cidadania

Difícil recomeço

A vida na prisão, e depois dela, impõe práticas de resistência e muita gente luta para não retroceder. Proporcionar oportunidades para o exercício digno da liberdade ainda é uma de nossas grandes dívidas sociais

gerardo lazzari

Pedro, em seu primeiro dia de liberdade após 11 anos: por onde começar numa cidade que agora lhe é estranha?

São Paulo está diferente aos olhos de Pedro (nome fictício). O número de carros aumentou, os sentidos das ruas mudaram e pontos de referência como outdoors e letreiros gigantescos deixaram de existir. Pedro sempre morou na capital paulista, mas deixou de se relacionar com a cidade por 11 anos, 3 meses e 10 dias, isolado pelas celas de um presídio. Preso por assalto aos 21 anos de idade, Pedro, agora com 32, descreveu para a reportagem da Revista do Brasil a sensação de encarar a nova cidade velha 24 horas depois de deixar a carceragem. “Enfim, a liberdade, estou na rua tem um dia. É isso o que a gente mais quer quando está lá dentro, mas quando sai não sabe por onde começar.”

Ansiedade e felicidade. Medo e esperança. Esse turbilhão de emoções é típico de quem cumpriu sua pena, busca a reinserção na sociedade, não deve mais nada à Justiça e não deseja voltar a dever. O retorno não é nada fácil. Os ex-detentos, a maioria com baixa escolaridade e sem formação profissional, vivem ainda sob o forte estigma de crimes cometidos no passado e costumam amargar os últimos lugares na hora da disputa por um emprego.

Para tentar reverter essa situação, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) lançaram recentemente o programa Começar de Novo, com o objetivo de sensibilizar a população para a necessidade de reinserir, no mercado de trabalho e na sociedade, presos que já cumpriram suas penas. “Todo mundo tem falado muito de responsabilidade social, empresas divulgam projetos, mas são raros os programas para ajudar o ex-detento. Com a ressocialização dessas pessoas poderíamos reduzir a reincidência e a criminalidade”, afirma Antônio Humberto, conselheiro do CNJ.

A campanha engloba parcerias com entidades como Sesi, Senai e Fiesp para proporcionar treinamento e capacitação dos presos para o trabalho. Pretende também criar um sistema de bolsa de vagas para centralizar a oferta de empregos. O próprio STF destinará vagas para 40 pessoas sentenciadas, egressas de prisões em 2009, que receberão salários na casa dos R$ 600, e o CNJ espera que outros órgãos públicos façam o mesmo. Também foi fechado um acordo com a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e com a Fifa para contratação de ex-detentos em obras da Copa do Mundo de 2014, que será realizada no Brasil. “A assistência à pessoa que está deixando o sistema penal é fundamental. Temos iniciativas e programas em todo o país, mas ainda são projetos isolados, é muito pouco”, afirma Ana Cristina de Alencar, do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), do Ministério da Justiça.

O rapper  Dexter

Aleluia, Dexter
Depois de 10 anos atrás das grades, Marcos Fernandes de Omena teve em abril algo mais que um feriado em família. Beneficiado pelo regime semiaberto, Fernandes, conhecido como rapper Dexter, aproveitou o indulto de Páscoa para fazer um show para 4 mil pessoas na quadra da escola de samba Unidos do Peruche, em São Paulo. Condenado a 35 anos de reclusão por assalto a mão armada, Dexter encontrou no rap uma forma diferente de vivenciar sua pena.

No início da detenção, ainda no Carandiru, conseguiu autorização para apresentações ao lado do rapper Afro-X, com quem formou o grupo 509E. Há oito anos não pisava em um palco, mas seguiu compondo o suficiente para abastecer o show. E para um disco, que gravou com participação de famosos, como Mano Brown. No palco, em 11 de abril, teve companhias como Brown e Racionais MC´s, Thaíde, Gog e Paula Lima. Dexter começou a cantar às 19h e parou às 21h30, para cumprir a determinação de não estar na rua depois das 22h.

Abandono

Pedro viu sua família se desintegrar ao longo da década em que cumpriu pena. Estima-se que metade dos presos do país viva a mesma situação, sem visitas, amparo nem ajuda de conhecidos na hora de deixar o mundo das grades de ferro. Os pais de Pedro morreram, a mulher não aguentou a pressão e os irmãos seguiram outros caminhos. Sem nenhum centavo no bolso, ele perdeu as contas de quantos quilômetros andou em busca de auxílio. Foram muitas horas para localizar a casa de um amigo, onde passou a primeira noite de liberdade. Depois caminhou muito mais para chegar à sede da Central de Atendimento ao Egresso e Família (Caef), na capital paulista, uma das 17 espalhadas por diversas cidades do estado.

De imediato, imerso na solidão, Pedro precisa de um lugar para morar e cabe à equipe técnica achar-lhe vaga em um albergue. A equipe da Central afirma que vai orientá-lo a respeito de como resolver pendências, tirar documentos, fazer cursos de capacitação e, o mais difícil, tentar inseri-lo no mercado. “Essa é a parte mais complexa do nosso trabalho. O número de empresas dispostas a ajudar o ex-detento ainda é muito pequeno. Fazemos reuniões, explicamos a necessidade, mas contratar um ex-preso é ainda algo complexo para as pessoas”, conta Ana Cláudia Oliveira Rolim, diretora da Caef. 

Os egressos não são obrigados a procurar as centrais quando deixam o presídio. Eles geralmente ficam sabendo da existência do serviço por meio da divulgação de cartilhas, como um livro de dicas organizado pelo ex-detento Luiz Alberto Mendes, de 56 anos, que passou quase 32 anos detido e está há cinco em liberdade. “Quando saí da cadeia fiquei totalmente perdido, tive que recomeçar tudo e pensei naqueles que estavam lá dentro. A vida dentro dos presídios é um caos, a maioria sai de lá doente, sem dente, porque a regra não é cuidar, é arrancar. Para quem está nas cidades do interior, o Estado dá uma passagem e um pé na bunda”, relata Mendes. “O que fizemos foi sair em busca de albergues, restaurantes baratos, hospitais e até brechós para ajudar o cara a achar uma roupa barata. Ele precisa ter pelo menos uma referência para recomeçar. A maioria não tem assistência. Não é à toa que quase todo mundo volta para o crime. E também para a cadeia.”

Oficina da Daspre

A grife Daspre
Depois de a grife Daslu inspirar o surgimento da Daspu, foi a vez de esta marca, criada por garotas de programa do Rio, inspirar outra, associada a outra ação afirmativa: a Daspre, desenvolvida por detentas da cidade de São Paulo. As presas encontram na costura e na criação de peças de acabamento fino um meio de aumentar a autoestima, reduzir a pena, conseguir algum dinheiro e desenvolver um ofício para quando a liberdade chegar. Atualmente, 65 mulheres trabalham no projeto, que já contou com a participação de mais de 200. Viviane Cristina Silva, de 29 anos, ganhará liberdade este ano. Presa depois de participar de um assalto ao lado de um namorado, aos 18 anos, ela sempre trabalhou dentro do presídio, mas acha ali diferente. “A gente aprende uma coisa nova todos os dias, renova a esperança. O mundo mudou muito desde que fui presa, tenho medo de sair, mas me sinto mais preparada.”

Fabíola Andrade, de 26 anos, presa por furto e condenada a dois anos, também aguarda a liberdade para breve. “Venho para cá todos os dias e o salário mínimo que ganho mando para o meu filho.” Os produtos Daspre estão à venda na Fundação de Amparo ao Preso (Rua Dr. Vila Nova, 268, Vila Buarque).

Fé e paciência

Em paralelo aos poucos programas públicos, existem alguns raros programas da sociedade civil voltados aos egressos. A Fundação de Apoio ao Egresso do Sistema Prisional (Faesp) atende ex-detentos em Porto Alegre, mantida com a ajuda de voluntários e doações. A Faesp já recebeu mais de 900 egressos. Criou uma pequena cooperativa que atua na montagem de peças para indústrias, celebrou contratos isolados de trabalho e hoje cinco ex-presidiários prestam serviços para uma empresa metalúrgica da cidade de Gravataí, no interior do estado. “Além dos trabalhadores da cooperativa, temos outros ex-detentos que conseguiram estudar e retomar a vida. Mas sentimos dificuldade com a questão do trabalho. Fazemos reuniões, procuramos empresas, mas o retorno é baixo”, conta Tânia de Souza, presidente da entidade.

“Fizemos uma pesquisa e descobrimos que 86,7% das pessoas atendidas não voltaram para o crime”, orgulha-se. O número é positivo, embora deva ser analisado com cuidado, uma vez que os que procuram a entidade têm perfil semelhante ao de Pedro: saem da cadeia desejando uma vida normal.

Pedro figura ainda em outra lista de minorias: trabalhou a maior parte do tempo em que esteve detido. Apenas 18% dos cerca de 440 mil detentos do país conseguem alguma ocupação, remunerada ou não, quando estão detidos. Além da remissão de pena (cada três dias trabalhados representa um a menos de detenção), o trabalho ajuda a manter a sanidade, a atualização profissional e contribui para a recuperação. Pedro diz que evitou ao máximo ficar parado, fez todos os tipos de curso que apareceram e estava sempre em busca de trabalho. Foi a chave para não enlouquecer, seguir adiante e não aderir ao apelo das facções criminosas. “Você tem que estar muito seguro. A tentação, as promessas, as facilidades são grandes. Mas eu tinha certeza que não queria mais”, lembra.

Luiz Mendes também se viu transformado. Estudou, virou professor, escreveu livros – como Memórias de um Detento, Tesão e Prazer – Memórias Eróticas de um Prisioneiro e Às Cegas, concorrente ao prêmio Jabuti. Atualmente, tem uma intensa agenda de trabalho voltada aos egressos e detentos, mas o apoio que consegue de órgãos externos para as suas atividades é pequeno. “Só tive apoio de uma ONG até hoje; o financiamento para oficinas de literatura que dou chega da Alemanha, no Brasil ninguém quer saber. A sociedade brasileira joga essa bomba para cima, não está nem aí, e espera que a bomba vire uma pomba branca da paz”, critica. Entre os bons resultados que já conseguiu, Mendes relata a criação de uma cooperativa de egressos, de mais de 150 ex-detentos, na cidade de Sorocaba (SP), que presta serviços para a prefeitura. Na falta de perspectivas concretas, Oscar Moreira, de Curitiba, amparou-se na religião.

Ele passou três anos atrás das grades, está há dois em liberdade, e conta que se apoiou na fé para enfrentar as dificuldades que viveu, principalmente nas ruas, quando foi solto. “A tentação para voltar ao crime é grande.” Oscar criou um grupo de ajuda para outros egressos, Amigos Nova Jerusalém Organização Social (Anjos). “Eu nem sabia o que era ONG, e agora temos esse grupo. Conseguimos um barracão e lá vivem 62 pessoas que não têm onde morar e a família não quer mais saber porque o cara era bandido. Vamos vivendo, tentando arrumar trabalho, plantando, mas não é fácil. Tem gente que não se aguenta e volta mesmo.”

Na frente das grades
A campanha Começar de Novo pretende atacar outro grande problema do sistema penal brasileiro: tirar de dentro dos presídios pessoas que já poderiam estar nas ruas. O Conselho Nacional de Justiça faz mutirões com a presença de juízes, do Ministério Público, da Defensoria Pública e servidores de tribunais. Realizados em presídios do Rio de Janeiro, Piauí, Pará e Maranhão, os mutirões já liberaram quase mil presos.

Outro projeto que ajuda a reduzir a superlotação das prisões é o Programa de Penas e Medidas Alternativas, pelo qual serviços prestados à comunidade contam para o cumprimento da pena. A medida é destinada a infratores de baixo potencial ofensivo, o que os afasta do caótico ambiente prisional e os aproxima do convívio social.

Atualmente, 11 mil pessoas cumprem penas alternativas no estado de São Paulo e o índice de reincidência é de 4,7%, contra 60% no sistema fechado.