da prefeitura ou nas ruas”. A viatura da Cape conduzia um homem chamado Ricardo Oliveira à Santa Casa de Misericórdia de Santo Amaro. “Ele cuspia sangue, tinha diarreia e vômito.” Ao chegar ao hospital, Ricardo foi atendido rapidamente. O laudo médico dizia: “Paciente encontra-se em péssimo estado de higiene e mau cheiro (…) não se trata de uma patologia que necessita de auxilio de hospital. Trata-se de problema social”. Ricardo morreu a caminho do albergue, dentro da viatura.

Apesar de a vice-prefeita e responsável pela Smads, Alda Marco Antônio, dizer que “não tem conhecimento” de ações ostensivas ou desrespeitosas contra moradores de rua no Centro, no dia 18 de agosto viaturas policiais, além de caminhões da prefeitura, estacionaram nas proximidades do Mercado Municipal. “É a forma como o Estado e a prefeitura estão fazendo memória do massacre. Com um tratamento torturante e desrespeitoso de tirar os pertences das pessoas, lançar jatos de água e impossibilitar qualquer defesa”, relatou o Padre Júlio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua.

“Parecia um campo de concentração”  
Depoimento de Rubens Marujo

Rubens Marujo

Morei no Albergue São Francisco, esquina da rua Santo Amaro com o viaduto Jacareí, bem em frente à Câmara Municipal de São Paulo. Antes, chamava-se Cirineu e era administrado por uma ONG de quinta categoria, com verba da prefeitura. Quebrado, sem dinheiro, não conseguia arrumar emprego e fui parar lá. Éramos mais de 400 pessoas amontoadas num imenso porão-dormitório sujo. Um depósito de seres humanos, com um cheiro insuportável. Senhores com mais de 80 anos misturavam-se a jovens alcoólatras, drogados, crianças, mulheres, pessoas com deficiência, tuberculose, aids, alguns ex-presidiários, outros em condicional, nenhum tipo de assistência. 

Aquilo se assemelhava a um campo de concentração nazista. Durante dez anos o albergue funcionou ali – foi desativado por força de um abaixo-assinado de vizinhos. O “dum-dum” dos veículos ao passar pelas emendas do viaduto martelava nossos ouvidos. Com raríssimas exceções, os monitores, contratados pela igreja e sem qualificação profissional, nos humilhavam, deixando-nos na fila, debaixo de chuva e frio, à espera da hora de entrar. Entrava-se após as 17h30 e acordava-se às 5 horas. Até as 7, todos tinham de ir para a rua, inclusive aos domingos e feriados, fizesse sol ou chuva. As assistentes sociais explicavam que eram ordens da prefeitura. Alguns idosos não conseguiam fazer suas necessidades no banheiro. Sujavam a roupa, a cama, o chão. Não havia fralda geriátrica.

Para conseguir almoçar era preciso esperar até três horas. Um papel colado na parede interna do dormitório indicava a dedetização vencida. Os dormitórios ficavam infestados de baratas e outros insetos, principalmente muquiranas, espécie de piolho que dá no corpo de quem não toma banho, produzindo uma coceira infernal. Suportávamos as humilhações com medo de represálias: ser cortado e ir para a rua. Eram filas para entrar, para pegar alguma roupa no bagageiro, para tomar banho (quando os chuveiros funcionavam) e para jantar. Não adiantava muito tomar banho, porque éramos obrigados a vestir a mesma roupa, que cheirava mal.

Às 5 da manhã, no auge do sono, as luzes do amplo dormitório eram acesas. Lavava o rosto, escovava os dentes e ia tomar café. Ficava observando o movimento de homens sujos e maltrapilhos, que geralmente não falavam coisa com coisa. Muitos usavam muletas ou bengalas, com a perna ou os braços engessados. Não era difícil adivinhar o motivo: embriaguez seguida de atropelamento. Pouco antes das 7 horas estava na rua. Passava na banca mais próxima para ler as manchetes. Eu era um maloqueiro bem informado. Quando ainda estava com sono, pegava um ônibus que fazia um roteiro bem longo. Não foram poucas as vezes em que acordei com o cobrador gritando: “Ponto final, Terminal Santo Amaro. Queira descer, por favor!” Descia, subia a escada do terminal e pegava o ônibus de volta. Graças aos meus cabelos brancos eu não pagava passagem. Duas horas para ir e duas para voltar: quatro a menos na rua. Aí tentava almoçar.

Depois voltava para a rua. Tinha de enfrentar a realidade. O corpo dolorido. Andava desconjuntado de tanto sentar em superfícies duras. Quanta saudade de um sofá. Sentava em um degrau de uma porta qualquer e ficava pensando na vida, no meu passado. Com tênis furado, calça larga e camiseta suja, me sentia um espantalho.

Numa tarde fazia muito calor. Entrei num bar e sentei num banquinho. Pedi um copo de água da torneira e o funcionário respondeu: “Aqui, meu senhor, água da torneira se toma em pé e do outro lado do balcão”. Sentia uma vontade louca de tomar um cafezinho. Andava olhando para o chão na esperança de encontrar dinheiro.

Entrar num albergue é fácil. Sair é o problema. Tem gente há mais de dez anos nessa vida. Um dia mandei um e-mail (no centro velho da cidade existem alguns lugares em que se pode acessar a internet) desesperado para um jornalista amigo meu. Ele sempre me ajudava e pedia para que não perdesse a esperança. Mas eu estava mal, com princípio de pneumonia, cansado e com a autoestima lá embaixo. Sem forças. Eu não acreditava em mais nada e pensava até em abreviar a vida. Ele repassou o e-mail para outros jornalistas, que no final das contas acabaram me socorrendo com algum dinheiro e algumas roupas e pediram para eu sair de lá. Providenciaram trabalho, ajuda psicológica, e eu me reintegrei à sociedade. Mas sou uma exceção. Comigo aconteceu o que chamo de milagre.

Rubens Marujo, 57 anos, é jornalista profissional, morou num albergue da Prefeitura de São Paulo durante três meses em 2008.