CULTURA

Histórias bem contadas

Se você quiser saber mais sobre Arnaldo Baptista, Bezerra da Silva, Paulo Vanzolini, Herbert Vianna, Simonal e Titãs – e ao mesmo tempo entender fragmentos da nossa história –, talvez não encontre nos livros, mas no cinema

Divulgação

A vida até parece uma festa: Colagem de imagens captadas por Branco Mello ao longo das duas décadas dos Titãs

Há uma febre de documentários sobre música brasileira. Nada de roteiros preguiçosos, com longos depoimentos, intercalando imagens de shows e videoclipes. Os diretores têm feito cinejornalismo de primeira linha. “Uma vez eu vi uma declaração do produtor Roberto Evan em que ele dizia: ‘Uma verdade tem sempre três lados, o meu, o seu e o que realmente aconteceu’”, diz Paulo Fontenelle, diretor de Loki, filme que faz justiça a Arnaldo Baptista, o ex-Mutante, um dos nomes mais importantes do rock brasileiro. “Acho que a função do documentário é justamente mostrar esses diferentes pontos de vista sem julgamento. Somente ouvindo todos os lados o espectador poderá concluir sobre o objeto retratado”, completa.

“Apareceu a Margarida!” é a expressão usada por Lucinha Barbosa, mulher e figura fundamental na recuperação de Arnaldo, para saudar a exibição de Loki. “O Arnaldo sempre foi desprezado pela mídia. Inventaram um personagem, um estereótipo: o homem recluso, o excêntrico, o ermitão. Pergunte para o pessoal do Canal Brasil (canal de TV pago responsável pela produção do longa) se houve algum tipo de dificuldade em encontrá-lo aqui no sítio em Juiz de Fora?”, indaga Lucinha. “O documentário do Paulo foi fundamental para desfazer o mito. Conta uma história sem ser sensacionalista, sem tender para a fofoca, características que, na minha opinião, norteiam o livro A Divina Comédia dos Mutantes (Editora 34), escrito pelo Carlos Calado”, afirma.

Para Fontenelle, durante muito tempo a imprensa explorou demais a questão da loucura, das drogas na vida de Arnaldo, reduzindo seu valor. Quando surgiu a oportunidade de fazer o filme, o diretor já tinha uma clara noção de quem era Arnaldo e toda a sua trajetória de vida, marcada pelo amor, pela tragédia, pela morte e pelo renascimento, do homem e do artista. “Procurei contar essa história com respeito, e sem recorrer ao paternalismo”, diz Fontenelle. “Quem assistir ao filme verá um retrato de um homem com suas contradições, seus erros, sua poesia, mas acima de tudo a história de alguém que fez do amor e da arte razão de viver.”

O próprio Arnaldo, sempre minimalista em seus comentários, porém sábio, traduz numa frase o que significou para ele o lançamento de Loki, título de um dos mais importantes discos da música brasileira: “Estou sendo julgado pela forma com que eu julgo as coisas da vida”. Em cartaz pelo país, o documentário será lançado em Nova York, em Israel e no Chile. No dia 18 de setembro, o Canal Brasil o exibe como parte das comemorações de seu aniversário. No fim do ano, sai o DVD.

Reconhece a queda

Quando começou a pensar no roteiro de Um Homem de Moral, sobre Paulo Vanzolini, o cineasta Ricardo Dias listou possíveis entrevistados para intercalar com as imagens do show Acerto de Contas, que também dá nome à coletânea de discos lançada em homenagem ao compositor de samba paulistano. O diretor lembrou de todos os fãs e admiradores de Vanzolini: Chico Buarque, Miúcha, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Martinho da Vila, Carlinhos Vergueiro. Não precisou marcar com ninguém.

“O Djalma Baptista, meu amigo e também cineasta, que conhece o Vanzolini desde criança, deu uma grande dica que acabou mudando completamente a estrutura do filme: o cara que melhor fala sobre Paulo Vanzolini é ele mesmo”, conta o cineasta. De fato, o sambista, autor de frases como “do povo, de cada um pessoalmente, eu não gosto, mas do povo em geral eu gosto muito”, é também sincero e irônico quando fala de si mesmo. E é justamente o monólogo de Vanzolini, intercalado com interpretações do Acerto de Contas, que faz de Um Homem de Moral um documentário interessante, que dá caras às suas canções e dá trilha sonora às caras de São Paulo.

A edição e a montagem são estruturadas e inspiradas no filme Woodstock. O registro dos lendários shows de 1969, dirigido por Michael Wadleigh e montado por Thelma Schoonmaker e Martin Scorsese, inovou ao dividir imagens em quatro partes na tela, em vez de ficar cortando as cenas toda hora. “Eu jamais gostei da maneira com que a televisão edita os musicais, cortando de personagem para personagem, em função do corte, nunca da música. Seria um desperdício levar esse vício de edição para o cinema e uma falta de sensibilidade com os músicos que Vanzolini preza tanto”, afirma Dias.

Para ele, é louvável que o cinema nacional entre na luta para recuperar personagens da música brasileira, desde que os documentários atinjam a massa, e não apenas um público restrito. “Quem pode pagar R$ 200 por mês para ver o Canal Brasil, por exemplo? Ou pagar R$ 30 para ir ao cinema toda semana?”, critica. “Há um enorme desperdício audiovisual. São 43 milhões de pessoas assistindo às maiores bobagens pela antena parabólica, de leilão de vaca a programa de auditórios gerados de Miami. Seria maravilhoso que pudessem ter acesso aos documentários que estão aí.” O DVD de Um Homem de Moral chega no fim do ano.

A reportagem da Revista do Brasil seguiu a recomendação e ligou para a casa do sujeito que melhor fala sobre Paulo Vanzolini. O autor de Ronda e Volta por Cima fala pouco, é meio rabugento, mas cada frase vale um livro inteiro. Pergunto se ele é realmente antiquado, tradicionalista, ou é apenas charme. “Eu sou lá homem de fazer charme, rapaz?”, diz, sem paciência. “Eu sou puritano mesmo. Eu tenho 60 sambas e nunca usei a palavra ‘malandro’.” E o que achou do filme? “Sempre confiei no Ricardo. Se não confiasse, não faria. E ele soube valorizar os músicos, e isso sempre foi o mais importante para mim.” Ponto final. Um homem de moral.

maurício valladares/DivulgaçãoLoki
Uma verdade tem sempre três lados: o meu, o seu e o que realmente aconteceu na vida de Arnaldo Baptista

Verdadeiros autores

O que não falta nas músicas de Bezerra da Silva (1927-2005) é a palavra malandro. Ele era o próprio. Mas há algo em comum entre Bezerra e Vanzolini: a valorização dos músicos, dos compositores. O sambista carioca prezava tanto os compositores que chegava a dar pito no ar em radialistas que creditavam os seus sambas a ele, e não aos verdadeiros autores. Nomes como Adelzonilton, Walmir da Purificação, Roxinho, 1000tinho, Moacir Bombeiro, eletricistas, trocadores de ônibus, mecânicos, presidiários, bombeiros – que alimentaram por décadas o repertório de Bezerra.

O documentário Onde a Coruja Dorme, de Márcia Derraik e Simplício Neto, originalmente um curta, não é um longa-metragem sobre Bezerra da Silva, e sim sobre os compositores de Bezerra da Silva. “Ele avisou: ‘Tô fora’, caso o filme não homenageasse os compositores”, conta Márcia. O sambista renderia um filme épico. Aos 14 anos, deixou Recife e viajou, clandestino, em um navio para o Rio. Foi descoberto e o capitão ameaçou jogá-lo ao mar. “Pode jogar. Pior que está não vai ficar”, devolveu.

Mas é possível também contar a vida de Bezerra por meio de seus compositores preferidos. Essa é a grande sacada do documentário, que deve estrear no começo do ano que vem. “O Bezerra é o narrador, o condutor. E o processo de escolha do repertório era muito interessante: ele ia até o subúrbio ver o que os amigos tinham produzido. Levava um gravador e registrava tudo. Depois escolhia o repertório”, conta Márcia.

Também estreia em breve, em outubro, Herbert de Perto, sobre a trajetória do líder dos Paralamas e um dos nomes mais importantes do rock brasileiro. O documentário, dirigido por Roberto Berliner e Pedro Bonz, começou a nascer em 1982, junto com a banda, quando Berliner gravou os primeiros depoimentos do vocalista no Circo Voador, a lendária casa de shows do Rio. O diretor também acompanhou de perto a recuperação de Herbert Vianna depois do acidente de ultraleve em 2001, que vitimou sua mulher Lucy e o deixou paraplégico. Berliner, em férias, falou rapidamente à Revista do Brasil: “O Herbert fez apenas um pedido: que a gente não fizesse uma direção ‘telenovelística’ da vida dele. Acho que conseguimos. Contamos um drama pessoal sem cair nas armadilhas sentimentaloides”.

O filme Titãs – A Vida até Parece uma Festa, dirigido por Branco Mello e Oscar Rodrigues Alves, não obedece a uma estrutura narrativa nem a uma ordem cronológica, mas se destaca pela colagem de imagens captadas por Branco ao longo das duas décadas de existência da banda. “A gente preferiu mostrar a história, em vez de contar a história”, diz Branco. “Era melhor solução aproveitar as 300 horas de gravação do que ficar filmando pessoas falando da gente em lugares bonitinhos”, completa o roqueiro. O filme não está mais em cartaz, mas o DVD vem aí, em setembro, recheado de extras. “São mais de 10 minutos de cenas inéditas. E terá 45 partituras e cifras das nossas músicas, que podem ser baixadas, assim como seis clipes”, adianta Branco.

Sobe e desce

Poucos documentários provocam tanta polêmica quanto Simonal –  Ninguém Sabe o Duro Que Dei, dirigido por Cláudio Manoel, Calvito Leal e Micael Langer. Resgata-se a história de um dos maiores nomes da música brasileira, que caiu no ostracismo depois de ser acusado de delatar músicos em pleno regime militar, inclusive de mandar para o Dops o seu contador, de quem suspeitava ter-lhe dado desfalques. O documentário tem clima hitchcockiano – os diretores, depois de muita investigação, conseguiram achar o tal contador, que desde a época de sua prisão não havia se pronunciado sobre o caso.

Para alguns, é uma aula de jornalismo, ao ouvir os dois lados, a versão do contador, a versão de amigos e parentes de Wilson Simonal, de gente que o admirava, de quem não gostava dele e de quem via a história com neutralidade. Para outros, o filme peca ao insistir em que a derrocada do cantor se deu pelo seu envolvimento com os militares e o boicote da classe artística, e não por um processo de decadência similar ao de muitos músicos de sua geração.

Com a palavra, Calvite Leal, um dos diretores. “É, eu acho que essa crítica faz sentido. Faltou abordar a questão com maior profundidade, mas não fizemos isso por achar que o filme se tornaria cansativo, perderia ritmo, em meio a tantas questões polêmicas”, diz. “O que eu posso assegurar é que o Simonal, ao contrário de muitos outros artistas que também passaram por período de pouco sucesso, nunca teve a oportunidade de se reerguer profissionalmente.” O trio que fez Simonal já tem um novo personagem na manga: Carlos Imperial. Bom para o cinema, e para história.