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Um drible no destino

Torneio mundial de futebol de rua reúne centenas de jovens na Austrália e mostra o potencial do esporte na batalha contra a exclusão

Mauricio Morais

Seleções de 56 países botaram 500 de seus melhores atletas para correr atrás do valioso título. Emissoras de rádio e TV, jornais e sites não disputaram privilégios na cobertura nem se estapearam por uma entrevista exclusiva com o craque em evidência. Aliás, os jogadores não têm contratos milionários, e muitos nem sequer emprego ou casa para morar. Mas a Homeless World Cup, Copa do Mundo dos Excluídos, foi um espetáculo de muita garra, fome de bola e sede de mudança.

A iniciativa, da Organização Internacional de Jornais de Rua (INSP, sigla em inglês), agrega projetos e publicações voltados para moradores de rua do mundo inteiro e tem apoio da União das Associações Europeias de Futebol (Uefa), da ONU e patrocínio de um fabricante de material esportivo. Em 2003, a INSP decidiu promover o primeiro campeonato mundial do gênero. A competição, na Áustria, seria o pano de fundo para uma série de fóruns que debateria a exclusão social. O objetivo era reunir essas pessoas numa grande confraternização de intercâmbio cultural por meio da linguagem universal do esporte. Deu certo. O campeonato teve sequências anuais.

O Brasil começou a participar em 2003 com um time montado pelo programa Criança Esperança. Em 2004, na Suécia, a Organização Civil de Ação Social (Ocas), que edita uma revista homônima vendida por pessoas em situação de rua e de risco social, convocou o escrete brasileiro. O time ficou em 15o lugar, entre 26 países, não tanto por falta de treinamentos, mas de alimentação adequada, de hábitos saudáveis e de algum conforto na vida. Para encarar a disputa é preciso ter muito fôlego. Nesse futebol, os times têm apenas três jogadores na linha e um no gol. Eles chegam a jogar até três vezes no mesmo dia.

Em 2005, na Escócia, com mais treino, depois de aliviar o “peso” do uniforme verde-e-amarelo (adotaram camiseta preta e laranja), o time, mais leve e mais entrosado, ficou em 11o. No ano seguinte, na África do Sul, ficou em 16 o numa disputa entre 48 países, mais acirrada.

Naquele ano, a Ocas ampliou o perfil dos jogadores. Além dos vendedores da revista, o grupo foi reforçado com outros moradores de albergues. Foi assim que Tula Pilar e Ivo Fernandes dos Santos se conheceram. Pilar, ex-doméstica, estava sem trabalho e a ponto de ser despejada de casa quando passou a vender a revista Ocas. Começou a estudar inglês e voltou para o ensino médio. “Passei a frequentar saraus e minha vontade de conhecimento cresceu. Um monte de gente ria de mim, mas eu não ligava”, conta. Logo foi convidada para participar da seleção.

Outra vida

Num dos treinos estava Ivo – grande, forte e sedutor. Adepto da musculação e da capoeira, o mineiro foi para São Paulo atrás de emprego e deparou-se com a difícil condição dos albergues, até aparecer a possibilidade de ir para a África, em 2006. “Em albergue é tudo muito ruim, mas isso me ajudou, porque minha vida mudou. Quando eles falaram que precisavam de goleiro, agarrei a oportunidade. A viagem e a Pilar mudaram minha vida, hoje tenho um lar”, diz Ivo, olhando nos olhos de Pilar, de quem tem muito orgulho.

Ela era a única mulher do time. Não chegou a jogar com os homens porque a competição estava pesada, mas não fez feio na disputa feminina. A Copa abriu portas. “Foi ótimo conhecer o país dos meus ancestrais. Depois que voltei me chamaram para dar palestras e participar de eventos. Estou estudando, quero montar um show de música, dança e poesia para apresentar em casas de cultura. E já consigo pagar minhas contas”, afirma Pilar, animada.

O perfil do campeonato vem mudando ano a ano. Assim como o Brasil, que pode ser sede do evento em 2010, outros times também querem se profissionalizar – sem perder de vista o aspecto social. Na Austrália, em dezembro, em vez de vendedores de revista e albergados, a Ocas convocou sete ONGs que atuam com futebol e educação em comunidades carentes. Elas selecionaram seus melhores jogadores e a organização escolheu, com critérios social, comportamental e técnico, os oito que representaram o país.

Para o presidente da Ocas, Guilherme Araújo, a mudança na forma de montar a seleção acompanha a evolução da competição. “O viés social sempre vai existir. É uma forma de dar visibilidade ao time brasileiro e promover as vendas da revista Ocas, que ajuda muita gente a sair das ruas”, explica. Foi essa mudança que ajudou o Brasil a subir da 16 a para a 7 a posição em 2008.

De acordo com a organização mundial do evento, 77% dos participantes alteram, de alguma forma, a situação de exclusão a que estavam expostos: arrumam uma casa para morar, deixam as drogas e o álcool, conseguem trabalho, voltam para a escola e resgatam laços com a família. Estudo feito após a Copa de 2005 apontou que 12 participantes tornaram-se jogadores semi ou profissionais, 94% afirmaram que sentiram impactos positivos, 73% disseram que suas vidas mudaram para melhor e 92% alcançaram uma nova motivação.

Sonho em equipe

E, neste ano, promessas de novas mudanças chegaram da Austrália com a equipe brasileira. Elogiado pelos árbitros do campeonato, o time fez bonito em todos os jogos, com exceção do primeiro, contra a Ucrânia e o nervosismo da estreia. Em seguida, o time se recuperou com grandes goleadas, uma delas sobre a Argentina por 15 a 3. No jogo considerado por todos o melhor da história, os brasileiros venceram Portugal por 2 a 1. De acordo com o treinador, Flávio Fernandes, o Pupo, eles só não foram campeões porque aconteceu uma fatalidade: com uma chuva torrencial que caiu antes do jogo contra a Rússia, nas quartas-de-final, o time escorregou muito e, o pior, o goleiro Diego Emanuel Rodrigues Alves sofreu uma contusão no dedo. Depois de perder para os russos, para a Inglaterra e empatar com a Ucrânia, o time terminou a Copa em sétimo lugar. “Eles foram muito bem, tinham condições de ganhar o título”, avalia Pupo.

Tão bem que Carlos Magno Santos, de 17 anos, recebeu o título de melhor do mundo. “Chorei muito quando disseram que eu tinha ganhado. Ser escolhido entre mais de 500 jogadores é maravilhoso”, orgulha-se. Morador de uma comunidade carente de Santos, Carlinhos cresceu jogando futebol na rua, com “gol” de caixotes ou chinelos. “Sempre sonhei ser jogador, já joguei na Portuguesa e no Litoral Futebol Clube, time do Pelé. Realizei vários sonhos de uma só vez: andei de avião, conheci outro país e joguei um mundial. No primeiro jogo, quando tocou o Hino Nacional, me emocionei.”

Diego ficou feliz em estar com o amigo de infância no grupo brasileiro e também foi um dos destaques da equipe: “Vestir a camisa da seleção é uma grande responsabilidade.”

O técnico conta que depois de todos os jogos, reunia-se com os meninos para avaliar o desempenho do grupo e sempre falava da importância de continuarem os estudos, independentemente dos resultados que levassem para casa. “Falei que aquela era uma oportunidade para eles, mas que precisavam voltar e seguir os estudos. Estou conversando com alguns times para ver se conseguimos encaminhá-los no futebol, sempre reforçando e apoiando a continuidade dos estudos”, disse Pupo, que é professor de Educação Física, dono de uma escola de futebol em São Roque e treinador voluntário da seleção.

Carlinhos ficou empolgado ao saber, pela reportagem da Revista do Brasil, que há possibilidades de ele passar a acompanhar treinos do Corinthians. Arriscou até a fazer uma média, dizendo “torcer para o Timão”, mas logo confessou que torcia para o Santos até Robinho sair -agora torce apenas para o inglês Manchester City do ex-atacante santista.

O perigo do lado

Para alguns desses garotos, a batalha mais difícil não foi estar na seleção, mas não ser convocado por um vizinho perturbador e sempre à espreita: a criminalidade. Adeílton Bruno da Silva, de 17 anos, mudou-se da comunidade de Heliópolis, zona sul de São Paulo, há pouco mais de um ano. Perdeu para o crime alguns amigos com quem treinava na Associação Atlética ArtManha. “O esporte pode ajudar a vida das pessoas, é uma ponte para dar um salto. Eu vi colegas no ArtManha que treinavam, treinavam e nada aparecia. Acabaram tomando outro rumo”, lamenta.

Seu companheiro de time, Eduardo Buglia Silva, vive no Jaguaré, no outro extremo da capital paulista, e ratifica o risco. “Vi amigos meus caindo pro lado errado e fiquei muito triste. Eles não tiveram a chance de conhecer algo melhor, como o esporte, não tiveram alguém para incentivá-los, como eu tive. Meu sonho é ser jogador, mas estou estudando o ensino médio de manhã e Técnicas Administrativas à noite para me garantir.” Para ele, essa foi uma segunda chance. “Já joguei no Nacional e na Portuguesa pelo time júnior. Mas, às vezes, não tinha dinheiro nem para ir treinar, em outras eu tinha de olhar meu irmão que não tinha com quem ficar. Tive que desistir, mas estou agarrando essa chance.”

Garra, determinação e “dar tudo de si” para conseguir os três pontos – como costumam dizer os craques – não faltou para esses garotos, que semanas antes de embarcar para a Austrália podiam ser vistos treinando embaixo de viaduto no bairro do Brás, região central de São Paulo. Agora, com a missão cumprida, resta cuidar da vida que segue. De todos os brasileiros que já passaram pela experiência de participar da Copa do Mundo de Futebol de Rua, 80% mudaram de alguma forma sua condição social. “Temos pelo menos dois jogadores que são promessa para o futebol brasileiro, e outros que têm condições também. Esperamos que essa oportunidade continue influenciando para que eles saiam da condição de risco social. As pessoas passam a olhar diferente para os meninos e é assim que podem conquistar uma chance”, afirma o técnico Pupo, lapidador de diamantes.

O Brasil na Copa
O Brasil terminou a primeira fase em 2o lugar no Grupo B, que tinha também Argentina, Lituânia, Malauí, Timor Leste e Ucrânia. Venceu quatro partidas e perdeu uma, para a líder Ucrânia. Nas fases seguintes, seguiu arrasador, vencendo quatro partidas seguidas. Mas depois de perder para Rússia e Inglaterra, terminou a competição em 7º, ao vencer a Ucrânia na cobrança de pênaltis, após empate por 3 a 3. O time do Brasil tinha Adeílton Bruno, Anderson de Franca, Carlos Magno, Dênis Rodrigues, Diego Emanuel (goleiro), Eduardo Buglia, Lucas de Souza, Roberto de Souza. O campeão de 2008 foi o Afeganistão, que venceu todas as suas partidas (duas nos pênaltis), seguido por Rússia, Gana, Escócia, Quênia e Inglaterra. Na modalidade feminina, com nove seleções (o Brasil não disputou), a campeã foi a Zâmbia. A próxima edição da Homeless World Cup será em Milão, Itália. O Brasil é o mais cotado para sediar a Copa em 2010.