Análise

O fantasma de 1929

Pouco antes de a maior crise do século 20 produzir desemprego de 30% nos EUA, o pensamento econômico dominante vendia à opinião pública a crença de que o livre funcionamento do mercado conduz ao melhor dos mundos. Já viu esse filme?

Algum tempo antes da “quinta-feira negra”, como ficou conhecido o dia 24 de outubro de 1929, dia do crack da Bolsa de Nova York, relatório da comissão sobre recentes modificações econômicas, coordenado pelo então presidente dos EUA Herbert Hoover, dizia: “Economicamente temos um terreno sem limite à nossa frente; há necessidades novas que abrirão incessante caminho para outras mais novas ainda, à medida que sejam satisfeitas… Parecemos apenas ter tocado na orla de nossas possibilidades”. Essa euforia é típica dos momentos que antecedem a queda.

O capitalismo é um modo de produção que engendra sucessivas crises cíclicas. Antes de uma crise, um longo período de otimismo contamina as expectativas, que costuma indicar um futuro natural de expansão e de crescimento sem fim. “Dessa vez, nada nos deterá!”

O mesmo aconteceu naquele ano que deu início à mais longa crise do século passado e alterou as bases do funcionamento econômico posterior. A crença, à época, era a mesma que o pensamento econômico dominante vendeu à opinião pública atual: o livre funcionamento do mercado conduziria ao melhor dos mundos, à criação incessante de bem-estar para todos. A intervenção do Estado que se seguiu à crise de 29 foi feita com o pragmatismo que acompanha essas situações de crise profunda. Não havia sido escrito ainda (só o fora em 1936) o clássico livro de Keynes, A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda, que fundaria as bases teóricas da política econômica nos países centrais após a Segunda Guerra Mundial.

Voltemos a 1929. Os EUA já eram a maior potência econômica, depois de ultrapassar os ingleses na virada do século 19. A crise eclodiu após um longo ciclo de crescimento (1920-1928), liderado pelas empresas americanas no esforço de reconstrução da Europa depois da Primeira Guerra (1914-1918). As firmas americanas já eram multinacionais com presença na Europa. Estava em desenvolvimento um amplo e popular mercado de capitais nos EUA, com a participação de milhões de pequenos aplicadores. Na indústria, os principais setores eram dominados por poucas e grandes companhias monopolistas/oligopolistas, com enorme capacidade de produção e de formação de preços – que priorizavam elevar as margens de lucro em vez de reduzir preços, até mesmo em momentos de recessão. Esse comportamento conduzia a uma capacidade excedente de produção e à manutenção permanente de alto desemprego. Foi um período de contínua evolução tecnológica, notadamente do motor à explosão e da eletricidade, que ampliava enormemente o potencial produtivo.

Ao primeiro sinal de queda da demanda, decorrente da maior capacidade de produção das empresas européias, que aos poucos se recuperavam da guerra, manifestou-se uma crise de superprodução, típica dessa forma de organização do capitalismo monopolista. Contudo, as crenças nas “forças naturais” de ajuste dominaram a reação do governo americano. Somente em 1933 Roosevelt foi eleito presidente (derrotando Hoover) e mobilizou a nação por meio do “New Deal”, um “novo acordo” para superar a crise. A intervenção do Estado foi a tônica. A revista The Economist de 18 de março de 1939, comentando esse período, afirmou: “O Estado (antes policial apenas) se tornou Papai Noel”. A recuperação da economia americana e mundial só se consolidou com o esforço de guerra em 1937.

Alguns números do período são impressionantes: o PIB reduziu-se quase à metade nos principais países em 1932; estimou-se um crescimento do desemprego de 10 milhões, em 1929, para 30 milhões em 1932, chegando à taxa de 30% nos EUA; a capacidade excedente de fábricas e equipamentos foi estimada em 50% no ano de maior depressão; a receita do comércio internacional retraiu-se para menos de 40% de seu valor em 1929; em 24 de outubro de 1929 foram colocados à venda 16 milhões de títulos, sem que houvesse compradores.

O legado dessa tragédia, por algumas décadas, foi o novo papel do Estado, na regulação da economia e no compromisso com a melhor distribuição da riqueza. Será que a atual crise nos conduzirá a isso?