entrevista

Eu sempre quero encrenca, criança

A jurada Elke Maravilha acha que Roberto Carlos não merece ser rei porque não cuida dos súditos, que Silvio Santos é duas-caras e que Chacrinha era gênio. Já a atriz, que não consegue separar ficção de realidade, está prestes a ser Deus

Rodrigo queiroz

Sou filha de pai russo, nunca vou deixar de brigar pelas coisas em que acredito. Não vou me tornar uma velhinha acomodada. Sou movida pela paixão, vou morrer brigando

A pequena sala do apartamento é a cara de Elke Maravilha. Quase não se nota o tom rosa-shocking das paredes, cobertas por centenas de retratos da atriz, seus amigos e ídolos, como Garrincha e Chacrinha. Uma solitária poltrona divide espaço com carrancas e santos de umbanda apontados para o visitante. Enquanto a entrevistada acerta a maquiagem, Kalunga, um gato gordo, preto, olha desconfiado para o repórter. Elke está na sala. “Olá, criança!” (é assim que se dirige às pessoas, crianças ou não.). De fato, todos parecemos pequenos e frágeis diante do estilo andrógino e hiperbólico da atriz de quase dois metros de altura, com suas longas e grossas tranças douradas e o rosto carregado de maquiagem. Mas Elke, 64 anos, sempre enfrentou tudo de cara limpa. Como Nelson Rodrigues, cultiva um certo desprezo por unanimidades. Daria tudo para tirar as coroas de Roberto Carlos e Pelé e colocá-las em Itamar Assumpção e Garrincha. Jurada dos programas de auditório do Chacrinha e de Silvio Santos, mantém devoção pela primeiro e ojeriza pelo segundo: “Tem gente que é tão pobre, tão pobre, tão pobre que só tem dinheiro”, diz, citando frase do amigo e filósofo popular Pedro de Lara. Elke não ganhou dinheiro – vive modestamente no apartamento do Leme, com o ex-marido Sasha. São oito matrimônios. Se depender do epitáfio de Carlos Drummond de Andrade, também colado à parede, Elke não deve sossegar tão cedo: “O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente”. A seguir, bons trechos de um bom papo com essa mulher que vive o presente como poucos.

No filme Zuzu Angel, seu personagem (vivido por Luana Piovani) tem participação discreta e marcante. Você, em plena ditadura, rasgou na frente dos policiais o cartaz que dava Stuart, filho de Zuzu, como procurado, quando se sabia que ele já havia sido assassinado pela repressão. Hoje você teria a mesma reação, ou não quer mais encrenca?
É claro que eu quero encrenca! Criança, sou filha de pai russo, nunca vou deixar de brigar pelas coisas em que acredito. Não vou me tornar uma velhinha acomodada. Sou movida pela paixão, vou morrer brigando.

Você chegou a ser presa pelos militares…
Sim, tomei tapa na cara e tudo, mas não baixei a guarda em nenhum momento. Fiz de tudo para provocá-los e só não fui torturada porque a Zuzu era amiga do delegado Noronha, um nome forte dentro do Dops (Departamento de Ordem Política e Social). Não fosse por esse pistolão, não sei, não… Provoquei muito os caras…

Que tipo de provocação?
Antes do meu depoimento, comecei a me maquiar dentro da cela. Pintei o rosto inteiro. Minhas sobrancelhas ficaram enormes (risos). E quando começaram com as perguntas eu não me intimidei. Citei o Tribunal de Nuremberg, lembrando que os nazistas haviam sido condenados, que cedo ou tarde “a sujeira iria aparecer”. Eles ficaram furiosos. Começaram a fazer perguntas diretas, agressivas, mas não adiantou. Eu disse a eles que estavam perdendo tempo, pois, mesmo que eu falasse a verdade, eles acabariam mudando o depoimento, inventando tudo. Disse isso e tomei o tapa na cara.

Mas acabou não sendo torturada…
Voltei para a cela com a certeza de que seria torturada no dia seguinte. Pela manhã, uma presa experiente, que sabia tudo o que acontecia, me avisou: “Elke, vai se preparando, pois hoje você vai apanhar”. Fui salva pelo gongo: Zuzu tinha conseguido minha libertação.

Você citou o Tribunal de Nuremberg. No Brasil, alguns consideram que a Lei da Anistia preserva os torturadores de punições; outros defendem que a lei permite ser interpretada de modo a que se reabram investigações sobre os crimes de Estado. Você concorda?
Sim! Eles levaram pessoas como bois para o matadouro e agora não aceitam castigo? Alguém tem de reagir.

Você participou de filmes importantes como Pixote, a Lei do Mais Fraco, do Hector Babenco, Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, Tenda dos Milagres, de Nelson Pereira dos Santos. Grandes cineastas. O que tem achado do cinema brasileiro?
Vai muito bem! Eu sempre sou convidada. Agora mesmo um jovem cineasta mineiro me convidou para interpretar um personagem bem diferente: Deus.

Como?
Sim, Deus. Não posso contar detalhes porque ainda não começamos a filmar. Vamos ver se estarei à altura do personagem (risos). Eu só sei fazer cinema, sempre foi algo muito intenso. Outro dia li uma entrevista do Brad Pitt em que ele dizia ter se divertido fazendo Seven – Os Sete Crimes Capitais. Não acreditei. O cara participou de um filme sobre um serial killer que mata de forma sangrenta as pessoas e se divertiu? Porra, eu sofri muito fazendo Pixote. É um filme pesado, duro, eu não dormia depois das gravações. Não era nada divertido para mim nem para os atores. Em uma cena, o Fernando (Ramos da Silva, que interpreta o personagem-título e, na vida real, envolveu-se com crimes e foi assassinado num conflito com a polícia, em 1987) tinha de enfiar uma faca na minha barriga. Ele dizia para o Babenco: “Não quero matar a Elke, não quero”. E você acha que eu me diverti vendo um menino enfiar a faca na minha barriga? Esses atores americanos são meio malucos. Eu não, eu vivo intensamente os meus personagens. Não consigo separar a ficção da realidade.

Você está há um tempo em cartaz com o espetáculo Elke do Sagrado ao Profano, em que interpreta Luiz Gonzaga, Alceu Valença, Cazuza, Tonico e Tinoco. O que há de sagrado e profano em Elke?
Criança, eu sou as duas coisas. Sou filha de pai russo e mãe alemã, não se esqueça disso. Meu pai era um russo autêntico. Exagerado, que quando amava, amava, quando odiava, odiava. Você pode exigir equilíbrio de um país que tem 11 fusos horários e 150 etnias? Ele era um maluco, um porra-louca, como todo russo.

Já sua mãe…
Era a antítese de meu pai. Controlada, disciplinada, pensava muito antes de dizer algo. Mas alemão também quando perde o controle só faz merda, né (risos)? A figura mais querida da minha família era a minha avó paterna, que era da Mongólia. Uma mulher de espírito cigano, aventureiro, de nunca sentar a bunda em um lugar só.

Seus pais vieram ao Brasil fugindo…
Eu nasci em Leningrado, atual São Petersburgo. Meu pai havia sido preso duas vezes e quase foi morto na cadeia, por fazer oposição ao stalinismo. A família acabou viajando para o Brasil quando eu tinha 6 anos. Lembro-me de pouca coisa. Mas tenho a lembrança de meu pai, que era um sujeito de grande personalidade, à frente de sua época. Quando chegamos, fomos levados diretamente para a Ilha das Flores, no Rio, onde ficavam os imigrantes em quarentena, aguardando o atestado de saúde e um emprego. Ele conseguiu trabalho em uma fazenda em Itabira (MG), mas foi avisado por amigos que não deveria ir, pois lá “tinha muitos negros”.

E qual foi a decisão de seu pai?
Ele resolveu ir. Disse: “Se lá tem muitos negros, eu viro negro”. Eu era uma criança, nunca tinha visto um negro na minha vida. No começo fiquei assustada, mas depois acabei também, assim como meu pai, virando negra. Comecei a usar o cabelo black power antes mesmo de virar moda entre os negros.

Seu pai também usou?
Não (risos). Mas ficou amigo de todo mundo. Era um homem inteligente, sabia que a raça não fazia a menor diferença. Ele queria virar um brasileiro. Fez questão de adquirir hábitos locais, não queria ser um imigrante. Era um homem diferente. Quando eu fiz 10 anos, ele chegou para mim e disse: “Agora você vai começar a namorar”. Foi uma ordem (risos).

E você acatou?
Sim. Arrumei três namorados, os três a pedido do meu pai.

Por que três?
Era uma estratégia de meu pai. Ele achava que com três namorados eu não me envolveria com nenhum, e assim ele não correria o risco de me perder. Inteligente ele, né (risos)?

Você começou a carreira como manequim, mas só se tornou famosa quando foi jurada no programa do Chacrinha, no começo dos anos 70. O Velho Guerreiro faria o mesmo sucesso nos dias de hoje?
O Chacrinha era um gênio. E, por ser gênio, sobreviveria como apresentador em qualquer época. Saberia se reinventar. Não é o caso dos outros apresentadores, que não têm carisma o suficiente para se manter no ar por tantos anos. O Faustão tem carisma, mas não é gênio.

A Globo chegou a pensar em Luciano Huck para comandar as tarde de domingo.
Pelo amor de Deus, criança, vamos respeitar Januário, vamos respeitar o mestre. Pensar em Luciano Huck para comandar um horário que já foi do Chacrinha é uma grande piada.

elkeVocê também foi jurada do Silvio Santos, mas parece não ter o mesmo carinho por ele…
Ele não é uma pessoa legal. É um sujeito de duas caras, que se relaciona com as pessoas de acordo com seus interesses. Foi capaz de comparar Fernando Collor a Jesus Cristo, só por causa do poder. O Pedro de Lara (jurado do programa Show de Calouros, morto em setembro do ano passado, aos 82 anos), que conviveu muitos anos com ele, sempre dizia uma frase se referindo ao Silvio: “Tem gente que é tão pobre, tão pobre, tão pobre que só tem dinheiro”.

O que era mais humilhante, a campainha do show de calouros ou a buzina e o abacaxi? Por que gente simples e sem nenhum talento era selecionada para cantar?
Olha, criança, o Chacrinha era o homem sem preconceitos, o seu programa estava aberto a todo tipo de gente. Mas ele não era sádico com os calouros como se imagina, gostava de ajudar, dava uns toques. E o mais importante: dava liberdade total aos jurados, bem diferente do Silvio Santos, que travava a gente como vaquinha de presépio. Tudo, as notas, as falas, tinha de ser combinado com ele. Os únicos que ele não conseguia enquadrar eram a Aracy de Almeida e eu.

Como era a convivência com a Aracy? Era mesmo ranzinza e durona ou ainda guardava traços da doce intérprete de Noel Rosa?
A Aracy era fantástica, a gente se dava muito bem, pois eu sempre gostei de pessoas verdadeiras. Quer me dar porrada, ótimo. Mas não venha dar facada pelas costas. Uma vez a Aracy quis sair no braço comigo. Só não saiu porque fui salva por oito seguranças (risos). Ela achou que eu estava conspirando, porque eu havia dado a nota máxima para uma jovem cantora, que ela achava que cantava mal. Eu dei a nota máxima e fui acompanhada pelos outros jurados. Ela achou que eu havia combinado só para irritá-la e partiu para cima.

E o José Fernandes (temido jurado que dava nota zero para todos os calouros)? Era mesmo chato ou apenas um crítico severo, exigente?
Ele era daquele jeito mesmo. Não ria nunca, vivia mal-humorado, um sujeito estranho. Mas a gente se dava muito bem. Ele adorava namorar menininhas. Dizia que preferia mulheres “da faixa mais jovem”. E toda vez que eu encontrava com ele nos bastidores, ao lado de uma menina, eu dizia: Zé, olha a faixa… olha a faixa (risos). E ele, puto da vida, dava um sorriso amarelo.

Há uma camisa do Garrincha emoldurada na parede de sua sala. Qual era a sua relação com o Mané?
Fomos amigos. Ele era uma pessoa iluminada, genuinamente pura. Não fazia tipo. Era capaz de grandes gestos. Uma vez fui vê-lo jogar, já no fim da carreira, numa partida amistosa em Bebedouro, interior de São Paulo. Era um evento político, algo do tipo. As pessoas usavam muito o Garrincha para esse tipo de coisa, aproveitando-se de sua ingenuidade. Mas às vezes se davam mal, como naquele dia. No fim do jogo, o Garrincha subiu no palanque, pois havia sido combinado que daria sua camisa para o então governador (biônico) de São Paulo, José Maria Marim. Mas ele não deu a camisa ao governador, que ficou de mãos abanando, completamente sem graça. Deu a camisa dele para mim e ainda disse: “Vou dar a minha camisa para a Elke porque gosto muito dela”. Esse era o Garrincha.

E o “rei” Pelé? Merece o trono?
Não, ele não merece. Rei é o Garrincha, que fazia uma torcedora do Bangu fanática como eu ir ao Maracanã só para vê-lo. O Pelé não é rei. Aliás, todos os nossos reis não merecem a coroa.

Você está falando do Roberto Carlos?
Sim. Como Roberto pode ser rei se ele não cuida dos seus súditos? Rei para mim é o MV Bill (rapper carioca), que tem postura de rei, que luta pelo seu povo e não quer se distanciar dele. Não vive isolado, não vive numa fortaleza.

Você se casou oito vezes. Pretende bater o recorde de Vinicius de Moraes (o poeta se casou nove vezes)?
Sim, não só vou igualá-lo como ultrapassá-lo. Eu casei oito vezes e sou amiga de todos os meus ex-maridos, menos de um, que era um psicopata.

Como assim, psicopata?
Ele era um cara possessivo, perigoso. Uma vez acordei de madrugada e ele estava no sofá, vestido de Elke Maravilha. Um louco.

Como se fosse simples e fácil se passar por Elke Maravilha….
É, eu sou diferente, sempre fui. Minha alma ninguém vai roubar, não.

Está namorando? Está perto de empatar com Vinicius…
Meu último marido, o Sasha, ainda mora comigo. Fomos casados há 11 anos.

Mas você vai conseguir arrumar namorado com o ex-marido morando em casa?
Ué, por que não? Hoje somos apenas parentes (risos).