No Rádio

‘O grande cinema é o que te provoca’

Em entrevista ao programa Jornal Brasil Atual, Carlos Reichenbach diz que filme bom é aquele que faz o espectador, ao sair do cinema, procurar uma biblioteca

dezenove filmes/divulgação

Carlos Reichenbach nasceu em Porto Alegre e adotou São Paulo. Seu contato com a literatura e a comunicação se deu antes mesmo de nascer: é neto, filho e sobrinho de editores e industriais gráficos. Foi aluno de mestres como Roberto Santos, Paulo Emílio Salles Gomes, Mário Chamie, Décio Pignatari e Luís Sérgio Person. Reichenbach dirigiu longas-metragens como Anjos do Arrabalde (1987), Dois Córregos (1999) e Bens Confiscados (2004). Ano passado, reuniu no livro ABC Clube Democrático (Ed. ABCD Maior) quatro roteiros originais, dois dos quais viraram filmes, Garotas do ABC (2003) e Falsa Loura (2007). Reichenbach participou do programa Jornal Brasil Atual, que vai ao ar diariamente, das 7h às 8h, na rádio Terra FM 98,1. A seguir, trechos da entrevista feita por Oswaldo Luiz Vitta, o Colibri, com participação da atriz e apresentadora Marina Person, filha de Luís Sérgio, do jornalista especializado em cinema Orlando Fassoni, do músico Luiz Chagas e do diretor do ABCD Maior, Celso Horta. Leia abaixo um resumo e ouça aqui a íntegra.

Você é neto, filho e sobrinho de editores e industriais gráficos, escreve roteiros e tudo o mais.
Quando entrei na (Faculdade de Cinema) São Luís, Luís Sérgio Person dizia: “Você tem jeito de diretor, você vai ser diretor”. E eu dizia: “Mas, Person, eu detesto lidar com gente, eu gosto de trabalhar entre quatro paredes, eu sou roteirista, eu quero ser escritor”.

Na época em que você começou, 1967, não tinha quase roteirista. Hoje já tem sujeito que vive só de escrever roteiro.
Isso é mentira, assim como ninguém vive exclusivamente de dirigir filmes. Eu tenho quase três profissões paralelas e uma atividade acadêmica também.

Isso é uma visão da indústria americana, aquela figura que escreve roteiro e ganha dinheiro.
É, isso aí não existe. Eu acho que todo bom roteirista tem de ter formação jornalística também, não só dramatúrgica, especialmente porque o trabalho de roteiro é 40% de pesquisa e prospecção. Foi isso que fiz nesses quatro roteiros do projeto ABC Clube Democrático. O projeto partiu de uma premissa libertária de que o tempo livre é o verdadeiro espaço, é revolucionário, é onde as cabeças são feitas. A ideia era fazer quatro filmes simultaneamente, usando os mesmos cenários, as mesmas personagens. Mas, diante de alguns escândalos que houve com o cinema, isso se tornou inviável. De qualquer forma, foram feitos dois longas, Garotas do ABC, que no projeto original se chamava “Aurélia Schwarzenega”, brincadeira com o Arnold Schwarzenegger, e o Falsa Loura, que era “Lucineide Falsa Loira”.

Eles são interligados?
São, mas como não conseguimos fazê-los simultaneamente tiveram de ser pensados diferentes. Garotas do ABC era um filme bem complicado, mas o maior dificultador foi o fato de que a gente perdia três horas por dia para locomover uma equipe inteira de quase 80 pessoas de São Paulo para São Bernardo. Acredito que esse era um dos problemas da Vera Cruz. O grande cineasta Roberto Santos dizia uma coisa, e acho que foi a maior lição que recebi desde que comecei a fazer cinema no Brasil: “O grande mérito do cinema brasileiro é conseguir transformar falta de condições em elementos de criação”.

E você estava fazendo um filme, e não um documentário.
É, um filme de ficção, você fala de pessoas físicas que já são personagens, que têm o seu olhar específico lá dentro. Você sabe qual foi o melhor trabalho de pesquisa das mulheres operárias? Foi pegando o ônibus com elas durante quase um mês e meio. Eu pegava o ônibus no horário de pico, e aí vi como falava a operária nissei, a operária negra, especificamente a operária tecelã.

Acho Anjos do Arrabalde seu melhor filme. O que mudou de lá para cá?
Acho Demência, Alma Corsária e Relatório Confidencial meus melhores filmes, os mais pessoais que já fiz. Garotas do ABC e Falsa Loura são filmes muito gêmeos do Anjos do Arrabalde. Com toda a sinceridade, talvez Garotas do ABC seja até melhor num certo sentido, embora tenham sido retirados quase 30 minutos.

Você tem também um lado pop, gosta de filmes de ação, de alguns blockbusters americanos. Quem é o seu favorito da atualidade?
Na verdade, assim como na música, eu não tenho preconceito, não. Eu gosto de filme policial, tenho predileção. E gosto de vários diretores. Gosto muito dessa escola do cinema B americano. Joseph Lewis, Samuel Fuller são a minha escola, caras com quem eu já tenho identidade, proximidade, desde os 16 anos, porque também são cineastas que aprenderam a trabalhar com poucas condições. Edward Ludwig, Godard também faziam filmes policiais, secos. Talvez o cinema pelo qual eu tenho o maior carinho seja o de clássicos. Tem uns cineastas mais recentes, como o John Flynn, que fez excelentes filmes de ação, mas acho que atualmente os cineastas que mais me espantam, na verdade, são David Cronenberg, Brian de Palma e William Friedkin, que é um gênio e talvez tenha feito uma das obras-primas máximas do cinema de ação, Viver e Morrer em Los Angeles.

Estudar a trabalhadora do ABC o estimula a continuar mergulhando na alma do povo brasileiro?
A mulher proletária é uma personagem pela qual tenho absoluto fascínio. Agora eu pretendo tratar de outras questões. No futuro próximo, me interessaria muito retomar um pouco aquele sentido do filme político que especialmente o cinema italiano fazia na década de 1960, não é cinema político de dar respostas, mas sim de provocar questões. Um fato político que poderia gerar um filme à altura de um Damiano Damiani ou de um Elio Petri foi o que aconteceu com o Celso Daniel. Isso é um grande manancial de material dramatúrgico. É o cinema que faz com que o cara vá mergulhar na informação. A gente está enfrentando um manancial de filmes absolutamente conformistas. “Você tem de agradar o cidadão…” Agradar, o cacete. O grande cinema é aquele que te provoca, que faz com que você, ao sair do cinema,  vá pra uma biblioteca.

Você baixa filme na internet também? E os seus, dá pra baixar?
Sem dúvida. Tem de baixar, o filme é feito para ser visto. (Os meus) Não sou eu que vou disponibilizar, mas eu recomendo: quer baixar, baixa.