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Queda-de-braço

Acordos coletivos com aumentos reais, valorização do salário mínimo e injeção de dinheiro na praça para proteger o país. É a economia real contra a balbúrdia financeira virtual

Paulo Pepe/Sind. Bancários SP

 A despeito de um cenário caótico jamais visto – a maior crise financeira global em 90 anos, dizem os analistas –, os acordos salariais entre empresas e trabalhadores continuaram apresentando saldo positivo. Mantendo a tendência dos últimos quatro anos, milhares de bancários, metalúrgicos, petroleiros, químicos, energéticos, empregados da construção civil e comerciários, entre outros profissionais, alcançaram aumentos acima da inflação.

Apesar da apreensão generalizada – não se sabe se e quando a balbúrdia financeira virtual afetará a economia real no Brasil –, o ambiente de crescimento econômico, a expansão do nível de emprego e o controle da inflação fortaleceram o poder de barganha das entidades sindicais e se refletiram nos acordos salariais, acredita o coordenador de Relações Sindicais do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), José Silvestre Prado de Oliveira. “Os bancários, por exemplo, chegaram a um bom acordo, reajustes de 8,15% a 10%, com até 2,85% de aumento real. Também obtiveram PLR maior que em 2007”, observa. Outra peculiaridade da greve dos bancários, além de ocorrer em meio à crise e por mais de duas semanas, foi a maior adesão de empregados dos bancos privados nos últimos anos.

Os 100 mil metalúrgicos do ABC conquistaram reajustes variáveis entre 10,5% e 11,01%, incluindo aumento real de 2,78% a 3,6%. “A campanha obteve os melhores resultados dos últimos 15 anos. Os patrões começaram oferecendo nada, ignorando o fato de que as indústrias do setor bateram recordes de produção e venda. O sindicato parou fábricas, fez protestos e conseguiu o que queria”, analisa o presidente da entidade, Sérgio Nobre.

No entanto, de acordo com o especialista do Dieese, as negociações do próximo trimestre poderão ser fortemente afetadas. “Há uma trava geral na economia, todos em compasso de espera. E caso entremos em um quadro recessivo haverá maiores dificuldades para os sindicatos em 2009”, prevê Oliveira. Já se fala em crescimento de apenas 3% para o Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro no ano que vem.

Iniciativas das centrais sindicais junto ao governo também garantiram o crescimento real do salário mínimo entre 2008 e 2023. Os valores são reajustados pela variação da inflação e o aumento real corresponderá à taxa de crescimento do PIB do ano anterior. Neste ano, conforme o Dieese, a pequena valorização do mínimo surtiu impacto na renda de 45 milhões de pessoas e uma injeção de R$ 20,3 bilhões a mais na economia. Especula-se que o valor previsto para 2009, com vigência a partir de 1o de fevereiro, se aproxime de R$ 470, já incluídos a variação de 12 meses do INPC e os 5,4% de evolução do PIB em 2007.

estaleiro

Descrédito

Apesar do poder de compra mantido devido ao aumento da renda, os consumidores parecem não alimentar grandes expectativas. O vaivém do noticiário econômico e a ameaça dos bancos de tirar recursos do crédito acabam afetando os planos de longo prazo. Assim pensa o metalúrgico pernambucano Marcos Batista, soldador do Estaleiro Atlântico Sul, na cidade de Ipojuca (PE). Marcos foi contratado há um ano. Ele comemora a retomada da indústria naval, depois de uma longa estagnação, e o início dos investimentos em seu estado. “Esse aqui é um empreendimento de R$ 4,5 bilhões. Acredito que esse setor está protegido da crise”, opina.

Em sua vida pessoal, o soldador de 32 anos sente o supermercado ficando mais pesado. Fora isso, os planos que tinha para este final de ano ficam para depois, como a reforma da casa e a compra de um carro. “Tudo isso vai esperar. O dinheiro sumiu e quem empresta cobra juros altos.” Marcos é empregado do setor naval, integrante da base do Sindicato dos Metalúrgicos de Pernambuco, que fechou em outubro o acordo de reajuste de 9,40%, já incluídos 2,28% de aumento real. Para o presidente da entidade, Alberto Alves, o Betão, a situação em sua região não é de otimismo, mas também não há desespero. “Certamente, não vamos sofrer como nos anos 90, quando a categoria foi reduzida a um terço”, acredita.

O crédito raro e caro também postergou os planos de Sidney Mendes da Silva, técnico em Telecomunicações da CPFL, em Campinas, no interior de São Paulo. O eletricitário, de 38 anos, pretendia trocar sua casa por uma maior. Porém, viu o valor do seu imóvel atual cair de R$ 110 mil para R$ 90 mil em outubro. “O pior é que mesmo assim não consigo vender. Ninguém tem dinheiro nem coragem para entrar em uma dívida agora”, lamenta. Sidney teve mais dois desgostos: os R$ 60 mil que tinha em ações da Petrobras e da Vale em janeiro foram reduzidos a R$ 30 mil em outubro. Além disso, o carro “flex” que queria comprar para economizar combustível no trajeto de 20 quilômetros entre a residência e o trabalho também vai ficar para depois.

Sidney se classifica como cidadão de classe média baixa, com recursos suficientes para manter casa, alimentação, roupas, lazer, educação das filhas, gasolina. “Mas os planos maiores que, geralmente, a gente deixa para o fim do ano, estão todos adiados, sabe Deus para quando.”

Medidas do governo federal para fomentar o crédito em setores que impulsionam o crescimento econômico – automotivo, agrícola, construção civil – tentam no curto prazo reduzir a insegurança. Segundo o economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), isso pode não bastar. “As medidas acertadas do governo são para os grandes. Mas esses setores se organizam rápido, têm capacidade de pressionar e obter aquilo que entendem ser necessário. Os pequenos não têm capacidade de organização, mas têm um grau de sofrimento muito maior. E quantitativamente compõem um público importante. Colocar dinheiro na mão de quem não tem estrutura para se organizar pode proporcionar um efeito muito promissor”, propõe Pochmann (veja entrevista na página seguinte).

No início de novembro, o Banco do Brasil (BB) liberou empréstimo de R$ 4 bilhões aos bancos de montadoras de veículos por meio de linhas de crédito interbancárias. A fonte dos recursos é o depósito compulsório liberado pelo Banco Central (BC). O Banco do Brasil também garantiu manter o financiamento direto aos consumidores. Mas a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos (Anfavea) só manifestou satisfação depois que o governador José Serra, de São Paulo, também decidiu liberar R$ 4 bilhões da Nossa Caixa – banco que, aliás, está para passar ao controle do BB, que por sua vez acabaria assumindo também essa injeção de ânimo no setor. Jackson Schneider, da Anfavea, afirmou que os R$ 8 bilhões seriam suficientes para impulsionar os resultados. As vendas de automóveis em outubro sofreram retração de 11% em relação ao mês anterior e de 2,1% na comparação com o mesmo mês de 2007.

O presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban) e do Santander, Fábio Barbosa, disse que mesmo com a disposição do governo de liberar cerca de R$ 100 bilhões em recursos captados pelos bancos que estavam parados no BC, os reais em circulação na economia não serão suficientes para atender à demanda por crédito das empresas que cresceu com a falta de linhas em dólar. Em entrevista à Folha de S.Paulo, no início de novembro, Barbosa afirmou que a sensação de paralisação permanecerá e se traduzirá num novo patamar do mercado de crédito, reduzindo o crescimento no Brasil e no resto do mundo. Ele garantiu: os bancos não estão escondendo dinheiro. “Se mais gente vem buscar, não tem e fica faltando.”

Manifesto

Para o presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique da Silva Santos, os empréstimos feitos com recursos públicos precisam conter contrapartidas sociais. “Os setores ou as empresas que receberem esse dinheiro devem ser obrigados a cumprir metas de manutenção e geração de emprego. Se ao final de um determinado período de carência de linha de financiamento tais metas não forem cumpridas, deve haver um mecanismo que puna os tomadores”, defende.

A CUT também quer a presença de representantes da sociedade na gestão de bancos ou empresas que vierem a ser adquiridos com recursos públicos e também no controle de projetos que recebam ajuda governamental. “O controle social garantirá que o dinheiro público não acabe contemplando a especulação ou a falta de compromisso com um modelo de desenvolvimento que gere empregos e distribuição de renda”, avalia Henrique.

O governo mostra disposição em direcionar o Estado como fio condutor dos investimentos e do crescimento. “Há um ciclo de investimento em infra-estrutura em plena aceleração e que não foi afetado de forma nenhuma pela crise”, disse o presidente do BNDES, Luciano Coutinho. Na outra ponta, o mercado insistirá na tese de que é preciso conter os gastos públicos. Será essa a grande queda-de-braço travada nos próximos meses, e que vai ditar como o país se protegerá dos efeitos da crise.

Marcio Pochmann

Fomentar a base da pirâmide

Para o economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), do Ministério do Planejamento, o país vive um momento crucial para acelerar o papel dos bancos públicos e consolidar o ainda tímido sistema de microcrédito, capaz de gerar os recursos para os pequenos empreendedores com baixa capacidade de pressão.

Os aumentos salariais superiores à inflação e seus efeitos no poder de compra das pessoas podem ser uma vacina contra eventuais impactos da crise para a economia brasileira?
Certamente, eles são um componente de sustentação da demanda agregada (capacidade do mercado consumidor de absorver o que é produzido). Se as remunerações não conseguissem acompanhar a inflação, teríamos uma convergência com o comportamento da taxa de juros, que ainda não incidiu diretamente na economia real, o que leva uns seis a setes meses.

Quando essa alta dos juros, que vem desde abril, começar a afetar o crescimento, não há o risco de isso ser atribuído à crise e não à política de juros do BC?Independentemente da crise, já se trabalhava com uma situação de desaceleração da economia a partir do final deste semestre, início do ano. Há ainda o efeito sazonal, já que a atividade econômica costuma estar mais morna no primeiro trimestre. Os efeitos da crise financeira sobre a economia real, com essa convergência de resultados, serão mais contundentes. A pressão sobre a demanda agregada decorrente da atuação dos trabalhadores nos acordos salariais traz uma certa compensação. Mas temo que seja preciso uma atuação mais ampla pelo fortalecimento do mercado interno.

O aumento real previsto para o salário mínimo terá também algum peso positivo?
O que está em jogo neste momento é a sustentação da demanda agregada. Se o ciclo de investimento é perdido, toda a cantilena neoliberal por corte de gastos públicos se manifestará de forma muito mais evidente. E para que se proteja a produção e o emprego é fundamental que se proteja a demanda. Mas como sustentá-la, se o setor produtivo vai, de alguma maneira, reduzir investimentos? A possibilidade de se compensar isso é o gasto autônomo do Estado, e também (os assalariados) se fortalecerem na correlação de forças das negociações sindicais. A valorização do salário mínimo é um elemento significativo para a sustentação da capacidade de consumo na base da pirâmide social.

O sistema bancário tem alguma razão para impor restrições ao crédito?
O setor privado, num momento de maior incerteza, torna-se muito mais intolerante com operações que imaginam ser arriscadas. Agora é a hora e a vez de acelerar o papel do banco público e uma grande oportunidade de consolidar no Brasil um sistema de microcrédito. Numa crise em que a incerteza é gigantesca, o único segmento que pode fazer gastos autônomos é o Estado. O banco público é fundamental para garantir o crédito para os segmentos tradicionalmente usuários de crédito, mas o sistema de microcrédito é o que pode fazer diferença para os micro e pequenos empreendimentos.

O que no Brasil é algo que ainda engatinha.
É muito incipiente. As medidas do governo que temos visto – e que precisam ser feitas – são para os grandes, a cadeia da construção civil/construtoras, grandes agricultores, grandes fabricantes de automóveis. Não que não deva ocorrer assim. Mas esses setores se organizam rápido, têm capacidade de pressionar e de obter aquilo que entendem ser necessário. Os pequenos, os de baixo, não têm capacidade de organização, mas possuem um grau de sofrimento muito maior. E quantitativamente falando, compõem um público importante. Botar crédito, dinheiro na mão de quem não tem estrutura para se organizar pode acabar proporcionando um efeito muito promissor.

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