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Bomba: ela volta a nos assombrar

Tiremos das estantes os empoeirados romances de ficção que falavam do perigo de um fim do mundo depois de uma guerra nuclear: as bombas estão de volta, e até um tanto na moda

FRED DUFOUR/AFP PHOTO

Os habitantes da cidade de Bollene, numa região pesqueira do sudoeste da França, estão proibidos de usar água natural e de pescar. Sua fonte de energia, a usina de Tricastin, virou sua desgraça

No dia 7 de julho de 2008 um pequeno acidente nuclear aconteceu na usina de Tricastin, operada pela empresa Areva, no sudoeste da França. Pequeno, porque não se tem notícia, até agora, de que o evento tenha causado alguma morte nos arredores. Mas as conseqüências imediatas dão uma idéia do que pode vir a ocorrer. O acontecimento principal foi o vazamento de líquido radioativo de um tanque usado para guardar urânio não enriquecido. Oito galões vazaram. O líquido, além de atingir o terreno próximo, contaminou dois rios da região. Resultado: foi proibido por tempo indeterminado o uso da água natural da região tanto para beber quanto para qualquer uso doméstico ou de irrigação de plantações. Também foi proibida a pesca, numa região conhecidamente piscosa. Quer dizer: inviabilizou-se a vida.

Agora, imagine uma guerra, com armas nucleares sendo usadas por um, dois ou até mais lados. Segundo os técnicos, há dois tipos de guerra com armas nucleares que podem ser imaginados. Uma tática, outra estratégica. Na guerra tática, armas nucleares são usadas para prejudicar o potencial bélico do inimigo: atingem-se instalações militares, áreas industriais estratégicas, centros de comunicação e serviços. Dezenas, talvez centenas de ogivas, bombas e mísseis são mobilizados. Na estratégica, o ataque é maciço e visa destruir o país inimigo, inviabilizando-o como nação e matando vastos contingentes de sua população civil. Centenas, milhares de artefatos são mobilizados. Muitos analistas dizem que a guerra tática é uma guerra estratégica a prestação: uma vez iniciada, conduz necessariamente à segunda.

Os únicos bombardeios com armas nucleares realizados foram os das cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki, pelos Estados Unidos, em 6 e 9 de agosto de 1945. Eles foram ao mesmo tempo táticos e estratégicos. Foram táticos em relação ao Japão: visavam mostrar ao governo japonês o que aconteceria se não se rendesse incondicionalmente. Foram estratégicos em relação às duas cidades. A destruição foi total. Na primeira, morreram 140 mil pessoas de imediato; na segunda, 80 mil. Entretanto, as mortes continuaram, por gerações, devido aos ferimentos ou doenças adquiridas com as explosões, como vários tipos de câncer e malformação genética dos descendentes dos atingidos. Muitos sobreviventes do ataque em Hiroshima fugiram para Nagasaki: foram bombardeados duas vezes.

Na Guerra Fria que se seguiu, o perigo nuclear deixou-se vislumbrar algumas vezes, sempre que Estados Unidos e União Soviética ameaçavam confrontar-se. O momento de maior risco foi a crise de agosto de 1961. Em Berlim, então dividida pelo seu famoso muro, um dos maiores pontos de contato e passagem entre Oriente e Ocidente era conhecido como Checkpoint Charlie. Havia uma controvérsia sobre se diplomatas do lado ocidental (sobretudo norte-americanos e britânicos) podiam ou não ser parados por patrulhas soviéticas para controle do lado oriental da cidade. O desentendimento ocasionou uma série de tentativas dos ocidentais de forçar a passagem para ver quem tinha razão. Tal fato resultou numa concentração de forças de infantaria no local, o que, a partir das 17 horas de 27 de outubro, somava 50 blindados de cada lado da linha divisória, além de algumas centenas nos arredores.

Do lado norte-americano a Força Aérea foi posta em alerta, e do lado soviético isso deve também ter ocorrido. Havia dedos coçando gatilhos. Se houvesse um confronto, ataques táticos com armas nucleares seriam tentados. A crise só se desfez no dia seguinte, depois de uma conversa ao telefone entre o presidente John Kennedy, de um lado, e o primeiro-ministro Nikita Kruschev, do outro. Um a um, os tanques de ambos os lados foram deixando suas posições.

Outro momento de grande tensão deu-se no ano seguinte. Em 1962, os EUA instalaram bases de mísseis na Turquia, perto da URSS. Em retaliação, os soviéticos começaram a instalar mísseis em Cuba, a 144 quilômetros da costa norte-americana. Novamente, depois de momentos de mútuas ameaças, os mísseis foram retirados de Cuba e as projetadas bases norte-americanas então ficaram mais no papel do que na Turquia.

E=MC2 , onde tudo começou
Poder de destruição imenso contido num pequeno volume. Essa é a principal diferença entre uma bomba atômica e uma convencional. A equação de Albert Einstein, ironicamente um pacifista, foi a base teórica para o desenvolvimento da bomba. Com ela sabe-se que mesmo uma reduzida quantidade de massa de átomos (M) guarda muita energia (E), pois seu peso será multiplicado pela velocidade da luz ao quadrado (C2). Quando os cientistas conseguiram romper o núcleo dos átomos de urânio e plutônio, estava criada a bomba. O que ninguém previa em 1945, quando foram detonadas as primeiras bombas de fissão nuclear, é que a radiação decorrente do processo continuaria a matar por muitos anos após a explosão.

Fim do sossego

Com a desagregação da União Soviética e o fim da Guerra Fria, o perigo nuclear parecia conjurado. Mas ele está de volta, e sob diferentes maneiras. Formalmente, existem cinco países que são os “estados nucleares”: EUA, Rússia, Grã-Bretanha, França e China. Assumidamente, há ainda outros três que se capacitaram para a produção de armas nucleares: Índia, Paquistão e Coréia do Norte. Israel, tido como possuidor de armas nucleares, nega sempre. A África do Sul foi o único país que de fato desmantelou seu arsenal depois de possuí-lo: foi construído durante o regime do apartheid e destruído após seu fim. Há outros países candidatos a ter um arsenal, ou assim acusados, como Irã, atualmente, ou Líbia, num passado recente. Além disso, há países associados, isto é, que abrigam armas de outro país: hoje isso só acontece com armas dos Estados Unidos, distribuídas em bases da Bélgica, Itália, Alemanha, Holanda, as quais também já estiveram na Turquia, Grécia e Canadá.

O número de armas ativadas diminuiu de cerca de 70 mil no século passado para 20 mil neste século. Mas a esmagadora maioria dessas armas é de ogivas de mísseis que não foram destruídas, apenas desativadas e estocadas em “estado adormecido”. Entretanto, há novos perigos no ar. O primeiro deles é a reativação da Guerra Fria. A Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) continua perseguindo seu objetivo de cercar a Rússia, como herdeira da finada União Soviética. Recentemente, os Estados Unidos assinaram tratados com a Polônia e a República Tcheca para instalação de bases de radares e mísseis em seus territórios (que devem ainda ser ratificados pelos parlamentos). O alegado alvo é o Irã. Mas a Rússia não engoliu a pílula, e declarou que se sente ameaçada pelos tratados e por isso reagirá para além da diplomacia, reafirmando, inclusive, seu poderio nuclear.

Há também dois novos perigos. Um deles é a formação de verdadeiras quadrilhas internacionais para captação e venda de material, planos, plantas e informações sobre armas nucleares. Espionagem e armas nucleares sempre andaram juntas. O episódio mais famoso foi o controverso caso do casal Rosenberg, Julius e Ethel, acusados de, com a cumplicidade de cientistas e militares, ter repassado informações para os soviéticos (ainda durante a Segunda Guerra) sobre o projeto Manhattan, que levou à construção da bomba norte-americana. Num julgamento apontado como farsa anticomunista, e até anti-semita, por muitos intelectuais e militantes (entre eles Jean-Paul Sartre, Dashiel Hammett, Nelson Algreen), o casal foi condenado à morte e executado em 1953. Na época as motivações eram ideológicas. Agora não se prendem muito mais aos pequenos e problemáticos nacionalismos locais, quando não a questões de ordem diretamente financeira.

Na década de 1970, o cientista Abdul Qadeer Khan repassou planos de enriquecimento de urânio da empresa Urenco, da Holanda, para seu país natal, o Paquistão, para que este pudesse enfrentar a Índia. A rede montada por Khan prosperou. Alcançou bases para operar em três continentes e começou a negociar a transferência de tecnologia para a Líbia (que em 2003 desistiu de seu armamento nuclear), numa operação megamilionária.

Desmantelada a rede pelos serviços secretos norte-americano e europeus, apenas um de seus membros está indo a julgamento, o alemão Gothard Lerch, preso em Stuttgart. Os outros estão enredados ou desenredados numa complexa articulação de agentes duplos e infiltrações que, se revelada, vai trazer muita sujeira à tona dos próprios serviços secretos da Europa e dos Estados Unidos, não se sabendo ao certo quem negociava, fazia e espionava o que e para quem. O fim era um só: ganhar muito dinheiro. A situação é tão ruim que o noticiário da imprensa dá conta de que só o governo suíço destruiu 30 mil documentos relativos ao caso no ano passado, “por razões de segurança”.

A última ameaça vem de casos como o recente enfrentamento entre tropas da Rússia e da Geórgia, da ex-União Soviética, hoje aliada dos Estados Unidos. É claro que o governo da Geórgia decidiu ocupar militarmente a região da Ossétia do Sul, junto à fronteira russa, na esperança de que tropas da Otan viessem em seu socorro (ou que também houvesse algum tipo de intervenção de seus outros aliados, Israel e União Européia). Para cada soldado das tropas georgianas na região havia 48 soldados russos! No confronto que se seguiu, correu-se o risco de norte-americanos (que já estavam na Geórgia participando até de exercícios militares com o exército local) e russos se enfrentarem, o mesmo risco de conseqüências imprevisíveis que se correu em 1961.

Portanto, tiremos das estantes os empoeirados romances de ficção científica que falavam do perigo de um fim do mundo depois de uma guerra nuclear: as bombas estão de volta, e até um tanto na moda.

Guerra: sua razão de existir
A Otan é uma organização militar dos países do bloco capitalista criada em 1949, contrapondo-se ao Pacto de Varsóvia, organismo militar socialista surgido após a Segunda Guerra. Enquanto o Pacto de Varsóvia, liderado pela ex-URSS e integrado por países do Leste Europeu se dissolveu no início dos anos 1990, a Otan existe até hoje. Já contava com Alemanha, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Espanha, EUA, França, Grécia, Holanda, Islândia, Itália, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Reino Unido e Turquia, ganhando posteriormente a adesão de Hungria, Polônia, República Tcheca, Bulgária, Estônia, Letônia, Lituânia, Romênia, Eslováquia e Eslovênia, que compunham o antigo bloco comunista.