entrevista

Os imperdoáveis

Para o ministro dos Direitos Humanos, não é imprescindível pôr na cadeia torturadores da época da ditadura. Mas o reconhecimento oficial desses crimes e a execração pública de quem os executou é fundamental

Jailton Garcia

O ministro Paulo Vannuchi, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH), defende que as Forças Armadas façam uma revisão histórica em benefício da honra da corporação. “Não podemos não discutir Canudos, não podemos não discutir 1964.” Vannuchi, 58 anos, foi preso político nos anos de chumbo.

Cientista político e jornalista, integrou a equipe que sigilosamente elaborou o projeto “Brasil Nunca Mais” (1980-1985), um dos mais importantes inventários da repressão. Assumiu a SEDH há três anos e, no momento em que o mundo celebra 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos – de dezembro de 1948, na esteira dos horrores da Guerra –, vê o reconhecimento do Brasil externamente nessa área como positivo. Por valorizar o esforço em direção aos princípios da Declaração, sobretudo a partir da Constituição de 1988. E, principalmente, por acentuar o desafio do país de se tornar merecedor disso, “já que as violações dos direitos humanos ainda seguem rotineiras por aqui”.

O que motivou a elaboração da Declaração Universal dos Direitos Humanos?
A Segunda Guerra acabou em 1945. Foram 60 milhões de mortos. Judeus foram mortos por serem judeus, comunistas, por serem comunistas, ciganos, por serem ciganos, homossexuais, por serem homossexuais, horror que terminou com o horror de duas bombas atômicas jogadas em cima de inocentes. Foi a perplexidade que levou a ONU, então com 53 países, a formular o primeiro programa político que a humanidade conseguiu escrever sobre como as nações devem lidar com quesitos indispensáveis para que o mundo possa caminhar para a paz. A paz é fruto da justiça, de condições de igualdade e de liberdade que precisam ser asseguradas dentro de cada país e na relação entre países.

Em que se baseiam os objetivos da Declaração?
Em acreditar que o ser humano tem a vocação da liberdade, da justiça, da paz, e não em outras concepções, que acreditam que o ser humano é um animal que não é domado, que o mundo terá sempre guerras, terá sempre opressão, desigualdade, a vitória dos fortes sobre os fracos. Os primeiros artigos mencionam direitos mais vinculados a essa condição da vida: o direito de não ser preso (a não ser por uma decisão judicial de um processo), torturado, o direito à dignidade, à honra, de ter opiniões religiosas, filosóficas, políticas, de se manifestar, de se organizar, participar, votar, ser eleito, de ir e vir. Mais adiante artigos tocam nos direitos econômicos, sociais e culturais: direito ao trabalho, à remuneração justa, saúde, educação, bens culturais. Ainda há uma enorme distância entre o enunciado nesse programa, que é um projeto – “livres e iguais em dignidade e direitos nascem todos os homens”, diz artigo 1º – e a realidade.

A Declaração surtiu efeito no planeta?
Ela é uma referência que se constitui crescentemente, a cada cinco ou dez anos alcança um patamar que tem elementos novos. O mundo de hoje tem dois chefes de Estado presos fora de seus países de origem, Slobodan Milosevic (ex-Iugoslávia) e Jean Kambanda (Ruanda). Isso não ocorreria sem o estabelecimento de que há uma comunidade mundial que, mais dia, menos dia, as fronteiras não poderão proteger torturadores, carrascos, genocidas, autores de crimes contra a humanidade. O ditador chileno Augusto Pinochet foi preso em Londres. Isso é uma sinalização. Se algum torturador brasileiro for convidado para algum evento na Europa, ele não vai porque sabe que corre risco real de ser preso.

E como está o Brasil nesse aspecto?
De 1988 para cá o país foi firmando instrumentos internacionais que antes não firmava. O país, como as ditaduras vizinhas da época, ficava à margem dos sistemas de direitos humanos, que reuniam os países da Europa, EUA, Canadá. Além da declaração de 1948, a ONU criou dois pactos em 1966 que são centrais: o Pacto de Defesa dos Direitos Humanos Civis e Políticos e o dos Direitos Humanos Econômicos, Sociais e Culturais. Os países podem assiná-los, ou não. Se assinarem, querem voluntariamente participar daquele processo mundial de respeitar aqueles preceitos. Desses dois grandes pactos, há meia dúzia de importantes convenções. O Brasil já é signatário da Convenção do Direito da Criança, contra a tortura, contra o racismo, pela defesa da mulher, das pessoas com deficiência. Falta aprovar a convenção dos direitos do trabalhador migrante, que é importante neste momento em que o Brasil reclama da xenofobia européia. Hoje o Brasil tem externamente um grande prestígio na área de direitos humanos. Quando se discutem direitos humanos, pensa-se em três ou quatro centros europeus fundamentais, como França, Inglaterra, Suécia e mais algum país nórdico, e também no Canadá e nos Estados Unidos; quando se pensa em hemisfério sul, fala-se nas três democracias que estão formando o Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), e a democracia brasileira é de um padrão incomparavelmente mais elevado que as outras duas. Esse reconhecimento projeta este desafio importantíssimo: se tornar merecedor disso, já que violações dos direitos humanos seguem sendo rotineiras.

Por exemplo?
Não passa um dia sem ter importantes notícias de problemas de superpopulação carcerária, rebelião, mortes, torturas, problemas com os índios, com preconceito racial, desigualdade com a mulher. E ainda estamos digerindo o passado recente brasileiro, da repressão política, o chamado Direito à Memória e à Verdade. Temos problemas recentes, como a criminalização de movimentos sociais, até por meio de procedimentos de setores do Judiciário, das polícias e das elites políticas regionais.

Por que o Brasil não consegue punir torturadores?
Eu, pessoalmente, como secretário de Direitos Humanos, ministro do presidente Lula e como vítima da tortura que fui, não acho um elemento central botar na cadeia. O que é indispensável é apontar para a execração pública o sujeito que matou, torturou, porque isso é punição, isso vai levar o filho dele na hora do jantar a perguntar: “Pai, você fez isso mesmo?” A punição penal é atribuição do Judiciário. Defendo que sejam formadas dezenas e dezenas de causas, não pode ser uma ou duas, como tem agora. Todos os arquivos têm, sim, de ser abertos. Mas também é muito importante que o trabalho jornalístico seja feito corretamente: o Brasil já tem mais arquivos abertos sobre repressão política do que Chile, Paraguai, Argentina e Uruguai.

Quais foram abertos e quais não foram?
O “Brasil Nunca Mais” foi lá no Superior Tribunal Militar e pegou no porão todos os processos judiciais, achou tudo o que precisava achar. Está na Unicamp. A cada semana que vocês passarem pesquisando lá acharão informação que nenhum jornalista ou pesquisador explorou até hoje. Há também todos os arquivos estaduais: Rio Grande do Sul, Paraná, São Paulo, Rio, Minas, Pernambuco, Ceará, Goiás. São oito estados em que os arquivos já foram passados. E, por último, a ministra Dilma Rousseff comunicou, no dia em que tomei posse (21 de dezembro de 2005), que estavam sendo transferidos para o Arquivo Nacional, que é da Casa Civil, os arquivos da Abin, compostos de três conteúdos. O primeiro foi o do CGI, processos de corrupção de 1964. Mas processos politizados, contra aliados de João Goulart, pois contra os corruptos que conspiraram para derrubá-lo não houve nenhuma investigação (Ademar de Barros era um dos líderes políticos do golpe e era o político mais conhecido como corrupto no Brasil). O segundo conteúdo é o do Conselho de Segurança Nacional, importantíssimo para o estudo do tipo de matéria em que as Forças Armadas se meteram, discutiam ali as cassações de mandato, que às vezes eram instruídas por rivalidades políticas. E o terceiro e mais importante de todos é o do SNI, que nas poucas horas que consigo ficar lá mexendo neles já acho coisas que não conhecia. Tem um acervo enorme de informações que os pesquisadores, jornalistas, familiares, quando quiserem, vão achar.

Está tudo aberto?
Não, por duas razões. A primeira é da lógica do criminoso apagar rastros, as ditaduras queimam documentos. Hitler queimou por dias e dias documentos do regime nazista. Numa transição como a do Ceausescu (Romênia, 1989) ou a de Fulgêncio Batista (Cuba, 1959), ou a de Somoza (Nicarágua, 1979), ou da Revolução dos Cravos (1974), você tem mais chances de pegar os arquivos intactos porque o assassino não teve tempo de se organizar. No Brasil, já no governo Geisel (1974-1979), o aparelho de repressão estava convencido de que Geisel era quase um comunista, que levaria o Brasil para uma abertura e a esquerda para o poder. O porão foi para a conspiração, inclusive para derrubá-lo. Então, deu muito tempo (até Geisel rechaçar a tentativa de golpe, em 1977) e, certamente, muitos arquivos foram queimados. Mas muitos devem ter sido apropriados por pessoas hoje na Reserva que falam com jornalistas, com pesquisadores e mostram fotos e documentos.

Essa história não poderia ser passada a limpo?
Para isso é preciso conquistar a boa vontade dos militares, o respeito à lei, às regras constitucionais da República, acima do corporativismo. Disso estou convencido: quem faz a verdadeira defesa das Forças Armadas sou eu. Eu não quero que continuem associados às Forças Armadas elementos como estuprador, degolador, esquartejador, assassino de crianças. O Brasil precisa das Forças Armadas e o cidadão precisa se orgulhar delas. O tenente Vinícius, do Morro da Providência comandou uma operação, prendeu três jovens e os entregou para uma facção do crime organizado. Os três foram mutilados antes de mortos, e eu vi as fotos. Por que proteger esse tenente? Se as Forças Armadas falam “não, esse é um tenente nosso”, estão defendendo a corporação? Não! Para a corporação ser defendida tinha de vir um general ou um ministro da Defesa e dizer: “Assassinos como esse têm de ser submetidos a um inquérito administrativo sumário, investigação rigorosa, exclusão, para que não pairem dúvidas de que o Exército Brasileiro não tem nada a ver com ele”. Assim como as Forças Armadas devem um pronunciamento à nação dizendo que qualquer que fosse o ambiente tenso em março de 1964, foi um equívoco ter derrubado o presidente.

O Exército não pode continuar não discutindo Canudos. Precisa discutir por que cortou a cabeça do Antônio Conselheiro, quem ficou mandando bala até sobrar meia dúzia de crianças e mulheres. Isso vale para Canudos, e vale para a pequena guerra que houve entre 1964 e 1985. “Pode violar mulher no pau-de-arara”? Não! Não pode nem ter pau-de-arara. “Pode degolar, largar corpo no mato para apodrecer?” Claro que daí vem o contra-ataque: “Mas os guerrilheiros também…” Não tem problema. Não é enfoque de bem ou mal. É enfoque da história. No dia em que o Judiciário tomar a decisão que não se discute mais isso, ainda assim o tema seguirá adiante na forma de pesquisas universitárias, jornalísticas, música, teatro, cinema, trabalhos da Secretaria Especial de Direitos Humanos, que é um órgão no governo para cuidar dessas coisas.

Criar problema com os militares preocupa o presidente Lula?
O governo tem duas posições: a primeira, reconhecer os direitos dos familiares, a legitimidade de seguirem na busca dos corpos e localização de todas as informações, a abertura de arquivo; a segunda, o tema da punição é competência do Judiciário. Nem o ministro Tarso Genro (Justiça), nem eu propusemos revisão da Lei de Anistia. Propusemos que o crime de tortura deveria ser imprescritível. As definições de tortura anteriores aos anos 1970 são as de Genebra – 1909, 1914, ata de fundação da ONU, a Declaração de 1948 –, uma base um pouco espalhada. O Ministério Público do Estado de São Paulo fez uma bela ação considerando esses documentos uma definição nítida de que a tortura é imprescritível. Gilmar Mendes, Ives Gandra e o Saulo Ramos poderão perfeitamente construir uma interpretação diferente dessa.

Por quê?
Eles podem dizer que essa formulação no Brasil só vem em 1988, com a Constituição, e o que eu falo para 1978 não serve para 1970. A idéia de que a lei não pode ser retroativa é muito forte no Direito. É uma discussão na qual eu não entro. Defendo a idéia de que o crime de tortura é imprescritível porque afronta a dignidade intrínseca do ser humano. Minha perspectiva é de trabalhar a longo prazo. Daí muita gente se desespera, “não, mas eu estarei morto”. Não importa. Vamos criar estruturas muito sólidas porque daqui a dez anos vamos ter muita informação desses torturadores que hoje não existem.