Brasil

A hora da responsa

A overdose de juros sufoca a economia e o empresariado ignora tudo o que apregoa a respeito de responsabilidade social. A defesa dos empregos e do crescimento passa pela pressão da sociedade

Wilson Dias/ABr

Artur, da CUT, pede garantias aos trabalhadores e juros menores em reunião com Lula

O empresariado nadou de braçadas com a pujança da economia brasileira em 2008 e agora, em águas turbulentas, começa a se desfazer de seu ativo mais valioso: o trabalhador. De janeiro a setembro, o Produto Interno Bruto cresceu 6,4%, ante média de 4,5% nos três anos anteriores – e a melhoria da renda e do poder de consumo das famílias teve peso importante nesse desempenho. Setores industriais, a exemplo do automobilístico, atingiram índices de produção e de venda recordes, e os bancos continuaram com a sua rentabilidade invejável. Para o Brasil, o momento econômico favorável, o melhor dos últimos 12 anos, foi também a melhor blindagem contra a crise financeira internacional. Dois meses depois, porém, o setor empresarial disparou contra a classe trabalhadora. E o ataque foi violento. Em dezembro, as demissões superaram as contratações com carteira assinada em 655 mil postos de trabalho no país, superando em muito os habituais saldos negativos desta época do ano.

A eliminação de vagas veio acompanhada do velho discurso da flexibilização dos direitos. Começaram a pipocar acordos com redução de jornada e de salários. Parte desse quadro deveu-se à diminuição da atividade econômica, outra parte ao oportunismo das empresas, segundo o presidente da CUT, Artur Henrique da Silva Santos. Enquanto sindicalistas e trabalhadores se mobilizavam em um janeiro conturbado, a Confederação Nacional da Indústria (CNI), por exemplo, não tinha sequer um representante para atender a imprensa. A recomendação era a leitura de um “informe conjuntural” escrito no fim do ano.

O mês de janeiro foi marcado por paralisações e protestos pela manutenção do emprego e da renda. Artur Henrique disse que a ordem é negociar à exaustão para evitar demissões e que as empresas têm recursos para isso, como férias coletivas, redução de jornada sem redução de salários e limitação ou fim das horas extras.

No mar de pessimismo e oportunismo, a postura da Indústrias Nardini, fabricante de máquinas e ferramentas em Americana, no interior de São Paulo, virou caso exemplar. A empresa reduziu de R$ 60 milhões para R$ 20 milhões os investimentos que planejava fazer em 2009 e optou por manter o quadro de 1.200 funcionários. A decisão gerou maior empenho dos operários e a empresa ficou mais competitiva. O presidente da Nardini, Renato Franchi, disse ao jornal DCI que a estratégia de não demitir é coerente com o excelente ano que a empresa teve em 2008. “Estamos muito preocupados (com a crise), porém só de não ter havido demissões tranquilizou o pessoal e o clima aqui está sadio. A equipe de vendas está trabalhando com bastante dinamismo. Quando você demite é um problema. Você manda 100 embora e repercute psicologicamente nos outros 1.100”, disse. Mas setores importantes do empresariado não querem nem ouvir falar em garantia de emprego, desprezando o risco de esfriar ainda mais a economia.

Ainda não basta

A redução da taxa básica de juros, enfaticamente reivindicada por todos os setores da sociedade, está atrasada demais para cicatrizar a ferida aberta pelo descontrole dos mercados globais. A queda de 1 ponto no último dia 21 de janeiro pouco muda a posição do Brasil de maior taxa anual do mundo (12,75%, mais que o dobro da inflação). “O Brasil está na contramão”, analisa o economista Antonio Corrêa de Lacerda, professor da PUC-SP. Para Lacerda, a redução deveria ter sido de pelo menos 2 pontos percentuais e vir acompanhada de um conjunto de medidas. “O Brasil conta, atualmente, com uma quase autossuficiência energética e tem posição credora no endividamento externo, o que não garante isoladamente a imunidade diante da crise, mas abre espaço para medidas pró-ativas”, avalia, listando atitudes como redução do superávit primário e pressão para que os bancos reduzam as taxas cobradas pelos empréstimos.

O movimento sindical faz coro às medidas propostas pelo economista. Defende a utilização dos bancos públicos para baratear e ampliar o crédito; redução de impostos para incentivar investimentos produtivos; um pacto para evitar o desemprego; ampliação dos investimentos públicos, nos âmbitos federal, estadual e municipal; apoio às exportações; estímulo a atividades geradoras de emprego e renda pouco demandadoras de importações, como infraestrutura, construção civil, indústria de alimentos, vestuário e calçadista.

Esse rol de reivindicações foi apresentado pelas centrais sindicais ao presidente Lula no dia 19 de janeiro. O governo que, na sequência, foi repercuti-lo junto a empresários e banqueiros e garantiu às centrais a criação de uma espécie de gabinete de acompanhamento da conjuntura e de formulação de propostas. Lula também comprometeu-se a manter o acordo que garante aumento real de 5,7% ao salário mínimo, que passa a R$ 465 a partir de 1º de fevereiro.

É da reação do governo à crise que depende o quadro econômico de 2009, diz o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, professor da Unicamp. “Todo mundo subestimou a crise. O ineditismo dela e o conservadorismo do BC, uma espécie de lerdeza burocrática, paralisaram as instituições. Agora, as ações não podem ser tímidas, conservadoras. É preciso agilidade, pois, apesar da recessão que virá, ainda poderemos ter crescimento em 2009. O governo vai ter de transpor as barreiras burocráticas e colocar o dinheiro do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) na rua. É hora de investir.”

Proteção básica

“Esta crise não tem data para acabar”, anunciou o FMI, em meados de janeiro, em Washington. Reunido em cúpula, da qual participou o vice-presidente da Unifinanças (sindicato mundial dos bancários) e presidente do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Luiz Cláudio Marcolino, o órgão admitiu que a crise foi gerada pela falta de fiscalização dos mercados. “Uma solução deve conter proteção básica aos trabalhadores”, disse Marcolino. Segundo ele, os novos contratos de financiamento fechados pelo Banco Mundial (Bird) exigem contrapartidas correspondentes a 2% do PIB do país devedor, a ser aplicados em proteção social, incluindo isenção fiscal. É uma fórmula para ser repetida em todo o mundo, já que um dado é fato: o elo mais fraco da corrente é o trabalhador.

Enquanto isso, no Brasil, proteção ao trabalhador ainda é tema para ficção. Empresas que se beneficiaram de recursos públicos, a maioria liberada pelo BNDES, não titubearam em iniciar a onda de demissões. Nem mesmo aquelas que receberam incentivo fiscal do governo Lula após o acirramento da crise deram trégua. Foi o caso da General Motors, que dispensou 802 empregados da unidade de São José dos Campos nos primeiros dias do ano. Foram 58 temporários com contratos vencidos e 744 a vencer.

“A notícia foi tão inesperada que não chegou a cair na rádio-peão. As chefias estavam tranquilizando o pessoal quando, no dia 12, ao fim do expediente, veio a bomba”, relata Daibert Novaes, embalador de peças para exportação, que ainda tinha seis meses para ficar na fábrica. No dia 13, Daibert, de 26 anos, pai de dois filhos e casado com Luciana, então grávida de oito meses, saiu de casa para distribuir currículos pelas empresas da região. “A empresa diz que vai recontratar, mas eu não posso esperar.” Cada emprego em montadora gera em média mais seis na cadeia automotiva.

A assessoria de imprensa do BNDES informou que todo contrato assinado envolvendo a modernização de uma empresa prevê que, no caso de demissões consequentes do processo, a empresa ministre treinamento aos trabalhadores e que se empenhe em sua recolocação no mercado. Se for comprovada a desobediência, a punição do banco é a suspensão do desembolso e o vencimento antecipado do contrato.

O ministro do Trabalho, Carlos Lupi, provocado pelo presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Paulo Skaf, divulgou lista com dados de empresas paulistas que receberam quase R$ 3 bilhões de fundos públicos, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador, entre janeiro e março de 2008. O comércio de reparação de automóveis e a indústria de transformação receberam R$ 1,2 bilhão e R$ 1,1 bilhão, respectivamente, com juros correspondente à metade da taxa Selic.

Nessa tempestade toda, Lula mantém o otimismo, “pelo fato de ser corintiano, católico, brasileiro e presidente da República”. O presidente garantiu: “Tudo o que for possível cortar em custeio, não tenham dúvidas que vamos fazer. E tudo o que for possível colocar para gerar um posto de trabalho na construção civil, na habitação, nas ferrovias e rodovias vamos fazer”. Ele solicitou ao ministro do Trabalho levantamento completo da situação do desemprego e da criação de postos de trabalho do país.

Enrosco

No terreno infértil da economia, muito brasileiro viu seus planos irem água abaixo, como os demitidos da Vale. Os números divergem. Segundo o Sindimina, representante dos trabalhadores, a empresa teria dispensado 1.300, mas, na realidade, teriam sido 3 mil desde 1º de novembro. “Se a empresa está em dificuldade, os executivos devem inicialmente reduzir seus próprios salários”, discursa Jorge Campos, secretário-geral da CUT Vale.

Outros ganharam fôlego para alguns meses, como ocorreu com os metalúrgicos da Renault, em Curitiba, que aprovaram um acordo com a suspensão do contrato de trabalho por cinco meses como alternativa a mil demissões. No período, recebem bolsa de qualificação profissional, paga pelo FAT, e ajuda compensatória da empresa, sem natureza salarial. Acordo semelhante foi negociado pelo Sindicato dos Químicos de São Paulo com a Plásticos Mueller, mas que conseguiu evitar 500 das 800 dispensas pretendidas pela firma. O diretor do sindicato, Hélio Rodrigues Andrade, disse que a empresa comprovou as dificuldades para a monitoria do Ministério do Trabalho antes de selar o acordo. Para os que continuam trabalhando foi definida estabilidade de 60 dias.

Na Volkswagen de Taubaté, o sindicato dos metalúrgicos negociou a redução da jornada com compensação após a retomada da produção. “Não se mexe em emprego e salário”, garante o presidente da CUT, lembrando que a Volks teve alta de 6,7% nas vendas em 2008.

No Grande ABC, em São Paulo, um ato em 19 de janeiro reuniu 15 mil metalúrgicos contra a ameaça de demissões. “As empresas deveriam aguardar o fim do primeiro trimestre para avaliar a situação. Eles podem usar mecanismos alternativos, mas preferem as demissões. O problema é que é muito barato demitir no Brasil. Aí eles recontratam por salários menores”, denuncia o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Sérgio Nobre. No dia seguinte ao ato, o sindicalista, em audiência com Lula, obteve apoio a proposta de criação de um fórum formado por sindicatos, lideranças políticas e empresariais do ABC para discutir ações conjuntas de proteção aos empregos.

E enquanto alguns segmentos culpam a crise mundial pela queda de desempenho, outros promovem demissões mesmo sem ser afetados por ela. É o caso, por exemplo, do Santander, que dispensou 400 funcionários nas últimas semanas. O banco, que comprou o ABN Amro Bank em 2007, interrompeu um processo de negociação em curso para reduzir o impacto das demissões e mandou ver. Elisabete Silveira Moreno, de 43 anos, trabalhou até janeiro como supervisora do call center do banco, onde ficou por 21 anos, seu primeiro e único emprego. “Sempre tive expressivas avaliações de desempenho. Agora estou sem norte.”

Remédio amargo
O Banco Central afirma que utiliza a taxa básica de juros, a Selic (Sistema Especial de Liquidação e Custódia), para manter a inflação sob controle. Quando a Selic é reduzida, os investidores fogem das aplicações nos títulos da dívida pública, que são remunerados por ela. E entra mais dinheiro em investimentos que ajudam o setor produtivo.

Quando a Selic sobe, os investidores correm para mamar na dívida. Para os bancos que compram esses títulos (emprestando dinheiro para o governo), quanto mais alta a Selic, mais fácil o ganho. O crédito à pessoa física fica escasso e acontece o que se está vendo. Cada ponto a menos nessa taxa anual reduz de 0,36% a 1% a despesa com a dívida pública interna. Como essa dívida está em R$ 1,5 trilhão, o governo deve poupar de R$ 5,4 bilhões a R$ 15 bilhões em um ano.

A taxa é definida a cada 45 dias pelo Comitê de Política Monetária (Copom), onde reina o presidente do BC, Henrique Meirelles. O propósito é cumprir as metas para a inflação definidas pelo Conselho Monetário Nacional, órgão do qual fazem parte o ministro da Fazenda (presidente), o ministro do Planejamento e o presidente do BC.

Sobre a atual política conduzida pelo Copom, existem três correntes de opinião. Uma delas é formada pelos alinhados com a política monetarista. Os bancos adoram essa visão, de se empregar os juros altos a pretexto de conter o crescimento para controlar a inflação. Têm retorno garantido e sem risco. Nesse grupo estão os “comentaristas de plantão” acostumados a desqualificar o governo Lula, a dizer que ele tem muita sorte e que a economia só vai bem por causa do Henrique Meirelles.

Já os “desenvolvimentistas” preferem menos rigor com metas de inflação e de superávit primário (dinheiro a ser economizado para pagar juros), e inclusão de metas de crescimento e de nível de emprego entre os pilares da política econômica. Defendem o incentivo à produção e ao consumo como forma de vitaminar o crescimento. Não acreditam que essa linha possa vingar com Henrique Meirelles no comando do BC. Para eles, a redução de 13,75% para 12,75% na última reunião do Copom ainda foi pouco. Queriam no máximo 11,75%.

E outra corrente é a dos que não estão satisfeitos com a política de juros, mas que não discordam frontalmente do comando de Meirelles – ao contrário, acham que ele não faz nada que Lula não queira. Porém, defendem metas de inflação e de superávit mais flexíveis, de acordo com as necessidades do governo federal de fazer caixa, e ampliar investimentos que induzam ao crescimento sem aumentar impostos. Enfim, para eles, Meirelles poderia pegar mais leve. Eles acreditam que a queda de 1 ponto percentual é um bom sinal de flexibilização na política monetária, como anunciou o BC.

Noves fora, excetuando-se os “rentistas”, que vivem de rendimentos e não da produção, o clamor geral é que os juros altos atrapalham.

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