Saúde

Oh, dor

Um terço da população mundial sofre de dores crônicas.?O problema é tão sério que, para os EUA, esta é a década da dor. No Brasil, a falta de pesquisa, de prevenção e o descaso médico levam pacientes ao desespero

jailton Garcia

Célia Knoplich sofre de dores lombares provocadas por um achatamento de disco entre duas vértebras

Todo mundo começa a sentir dor ao nascer. Muitos médicos descrevem o choro do recém-nascido como uma resposta à dor de, pela primeira vez, sentir o ar entrando nos pulmões. Depois vêm as cólicas, faringites, otites, dores de cabeça, as articulares, uma enxurrada de sensações desagradáveis para o corpo humano que, apesar de forte e tolerante, é sensível e possui muitas “portas” para a dor. O que não pode ser considerado como algo comum é quando qualquer uma dessas ou de outras dores se incorpora à vida de forma duradoura. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a dor crônica, a que se prolonga por mais de três meses, provoca a perda anual de 550 milhões de dias de trabalho em todo o mundo. Nos Estados Unidos, esta é considerada a década da dor.

Muitos nem se dão conta quando aquele incômodo passa a limitar a vida, como sentir dor nos joelhos após uma curta caminhada ou no pescoço, depois de umas horas de sono. Em geral, as pessoas se adaptam aos obstáculos, que tendem a piorar, já que o problema não está sendo tratado. E não é rara no Brasil a ausência da devida atenção médica a situações alarmantes.

A designer gráfica Célia Knoplich, que há 20 anos sofre de dores lombares provocadas por um achatamento de disco entre duas vértebras, conta com um especialista acima de qualquer suspeita: seu pai é médico reumatologista especializado em tratamento de coluna. Mesmo assim, tem crises de dor aguda que a colocam de molho por dias. “Às vezes, a dor vem moderada, às vezes é muito forte. E eu já conheço os limites do meu corpo. Quando combino três dias de atividades que exijam muito tempo em pé, agachamento ou caminhada, sei que ele vai chiar.”

O problema de Célia não tem solução definitiva, mas tem prevenção – além de ponderação nos esforços, ela deve fortalecer a musculatura abdominal, para “segurar” a coluna. “Mas não tem jeito. O único esporte que eu gosto é o tênis, e ele é o menos indicado para meu caso”, lamenta. Quando não consegue evitar a crise apela para um coquetel formado por anti-inflamatórios, massagem, cinta elástica e, por vezes, repouso e fisioterapia.

A frase “dor é sintoma, não é doença” é chavão na boca de todos os médicos. É como um alerta do corpo a algo que está funcionando mal e precisa de atenção. “Apesar disso, não temos uma disciplina nas faculdades para ensinar profissionais da saúde a lidar com pacientes em sofrimento”, afirma Lin Tchia Yeng, médica fisiatra formada pela USP, membro da Sociedade Brasileira de Estudos da Dor (SBED). Lin trabalha no grupo de reabilitação de dor do Hospital das Clínicas e também atende no Núcleo Avançado de Dor e Distúrbios do Movimento do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo.

“No Brasil, o mais comum é receitar aspirina e anti-inflamatório e pronto, caso resolvido”, opina Adail Ivan de Lemos, doutor em Dor Crônica pela Universidade de Londres, formado pela Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Rio de Janeiro. Célia Knoplich também reclama do atendimento médico, principalmente dos que atendem por meio de convênios. “A melhor técnica para me ajudar nas crises é a fisioterapia com manipulação. Mas, atualmente, médicos conveniados não a fazem, simplesmente colocam você em aparelhos, como de ondas curtas, por exemplo. E isso ajuda muito pouco no meu caso.”

A deficiência no atendimento médico normalmente desestimula aqueles que não têm dores severas e conseguem levar vida normal, apesar dos sintomas dolorosos. “Foi humilhante passar pelo pronto-socorro nas primeiras vezes que tive os sinais da fibromialgia, diagnosticada mais tarde. A gente não tem credibilidade nenhuma, ninguém se interessa. Os médicos olham e dizem: ‘Isso que você descreve não existe’. Nem chegavam a pedir exames”, conta a manicure Maria Aparecida Benchio, finalmente em tratamento no Grupo da Dor do Hospital das Clínicas.

Desprevenidos

Geraldo LazzariMaria Aparecida
Maria Aparecida faz acupuntura para enfrentar a fibromialgia

Dor é a primeira causa de afastamento do trabalho no Brasil e no mundo. É prejuízo para todos os lados. Em países como Estados Unidos e Japão, há décadas são desenvolvidos estudos que levam a uma fórmula de medicina preventiva, área em que no Brasil não existe pesquisa nem ação efetiva. Segundo o médico Adail Ivan de Lemos, autor do livro Dor Crônica: Diagnóstico, Investigação e Tratamento, os estudos brasileiros são fracos e sem valor científico. “Em nosso país a dor não é investigada. Este descaso não se explica, uma vez que 60% das pessoas que chegam aos consultórios e ambulatórios têm essa queixa.”

Em muitos casos, basta meia dúzia de perguntas para se descobrir a origem do sofrimento do paciente. Daí fica mais fácil propor uma solução ou paliativos para melhorar a qualidade de vida. A fisiatra Lin Tchia Yeng sempre recebe pacientes com dores terríveis nas costas. “Quando pergunto há quantos anos não trocam o colchão, não conseguem responder. Atendo pessoas com desvios graves na cervical que trabalham 12 horas por dia em instalações sem ergonomia. Não adianta tratar o paciente sem corrigir a origem da dor. Depois disso, a cura é possível.”

Disciplina com alimentação e sono, harmonia com o meio ambiente, exercícios físicos adequados ao biotipo e zelo com o peso são alguns hábitos que ajudam a manter a saúde em dia e o estresse sob controle, uma vez que ele também pode ser fonte de dores, ocasionando males como enxaqueca, cefaleia e gastrite, entre outros. Onofre Alves Neto, médico e anestesiologista, presidente da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor, lamenta que não haja no Brasil estatística sobre a incidência de dor crônica. Mas, segundo ele, pesquisas feitas em 16 países europeus e outros estudos apresentados no Congresso Mundial da Austrália sobre a prevalência de dor crônica em alguns países, mostram que, em média, 30% da população mundial sofre com dor crônica. Só no Brasil são 60 milhões.

O gerente financeiro Gerardo Simmermacher sofre de enxaqueca, doença que atormenta mais as mulheres, mas também inferniza os homens. Estima-se que cerca de 49% da população sofra ou já tenha sofrido crises de enxaqueca. Já a dor de cabeça crônica e diária, também chamada cefaleia, afeta 5% dos brasileiros. “Tive a crise pela primeira vez na adolescência. Deve ser hereditário, pois meu pai também tinha. São manifestações variadas de dor. Quando é pequena, não altera meu dia a dia. Quando é média, altera, mas não me paralisa. Mas quando é uma crise forte, preciso ficar em casa, medicado e deitado”, reclama Simmermacher, que procurou diferentes especialistas e tomou diversos tipos de remédio. Já foi encaminhado para terapia, mas não sentiu melhora. “Hoje sei que não há solução. Por isso, não pesquiso mais. Convivo com o problema.”

Superação

O famoso pianista João Carlos Martins sofre há 41 anos de dores nas mãos causadas por uma queda durante uma partida de futebol aos 26 anos de idade. Uma pedra atingiu o principal nervo de sua mão direita. Algum tempo depois, em um assalto, recebeu uma coronhada na nuca que comprometeu os movimentos da mão esquerda. Apesar das dores, insistiu na paixão pelo piano e acabou desenvolvendo Lesão por Esforço Repetitivo (LER). Fez diversos tratamentos clínicos e cirurgias, mas as dores continuaram. Até que, em 2003, abandonou a carreira como solista. “A única solução foi parar de tocar. Havia tentado todos os tratamentos e não via mais resultados, apenas sentia dor. Ainda hoje convivo elas”, conta. Mesmo assim, sempre que possível, apresenta as adaptações de peças que toca com apenas alguns dos dedos de cada mão e consolidou sua carreira como maestro. Mas o exemplo de superação do pianista nem sempre acontece.

“Quando a dor torna-se crônica, as pessoas podem enfrentar níveis de estresse que prejudicam o psiquismo e a qualidade da vida”, explica a psicóloga Maria da Graça Rodrigues Bérzin, mestre pela PUC/RS e doutora pela Unicamp. Angústia, ansiedade, medo, raiva, irritabilidade, tristeza, depressão, desconfiança, mudança na percepção corporal, diminuição da autoestima, sentimentos de rejeição social e profissional são comuns aos que sofrem dores crônicas. “Até a crença da pessoa pode ser alterada, a dor gera o sentimento de desamparo, restringe ou impede a atividade física, dificulta o convívio familiar e social, inibe o interesse e a prática sexual e piora a qualidade do sono, agravando a condição geral de saúde que, por sua vez, compromete a percepção e o manejo da dor.” E se não bastasse tudo isso, o quadro contribui para desencadear ou agravar doenças pré-existentes e reduzir a imunidade do organismo, dificultando o diagnóstico e a eficácia do tratamento.

Na contramão disso tudo, a professora primária Silvia Marcondes conseguiu solucionar um problema que a torturou durante cinco anos: ela sofria de disfunção temporomandibular (DTM). Ela está entre os 7 milhões de pessoas no Brasil que padecem da doença. “Nada é pior do que ter uma região do rosto que dói quando você mastiga. Basta começar a sentir fome para sentir também calafrios pelo que está por vir”, descreve. Equivocada, procurou cinco dentistas e teve três dentes extraídos em vão. Somente depois de passar pelo Centro de Estudos da Dor do Hospital Nove de Julho ela obteve o diagnóstico correto, fez tratamento clínico e hoje não sente mais dor – mas toma medicação preventiva diariamente. “O mais chato é ver a cara de descrença de médicos, como se você estivesse inventando a dor. Sem contar os dentes saudáveis perdidos por pura falta de pesquisa”, lamenta a professora.

Nunca desista
A página da Sociedade Brasileira para o Estudo da Dor divulga estudos e serviços para profissionais e contém uma lista de endereços de centros de dor em 16 estados e no Distrito Federal: www.dor.org.br/centrosdedor.asp