economia

Crise ainda é o prato do dia

Os preços dos alimentos começam a baixar, mas os trabalhadores ainda não estão livres das conseqüências da jogatina global e de seus efeitos sobre a economia real

jailton garcia

Para muitos, não dá para viver sem, apesar do preço alto. O que poucos sabem é que o produtor não leva nada desse aumento

As últimas pesquisas sobre a inflação mostraram que a pressão sobre os preços dos alimentos começou a ceder, mas as seqüelas deixadas nem sempre são captadas de imediato. Os preços de produtos como arroz e feijão permanecem num patamar bem superior ao do ano passado e nada garante que voltem algum dia aos níveis anteriores.

Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), entre setembro de 2007 e agosto de 2008, o preço do feijão subiu 90,43%; o do arroz, 41,16%; o do óleo de cozinha, 41,90%, e o da farinha de trigo, 37,62%. Na média geral, subiram mais de 15% os preços dos alimentos básicos, enquanto para o Índice do Custo de Vida (ICV) a inflação ficou em 6,97%. Quem mais sofre com essa alta são os mais pobres: o terço da população brasileira com a renda mais baixa gasta em média 38% com a alimentação. Os números de inflação acumulada caíram um pouco com o recuo dos alimentos em agosto: o arroz baixou 3,62%; o feijão, 6,53%; o óleo de cozinha, 4,43%, e o trigo, 4,26%.

A alta dos alimentos é global e relaciona-se a uma série de fenômenos. “Nossa expectativa é de que não há volta”, diz o economista José Graziano da Silva, representante regional da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) para a América Latina e um dos criadores do projeto Fome Zero, que deu origem ao Bolsa Família. A economista Cornélia Nogueira Porto, coordenadora do ICV-Dieese, tem avaliação parecida: “Os preços dos alimentos já estão caindo, mas devagar. E não dá para dizer que vão recuar aos patamares anteriores”.

Graziano lembra que a alta dos alimentos ao longo do último ano tem relação direta com outro aumento de preços no mercado internacional: o do petróleo. O produto influencia o preço dos alimentos não só pelo transporte, mas também porque é utilizado na produção de insumos, como os fertilizantes químicos. O barril chegou a beirar US$ 150, mas já recua em direção aos US$ 100.

“O consumidor está pagando mais, mas o dinheiro não vai para o agricultor. O que subiu foram os insumos, como fertilizantes e agrotóxicos. A rentabilidade de quem planta está mais baixa, o que é ruim porque desincentiva o plantio”, explica Graziano. Isso quer dizer que, para os próximos anos, mais efeitos colaterais são esperados – por enquanto, o Brasil comemora colheita recorde, em função dos altos preços do período em que a safra foi contratada.

A conseqüência, segundo Graziano, será a população mais pobre comer menos e pior. “Quem comprava carne de primeira, passa para a de segunda. Quem comia a de segunda, pára de comer carne e compra alimentos de pior nível nutricional, como o açúcar – cujo preço, aliás, é dos que menos subiram.”

O fator etanol

A alta do petróleo, por enquanto, não afeta diretamente o brasileiro que abastece o automóvel, sobretudo pela política da Petrobras de não repassar imediatamente aos seus preços os reajustes internacionais. Mas há também outro fator segurando os efeitos dessa alta: a expansão da produção de álcool a partir da cana-de-açúcar, que vem tendo sucessivas safras recordes.

O problema é que a área disponível para o plantio de feijão, arroz e outras culturas que vão para a mesa do brasileiro é disputada pela expansão da cana e de outras culturas relacionadas, em alguma medida, à produção de biocombustível, como a soja brasileira e o milho americano, o que pressiona seu preço no mercado internacional.

Graziano chama a atenção para o problema que a alta dos alimentos pode gerar em toda a América Latina, que exporta grande quantidade e ao mesmo tempo tem milhões de miseráveis. Cálculos da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) mostram que a inflação é um fenômeno que afeta a toda a região e que um aumento de 15% nos preços dos alimentos eleva a pobreza na região de 35% para 38%.

Para a FAO, a bola está com os governos da região e do mundo todo, que, nas duas últimas décadas, reduziram muito a ajuda à agricultura, cortando verbas antes gastas na armazenagem de alimentos, por exemplo – o que levou a área cultivada a cair 40% na América Latina. O órgão da ONU avalia que os governos levaram às últimas conseqüências as promessas do mercado de ofertar alimentos abundantes e baratos. Há, ainda, outro problema. No mundo todo, há aumento do consumo dos alimentos, devido ao aumento da população e à melhoria da renda em países populosos como China e Índia – o que leva à pressão por mais grãos também para alimentar animais.

Para produzir um quilo de carne de porco são necessários sete de milho, por exemplo. O resultado é que os estoques internacionais estão em seu nível mais baixo em três décadas. Há cinco anos, destaca o agrônomo Alcido Wander, da Embrapa, o consumo mundial de arroz supera continuamente a produção, o que pressiona os estoques e, por conseguinte, os preços. Para superar o problema, a produção de alimentos precisaria dobrar, estima a FAO.

No Brasil, menos de 10% da área agricultável é efetivamente utilizada, o que leva o governo a apostar no aumento do crédito para a agricultura como forma de aumentar a safra, em vez de adotar medidas como a restrição ou a taxação de exportações de alimentos, potencialmente polêmicas, como demonstraram os conflitos recentes na Argentina entre produtores e o governo de Cristina Kirchner. Persiste, porém, para o país o grande desafio de aumentar essa porcentagem sem atacar a Amazônia.

No caso do feijão, o problema é ainda mais grave, como explica Wander. A principal variedade consumida no país, o carioca, é exclusividade brasileira. “Quando o preço está alto, pela falta do produto, não há como importá-lo, e, quando está baixo, não há como exportar o excedente”, explica o agrônomo. Outra peculiaridade do feijão carioca: depois de cerca de quatro meses armazenado, ele escurece, o que reduz sua aceitação pelos consumidores. Para Wander, o país deveria diversificar o produto, incentivando aqui variedades como as cultivadas nos EUA, México e Argentina.

Enquanto uma maioria se preocupa, um pequeno grupo lucra. Os analistas têm observado que, com a crise no mercado imobiliário americano no ano passado, uma parte do dinheiro antes aplicado ali foi repassada para o mercado futuro de commodities, inclusive os alimentos. Descontadas as incertezas globais, o problema é que o fenômeno agora corre o risco de afetar o trabalhador brasileiro duplamente. Os preços subiram, e o Banco Central declarou que teria de conter a inflação, por isso, agora vem subindo os juros básicos da economia. “É a ‘segunda onda’ de problemas, que só vai aparecer mais à frente. Haverá menos investimentos e, assim, além de ter de encarar preços mais altos, a população ainda corre o risco de cair no desemprego”, resume Graziano.