cidadania

Solidariedade sem fronteiras

Neste exato momento, em algum lugar do mundo, um médico que faz da causa humanitária a razão de sua profissão está tentando salvar a vida de pessoas em situações de guerra, catástrofes, conflitos, epidemias ou de fome

Arquivo da entidade

David, na Etiópia, em missão contra a desnutrição

O projeto de David Souza, estudar Medicina, vinha desde a adolescência. Mas em seus sonhos nunca se via fechado num consultório. No dia seguinte à sua formatura, em 2000, tomou um avião para Moçambique. Embarcou numa missão da Cáritas Internacional para atender vítimas de uma grave epidemia de cólera e, depois desse “batismo”, não parou mais. Até 2004, trabalhou no projeto Meio Fio, dos Médicos Sem Fronteiras (MSF), que cuida de moradores de rua no Rio de Janeiro, e logo virou coordenador da unidade médica da entidade.

A organização humanitária Médicos Sem Fronteiras reúne 28 mil profissionais, incluindo enfermeiros, farmacêuticos, psicólogos, arquitetos e especialistas em logística e finanças. Entre eles, 78 brasileiros que atuam no país e outros 19 pelo mundo. Em julho, David viajou para uma missão contra a desnutrição na Etiópia. Deixou aqui a mulher, grávida de 7 meses, e um filho de 13 anos. “Foi uma decisão conjunta e decidimos que essa seria a mão que a nossa família estenderia às famílias da Etiópia. Tem a dor de estar longe, mas o apoio foi total”, conta o médico, que passou dois meses no nordeste da África e chegou a fazer 150 consultas num só dia.

O programa teve início em maio deste ano com a montagem de 51 ambulatórios de nutrição e cinco unidades de internação em território etíope. Os efeitos severos da fome começaram a surgir quando desapareceram as chuvas. Sem colheita, os produtos ficaram escassos e caros. Para ter uma idéia, em 2007 pagava-se o correspondente a € 27 por uma saca de 100 quilos de milho; hoje são € 61.

Assim brotaram milhares de casos de desnutrição severa nas unidades do MSF. Eram em média 5 mil atendimentos diários. Filas com centenas de pessoas – a maioria pais que andaram quilômetros descalços e no frio com suas crianças nas costas – se formavam logo pela manhã. Os menores de 5 anos são os primeiros a se abater com a fome. O estado de desnutrição moderada os torna mais suscetíveis a doenças e ao risco de emagrecimento extremo, estágio que pode levar à morte. Mas, conta David, no início foi preciso privilegiar as crianças gravemente desnutridas: “É muito difícil dizer a uma mãe que seu filho não passou no critério de admissão. Tínhamos de recusar. Mas depois foram criados centros de alimentação suplementar. Infelizmente, muitas delas não resistem, mas é emocionante ver as que reagem ao tratamento e saem de lá parecendo outras”, descreve o médico.

Trabalho reconhecido

A história do MSF teve início em 1971, na França, com um grupo de médicos e jornalistas que foram voluntários na guerra civil da Nigéria. Chegou ao Brasil em 1991 para combater uma epidemia de cólera na Amazônia. A partir daí, atendeu desabrigados de enchentes, moradores de rua e comunidades carentes.

Um dos primeiros brasileiros a atuar na ONG foi Mauro Nunes, deslocado da Secretaria de Saúde do Amazonas para tratar pessoas durante o surto de cólera em seu estado e no Pará. Depois de um ano de treinamento, licenciou-se para ir a Moçambique. Mais tarde, participaria do processo de reestruturação do sistema básico de saúde em Malange (Angola), devastada pela guerra civil. Mauro lembra o cuidado que tinha de tomar para andar pelas estradas: “Angola tem esse histórico de minas, sempre há risco. Depois que saímos de lá fomos descobrir que elas existiam em um dos lugares que passávamos todos os dias”.

Seu trabalho em Amukoko, na periferia de Lagos, ajudou a salvar tantas vidas que ganhou um título de nobreza em reconhecimento. “Tenho ancestrais nigerianos, orubás, foi muito legal ver que os próprios funcionários da distrital pediram que eu ganhasse o título de nobreza.” Em 1999, bombas voltaram a cair e a região teve de ser evacuada. Mauro voltou ao Brasil, mas, com respaldo de outra ONG, lá foi ele de novo, e permaneceu por mais nove meses. “O primeiro estímulo é sair quando há risco, mas daí você pensa que aquela população toda vai ficar lá. Quem é que vai atender essas pessoas? Já vi cair bomba muito perto, mas tinha de ficar”, explica ele, vítima de malária 20 vezes.

O italiano Michele Dal Cengio, de 39 anos, também já esteve na África (Costa do Marfim, Congo, Angola, Moçambique e Camarões) com os Médicos Sem Fronteiras. Mesmo com tudo o que viu lá, hoje, há quatro meses atuando no Complexo do Alemão, ele confessa que é difícil aceitar a situação dos moradores da favela onde presta atendimento. “Em geral, em uma cidade como o Rio, onde existe um sistema público de saúde, é muito difícil aceitar as dificuldades que os moradores encontram. Eles precisam sair da comunidade quando têm um problema e, quando vão aos hospitais públicos, freqüentemente são discriminados por morar na favela”, explica o médico, que deixou na Itália mulher e uma filha.

O MSF do Brasil já “exportou” funcionários para atuar em 11 projetos: em Honduras, Haiti, Colômbia, Camboja, Nigéria, Burkina Faso, Quênia, Sudão, Congo, Zimbábue e Moçambique e tem previsão de início de trabalho no Afeganistão. A psicóloga Ana Cecília Moraes, responsável pelo recrutamento no Brasil, afirma que para ser um médico sem fronteira é preciso ter formação de qualidade, experiência generalística, falar pelo menos inglês e francês, a língua-mãe da ONG, e ter vocação para assistência humanitária, já que o salário não é um motivador.

“O salário inicial dos que são expatriados gira em torno de € 1.000 e chega a no máximo € 2.600 para os experientes”, relata. “Quem nos procura é porque quer atuar em áreas de conflito, onde não há acesso à saúde. E mesmo com as dificuldades e o trabalho cansativo, o índice de desistência não chega a 5%”, observa Ana. “Para que o investimento que fazemos seja mais bem aproveitado (em média € 5.000/mês per capita), o ideal é que permaneçam, no mínimo, por 12 meses. O processo de seleção rigoroso tem como objetivo reduzir a evasão”, explica.

Organização é totalmente financiada por doações
No Brasil, o montante de doações em 2007 chegou a quase R$ 4 milhões; no mundo, a € 488 milhões. A regra é que 80% da receita sejam empregados em ações humanitárias e o restante, em despesas administrativas e divulgação da causa. Apesar de o trabalho no MSF ser uma das maiores fontes de satisfação do médico Mauro Nunes, ele ainda espera que um dia o mundo não precise mais da organização: “Seria sinal de que os conflitos não existiriam mais, e que os governos resolveriam os problemas da população. A coisa mais perversa que vi foi o Exército, em Angola, colocar minas sob árvores frutíferas e à beira de locais de recolha de água”. 

Informações sobre doações: (21) 2215-8688, de segunda a sexta-feira, das 10h às 14h e das 15h às 18h, ou em www.msf.org.br.