comportamento

Excluídos graças a Deus

Não se trata de pessoas sem acesso a internet ou celular. Em plena febre tecnológica, ainda tem gente que não utiliza essas ferramentas por opção e acredita que a vida é melhor sem elas

Regina de Grammont

Brenda vivia às turras com a mãe por causa do celular sempre desligado. Agora deixa bilhetinhos quando sai de casa

Há quem pense que quem não responde a e-mails imediatamente, não passa seus dias conectados no MSN ou não estampa seu perfil em sites de relacionamento como Facebook, Orkut e que tais está morto, foi abduzido ou perdeu o juízo. Não deixar o celular ligado o dia todo também pode ser sintoma de loucura num tempo em que até ter blog próprio começa a virar obrigação. No entanto, em plena febre tecnológica, uma outra tribo pede passagem: os excluídos digitais. Não, não se trata de pessoas cuja condição social não lhes permite acesso a computador ou internet. Mas de gente que não utiliza essas ferramentas de comunicação por acreditar que a vida é melhor sem elas. Eles são “normais”, trabalham, têm família, amigos. Mas nos últimos anos veem-se numa cruzada monumental para defender a mais primordial forma de relacionamento: a face a face.

Virou moda debater na mídia assuntos relativos a esse universo particular, o mundo vertiginosamente virtual das relações que necessariamente se processam através de máquinas. O quanto os jovens se renderam a essas novidades. As patologias surgidas da dependência das pessoas em sentirem-se “conectadas”. As horas de sono e a qualidade de vida que se perdem em frente a um computador ou pendurado num celular. A validade das amizades virtuais, cada vez mais na moda.

Uma pesquisa realizada pela instituição Netpop Research constatou que, nos Estados Unidos, mais de 7 milhões de pessoas são consideradas “heavy users” da internet – termo bonitinho para designar quem passa a maior parte de seus dias e suas noites conectado a blogs, sites de relacionamento e de compartilhamento de fotos e vídeos.

No Brasil, outros números impressionam: segundo pesquisa do Ibope, jovens brasileiros entre 15 e 19 anos ficam em média quatro horas por dia na frente do computador. Somos o país com o maior número de internautas que acessam sites de relacionamento – um em cada quatro minutos conectados é despendido em um deles –, de acordo com outra pesquisa, divulgada pelo instituto Nielsen Online. Pessoas mais jovens são maioria, mas não são exclusivas na rede.

Segundo Cândido Fontana Barros, psiquiatra formado pela Universidade Federal da Bahia, as pessoas mais velhas – que naturalmente têm mais dificuldade de se adaptar às novas tecnologias – também participam dessa onda, mas ganham de bônus a angústia de se acharem sempre defasadas. “Esse novo universo exige que as pessoas se adaptem a novidades com uma velocidade quase impossível. Quem tenta e não consegue sente-se diminuído e excluído.” Isso quer dizer que, se a sensação de exclusão digital para alguns é sinônimo de autoafirmação e estilo próprio de vida, para outros é fonte de ansiedade e mal-estar.

Mundo virtual

Somente quem já está fora do mercado de trabalho pode se dar ao luxo de não entrar na onda ditada pela tecnologia. De resto, muitas pessoas acabam sendo obrigadas a dispor dessas ferramentas a contragosto por causa do trabalho, da família ou dos amigos. Mas fogem dela sempre que podem e preconizam outras formas de relacionamento. “Meus amigos me criticam um bocado e, há seis meses, fui obrigado a aceitar o celular da empresa em que trabalho. Mas na minha vida pessoal ele não entra: nem minha mãe tem o número”, conta Jader Simões, gerente de infraestrutura em uma consultoria de Tecnologia. Jader é visto como um “esquisito”, mas não arreda pé de sua decisão. Em sua casa, não há banda larga.

“A tecnologia potencializa a capacidade humana de produção. Tem muitas vantagens: sem ela, é necessário um esforço muito maior para atingir suas metas profissionais. Na vida pessoal também pode trazer benefícios, como fazer supermercado sem sair de casa. Mas, na minha visão, precisa ser utilizada como uma facilidade, não como uma forma de relacionamento”, defende Jader. Orkut, Twitter, Facebook e MSN fazem parte de seu vocabulário, mas não de sua vida. “Se um amigo quer falar comigo, me liga em casa. Se não estou lá, não há por que me procurar: estou fazendo outra coisa no momento.”

No mundo corporativo, comunicar-se por e-mail, em vez de ter reuniões ou conversas pessoais, já não é moda: é epidemia. Criam-se ruídos de comunicação, além da natural frieza impressa às relações. “Um colega que tem uns 50 anos, recém-integrado à empresa em que trabalho, veio um dia se queixar da frieza com que todos se tratam por lá. Mas as pessoas não são frias, a comunicação é que é”, diz Jader.

Esse gerente faz parte de uma minoria que, embora possa ter acesso a todas essas ferramentas de informação e relacionamento, recusa-se a incorporá-las à vida pessoal. É um dos poucos “corajosos” que mantêm sua decisão, apesar das forças contrárias, segundo o psiquiatra Fontana: “Tendemos a achar que todos os jovens buscam viver dentro de um universo virtual, mas há muitos que não se identificam com essa via de expressão. Mas, hoje em dia, pertencer a esse grupo é arriscar-se perder até uma paquera. Se você não tem e-mail ou celular, provavelmente não será procurado”.

Quem mais sofre por estar dentro ou fora desse grupo tem entre 15 e 40 anos. Fazer parte da geração seguinte, que já entrou na casa do “enta”, traz algumas vantagens: não se expõe a essa enxurrada. Quem se tornou adulto antes dessa era virtual cresceu num planeta em que a lógica ditava um início, um meio e um fim. Em tempos digitais, tudo acontece em paralelo. O próprio Bill Gates, dono da Microsoft, atesta: “Parece que o mundo opera em intervalos de cinco minutos”.

Longe do vício

“A tecnologia é uma realidade, mas não podemos mergulhar nela. Um dos motivos é a comprovação de que ela vicia principalmente os jovens – os mais velhos têm uma série de âncoras emocionais e valores que a nova geração não tem. Os adolescentes estão preenchendo seu vazio com o computador e com ferramentas que não agregam valor à sua vida”, afirma o médico gastroenterologista Alexandre Lourenço, diretor da Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABQV).

Para a enfermeira Brenda Marjorie Gregoratto Lee, uma das repercussões do mundo virtual é que a qualidade do relacionamento é trocada pela quantidade. “Tenho uma vida social rica e a certeza de que meus amigos são realmente meus amigos. Acho que o relacionamento virtual é muito superficial e dificilmente abre espaço para vínculos de amizade. Nunca deixei de fazer nada porque estou sem celular ou fora do MSN, Orkut ou outras dessas coisas”, conta.

Lourenço concorda. “Quando falamos em qualidade de vida lembramos sempre de alimentação saudável, tempo para lazer, atividade física. Mas a construção de um círculo real de amizades, formado por pessoas com as quais sabemos que realmente podemos contar, também é determinante para o bem-estar de uma pessoa”, explica. “Só no contato pessoal é possível ouvir a entonação de voz, observar o brilho nos olhos do outro, sentir uma conexão emocional real. O mundo virtual priva o ser humano de tudo isso.”

“Não tenho página em lugar nenhum nem me comunico por MSN. Sinceramente, não sinto a menor falta disso na minha vida”, conta a advogada Veridiana de Almeida Schwartzman. “Nunca parei para pensar por que não uso. A tecnologia inibe as pessoas de buscar o contato real. Acredito que para ter qualidade de vida é preciso equilíbrio, é preciso dar atenção para aqueles com quem se relaciona.”

O professor de inglês Hélio Marques Matias prefere telefone fixo e só usa internet para realizar pesquisas. “Não acho negativo usar um pouco. O problema é a pessoa passar a noite inteira na frente de uma máquina. Como se tivesse esquecido como é importante o contato real.”

Realmente, algumas pessoas esqueceram como era a vida antes do celular e da internet, ou nunca souberam. Mas outras adotam posturas que soam até românticas. Uma das maiores fontes de “perturbação tecnológica” na vida da enfermeira Brenda eram as constantes brigas com a mãe. “Ela ficava apavorada quando tentava me achar e o celular estava sem bateria ou desligado. Quando eu chegava em casa, era briga na certa. A ponto de me fazer desistir de ter um”, conta. Como Brenda faz hoje? “Deixo bilhetinhos para ela dizendo com quem vou estar. Ela fica sossegada e, se precisa, me localiza pelo celular de outras pessoas ou na casa delas”, explica. Ela segue à risca o conselho de Alexandre Lourenço: “Precisamos ser críticos em relação ao que é significativo para nós”.

Deletar o perfil

O relacionamento íntimo com a máquina fez nascer novos distúrbios de saúde e também um novo dicionário de expressões. “Essas pessoas estão vivendo a era da hiperatividade, da depressão, do déficit de atenção, e cultivando patologias típicas da era digital”, avalia Cândido Fontana. Existem pessoas que não suportam desligar o celular e têm de checar o tempo inteiro se algum e-mail chegou. A indústria está espertíssima quanto a essas novas demandas: prova disso é que há cerca de dois anos foi lançado um mix de telefone com banda larga, que permite que a pessoa receba e-mails pelo celular e responda em segundos. “Deletar alguém de sua vida” ou “ver se o outro se encaixa em seu perfil” são expressões incorporadas ao vocabulário de quem usa ferramentas de relacionamento. “Parece que tudo na vida virou um eterno fluxo. Inclusive pretensas amizades”, critica o psiquiatra.

Sérgio Gomes dos Santos é operador de uma corretora de valores e por isso mesmo tem horror à falta de contato humano: “Acho que, por ficar muitas horas com o telefone na orelha, acabei pegando ojeriza. Não só ao aparelho, mas ao uso”. Seu celular será devolvido assim que finalizar o prazo de um ano de fidelidade com a operadora. Para ele, o Orkut é o fim do mundo. “Não parece insano dar um monte de informações pessoais para quem você nem conhece?”, pergunta. Essa foi, certa vez, a razão de uma longa briga com uma ex-namorada. “Ela morava em outra cidade e vivia se expondo lá. Um dia avisei: ou o Orkut, ou eu!”, conta, rindo. “A tecnologia ajudou a piorar o mundo com esse volume de informações que não somos capazes de processar. E também tem esse poder de potencializar o mau – basta ver esses grupos de pedofilia e outros horrores.” Os amigos muitas vezes o chamam de arcaico e antissocial. “Admito: já perdi um monte de festas e eventos por não abrir diariamente o hotmail.”

Negar-se a estar na onda exige, de fato, coragem, boa autoestima e a afirmação constante de seus valores. Os excluídos por opção são unânimes ao dizer que relacionamentos são construídos no face a face. Que qualidade no relacionamento é o inverso de quantidade. Que têm certeza de que seu círculo de amigos é real e sólido. E que a tecnologia pode ajudar em muitos aspectos, mas passa longe de ser um amplificador de contatos humanos – ao contrário, tem o terrível poder de banalizá-los quando mal empregada. Seja como for, em todos os movimentos importantes da humanidade sempre existiu um grupo de resistência. Tudo indica que são esses excluídos digitais os representantes dessa geração.