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Avanços contra o câncer

Nas duas últimas décadas a ciência descobriu que a doença pode ser prevenida e combatida com exames, medicamentos e cirurgias mais precisos. O Brasil começou a investir tarde e precisa tirar o atraso para democratizar o acesso aos diagnósticos, à prevenção e ao tratamento

Alexsander ferraz

Com o apoio decisivo da mulher, André voltou a cantar e a reger

A  sentença foi recebida pelo maestro André Infante, da Orquestra Sinfônica de Santos (SP) em 1987: o tumor de mais de seis quilos deveria ser reduzido com quimioterapia para então ser retirado, e não haveria tempo. Por decisão de Marília, sua mulher, que o via definhando a cada dia, o tratamento recomendado foi interrompido no início. Depois de alguns dias, ele fez a cirurgia para a retirada do sarcoma de retroperitônio, no Hospital do Câncer A.C. Camargo, na capital paulista. Trata-se de um tumor pouco comum, que afeta tecidos como músculo, gordura e nervos, muito semelhante ao que acomete o vice-presidente da República, José Alencar.

Nesses 22 anos, André passou por 22 cirurgias: “A doença é como uma trepadeira na árvore. Sempre cresce e precisa ser aparada”. O maestro teve retirados parte do intestino grosso, um rim, baço, um pedaço do diafragma e do pâncreas. Mesmo assim vive bem e sem medicação. Cinco anos depois de ser operado pela primeira vez já podia levantar os braços para reger a orquestra.

Aos 71 anos, canta e atinge tons tão altos que ninguém diria que ele passou por tudo isso. Segue uma rotina de consultas, tomografia, ressonância magnética e exames de sangue periódicos. O tratamento “classe A” é pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS), ele faz questão de ressaltar. “Meu sonho era ver minha filha crescida, e hoje ela já tem 22 anos”, diz.André se beneficia dos avanços no tratamento do câncer obtidos nos últimos anos. A cada dia a ciência revela mistérios dessa doença que todo ano mata mais de 6 milhões em todo o mundo. “Cada pessoa tem sua própria constituição molecular, por isso responde a tratamentos de maneira diferente. Esse conhecimento permite biópsias mais completas e estratégias terapêuticas específicas e bem-sucedidas”, diz Carlos Gil Moreira Ferreira, chefe do serviço de pesquisa do Instituto Nacional do Câncer (Inca), no Rio de Janeiro.

Essas terapias, as chamadas drogas-alvo, agem especificamente em alguns pontos da célula cancerosa. É o caso de fármacos desenvolvidos para mulheres com câncer de mama, que têm em suas células receptores do hormônio estrógeno, alimentadores do tumor. Sem a ação hormonal, o tumor deixa de evoluir. Ou das novas drogas quimioterápicas chamadas anticorpos monoclonais. Uma delas é o cetuximabe, que impede o desenvolvimento e propagação de vários tipos de câncer. “Conhecendo as características do tumor e do paciente, é possível tratar de maneira personalizada. Há 20 anos, havia um só tratamento para todas as pessoas”, explica Ademar Lopes, diretor do departamento de cirurgia pélvica do Hospital do Câncer.

Para Sérgio Petrilli, oncologista pediátrico da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e superintendente do Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer (Graacc), esse conhecimento levará, no futuro, a métodos que impeçam a proliferação ou mesmo o retorno da doença.  Por enquanto, o que já se sabe sobre o perfil genético de alguns tipos de leucemia está ajudando os médicos a decidir pelo tratamento ou cirurgia mais adequados. “Temos também tecnologia para determinar a quantidade de células doentes que ficaram no corpo depois do tratamento, o que está ligado aos riscos de recaída. Só há cura quando o número de células doentes é bem pequeno e o organismo consegue combater”, diz Petrilli.

Outro avanço foi a descoberta de que muitos casos começam com lesões benignas. É o caso de um pólipo – espécie de verruga – localizado no intestino que pode virar câncer. Hoje se sabe que por meio de uma colonoscopia é possível removê-lo. Bactérias que causam irritações na mucosa do estômago podem evoluir para tumores malignos. Vírus como os da hepatite B (HBV) e C (HCV) estão entre as causas do câncer de fígado. E falta de higiene, isso mesmo!, pode provocar uma irritação crônica na cabeça do pênis também capaz de virar câncer, cujo tratamento muitas vezes é a amputação. O problema é tão sério que levou a Associação Brasileira de Urologia a lançar campanha nacional para esclarecer a população. 

A constatação de que a doença em muitos casos pode ser evitada veio com as descobertas sobre o cigarro, associado a 90% das ocorrências de câncer, que por progredirem rapidamente reduzem as chances do tratamento. Segundo o Inca, das 4.700 substâncias que produzem o cigarro e sua fumaça, 60 são cancerígenas. Parte delas é absorvida pela mucosa da boca e da garganta. Outra parte segue para os pulmões.

Os exames também avançaram. A ultrassonografia evoluiu e se aliou à tomografia computadorizada, à ressonância magnética e a outras variações. Por exemplo, o PET Scan, capaz de detectar tumores minúsculos e suas ramificações pelo corpo, as metástases, e de indicar se o tratamento está sendo bem-sucedido. A radioterapia, que emite radiações sobre o tumor e promove um desequilíbrio molecular que leva à morte as células cancerosas, é cada vez mais precisa. A modalidade mais moderna, a conformacional, é capaz de irradiar apenas a área do tumor e amenizar as sequelas.

Regina de grammontMaria Lustig
A terapeuta corporal Maria Lustig superou dois tumores, um no útero e outro na mama

A combinação de quimioterapia, radioterapia e cirurgia leva à cura em 70% dos casos de leucemias e sarcomas (tumores ósseos), que afetam mais crianças e adolescentes. Em outros, as chances são de 90%. Se houver metástase, 50%. “Nos sarcomas, a quimioterapia é feita ao longo de 12 semanas. Então, o ortopedista tira o tumor e coloca uma prótese interna, preservando o braço ou a perna. As amputações só são necessárias quando há infiltração nos vasos sanguíneos”, explica Sérgio Petrilli. Até o final dos anos 1970, os doentes eram submetidos a amputações e mais de 80% morriam até dois anos após o diagnóstico. O êxito da terapia e, principalmente, a manutenção do membro dependem do diagnóstico precoce.

O desenvolvimento da quimioterapia e da radioterapia e o maior conhecimento dos aspectos biológicos do câncer de mama impulsionaram o avanço na cirurgia. Até a década de 1980 eram retirados todo o órgão, os músculos da região e as glândulas da axila, e os resultados estéticos, funcionais e emocionais eram desapontadores. Hoje, quando o tumor ainda é menor do que 3 centímetros, é possível a retirada de apenas um quarto da mama, com excelentes resultados.

Em alguns outros casos, porém, é realizado o procedimento tradicional. Foi o que aconteceu com a terapeuta Maria Vargas Lopes Lustig. Em 2007, com exames periódicos recém-feitos e resultados normais, ela percebeu que o mamilo esquerdo estava retraído e a aréola, inchada e vermelha. O médico, procurado às pressas, suspeitou de uma mastite (inflamação da mama), mas mandou fazer novos exames e uma biópsia. O tumor era tão agressivo que cresceu 2 centímetros em 15 dias. Em um mês e meio, mais 1,5 centímetro. A mastectomia total precisou ser feita poucos dias depois.

Maria conta que, ao contrário de quando teve câncer no útero, em 2001, e foi submetida à retirada do órgão, dessa vez pôs para fora seus sentimentos como forma de terapia. “Procurei amigos, professores, orei muito”, diz. Depois da cirurgia vieram as sessões de radioterapia, quimioterapia e a queda dos cabelos. Fez ioga e psicoterapia e ainda faz exercícios. Embora se sinta constrangida em ir à piscina, por exemplo, não se sente pronta para a reconstrução mamária. Mas tem certeza de que está bem. “Saí da doença fortalecida.”

As cirurgias deverão ser ainda mais precisas e pouco invasivas graças aos robôs, que já operam experimentalmente em diversos centros oncológicos. Medicamentos contra dor, infecção e vômitos – comuns durante a quimioterapia – também melhoraram. Em muitos centros de tratamento há apoio psicológico, nutricional, reabilitação para sequelas de cirurgia em tumor cerebral (que hoje são menores) e ambiente mais acolhedor.

Iniciativas como as do Graacc, onde 95% dos pacientes vêm do SUS, têm reduzido a zero a desistência do tratamento. A escola móvel, com grupo de professores e voluntários, impede que a criança fique longe dos estudos. E há apoio à criança mais pobre durante o tratamento, como hospedagem e alimentação para ela e acompanhante. No passado, 10% delas desistiam. “E desistir de tratar é morrer”, lembra Sérgio Petrilli.

Investir em prevenção

Todas essas boas notícias são fruto de pesquisas intensificadas há quase 40 anos. Em janeiro de 1971, o presidente americano Richard Nixon declarou guerra ao câncer e injetou mais verba em pesquisa. Vinte anos depois, os resultados começaram a aparecer. Segundo a Sociedade Americana do Câncer, desde 1991 o número de mortes pela doença cai a cada ano.

No Brasil, ainda não é bem assim. Nas duas últimas décadas o número de mortes aumentou 43%. Entre os principais fatores desse crescimento estão o envelhecimento da população, a urbanização, dietas alimentares inadequadas e o tabagismo. A idade é um importante fator de risco por uma razão matemática: é mais tempo de exposição a agentes como cigarro, sol, alimentos gordurosos e industrializados lotados de aditivos químicos e radiação ionizante – como aquelas emitidas por raio X –, entre outros. Estima-se que em 2025 o país terá cerca de 30 milhões de pessoas com mais de 60 anos. Mas a pesquisa por aqui só começou a ser incrementada de 2005 para cá, quando o governo federal passou a investir mais recursos.

mauricio moraisademar
Ademar Lopes, do Hospital do Câncer: “Hoje são curados 50% de todos os tipos da doença. Poderíamos curar até 90%, com diagnóstico precoce e tratamento apropriado”

Aqui e no mundo, um grande desafio do câncer é conhecer mais profundamente os complexos mecanismos internos das células cancerosas. Há algum tempo, quando os cientistas descobriram que uma droga chamada inatimibe impedia o crescimento celular em alguns tipos de leucemia, muita gente imaginou que isso se aplicaria também a outros tumores.

Porém, como cada tipo tem características próprias, são necessários vários mecanismos. Por isso um grande alvo são terapias que impeçam o desenvolvimento da célula tumoral. Os cientistas buscam também a individualização dos tratamentos para o maior número possível de tumores.

Para especialistas, tão importante quanto achar respostas em nível celular é resolver a carência de investimentos em saúde capazes de democratizar o acesso a exames mais modernos para o diagnóstico precoce e o tratamento adequado. Ricardo Caponero, da Associação Brasileira de Câncer, ressalta haver lei no país que garante o acesso à mamografia, mas faltam mamógrafos.

O rastreamento desarticulado do tratamento é outro nó das estratégias. “Tem mutirões que identificam 12 mulheres com tumor na mama entre 400 examinadas, mas não há como tratar todas. Então, por que rastrear?”, questiona Caponero. Outra crítica é quanto ao autoexame das mamas, que para ser eficaz depende de treinar a mulher para fazê-lo tal como os médicos. Além disso, entre a detecção, a biópsia e a cirurgia, passa muito tempo. Apenas alguns hospitais públicos, como o da Unifesp, o Pérola Byington e outros poucos centros de referência, fazem os exames na hora, e com isso ajudam a curar mais.

Outra medida preventiva urgente é conter o agente causador. O câncer de colo de útero, mais comum que o de mama em muitas regiões brasileiras, pode ser prevenido com a vacinação de meninas de 9 a 11 anos contra o HPV, vírus também associado ao câncer de faringe. São necessárias três doses, cada uma a R$ 200. “Para começar, a ação pode ser focalizada em grupos de maior risco”, opina Caponero. “O tratamento de uma mulher com câncer de colo uterino custa US$ 3 mil, com baixa taxa de cura; tratar lesões iniciais custa em torno de US$ 50, com 100% de cura. De todos os casos, 95% são provocados por HPV.” A vacinação contra hepatite pode ser aliada também contra o câncer de fígado, quinta maior causa de morte.

Um sistema de saúde bem estruturado depende ainda da capacitação de médicos de outras especialidades para que possam detectar um câncer. Das 170 escolas médicas existentes no país, não mais que meia dúzia tem a Oncologia como disciplina obrigatória na grade curricular. “Não se trata de formar oncologistas na graduação, mas fazer com que o futuro médico pense sempre nos fatores de risco, avalie a possibilidade da doença e encaminhe o quanto antes seus pacientes”, diz Ademar Lopes.

Para a população, o especialista recomenda oncocheckups, partindo do clínico geral o pedido de exames conforme os fatores de risco da pessoa. Lopes exemplifica com a verruga na parede do intestino que é retirada durante a colonoscopia. Um procedimento simples de prevenção ao câncer. “Se a gente for esperar dor, cólica, sangramento ou qualquer outro sintoma, aí já será tarde”, diz. As pessoas precisam deixar de associar o câncer à sua fase mais avançada, que é justamente quando a dor aparece.

Como e por quê
O organismo é formado por trilhões de células. O câncer é uma alteração em uma delas, que se torna anômala e passa a se multiplicar.

De 5% a 10% dos cânceres têm origem hereditária. Mais de 90% são adquiridos durante a vida, devido à exposição a agentes físicos, químicos e biológicos.

O fator de risco isolado mais importante é a idade. Quanto mais a pessoa vive, mais se expõe. Em 1950, a expectativa de vida de uma pessoa ao nascer era de aproximadamente 40 anos. Em 2000, de 72. Só isso já é razão para que o número de casos praticamente dobre.

Saiba mais
Associação Brasileira de Câncer: www.abcancer.org.br
Grupo de Apoio ao Adolescente e à Criança com Câncer: www.graacc.org.br
Hospital A.C. Camargo (Hospital do Câncer): www.hcanc.org.br
Instituto Nacional do Câncer: www.inca.gov.br
Guia gratuito sobre direitos da pessoa com câncer: www.oncoguia.com.br
Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica: www.sboc.org.br
Sociedade Brasileira de Urologia: www.sbu.org.br