Viagem

Vim, vi e venci

Um território de diversidades reúne personagens que há 20 anos deixaram sua região de origem para começar vida nova no mais jovem estado da União

Otavio Valle

Diz a lenda que, quem botou os pés no Rio Tocantins uma vez, nunca mais quer sair

O relógio marca 18h45 e o sol ainda esquenta. Nas areias da praia da Graciosa a bola rola. O jogo é disputadíssimo. Do lado de fora, Fernando e Cabelo aguardam. Os dois peladeiros estão no mesmo time para a próxima partida, mas nunca se viram. Fernando é comerciante de Brasília. Cabelo, de Pernambuco, se intitula “hippie”. Além da paixão pelo futebol na praia, têm outra coisa em comum: foram tentar uma nova vida em Palmas, capital do estado do Tocantins. A cidade e o estado são assim. Em cada lugar há alguém de alguma parte diferente do país. Criado pela Constituição de 1988, o mais novo estado da República vai completar 20 anos no mês de outubro, e sua história se confunde com a de milhares de trabalhadores que foram tentar a sorte por lá.

Nas escadarias do suntuoso Palácio do Araguaia encontro Arisoli Gomes Pereira, 64 anos. Vidraceiro, pisou pela primeira vez em Palmas quando ainda nem era cidade. Na futura capital havia apenas uma área terraplenada no meio do cerrado, com máquinas, homens e acampamentos. “Não tinha nada aqui. Nem energia. Você olhava para um lado só via gado passando; do outro, só mata.”

Palmas foi construída no centro geográfico do novo estado, região onde predomina o cerrado, numa área entre o Rio Tocantins e a Serra do Carmo. E inaugurada oficialmente em 1º de janeiro de 1990. Meses depois, em maio, seu Ari chegou de Campo Grande, com um filho. Não faltaram janelas e portas para instalar vidros. “Fui o primeiro aqui. Coloquei vidro em tudo que é casa. Até os vidros deste palácio”, conta, apontando para a sede do governo estadual. Além de enfrentar o clima de duas estações, verão chuvoso e inverno seco, e as temperaturas acima dos 30 graus durante o dia, na época em que seu Ari chegou não havia telefone, o custo de vida era altíssimo e os meios de transporte eram um desafio. “Pra telefonar, a gente tinha de ir para Porto Nacional, a 60 quilômetros. Pra chegar em Goiânia demorava uns dois dias e os ônibus quebravam no caminho.” Hoje a viagem de 890 quilômetros leva cerca de 12 horas e a cidade possui rodoviária e aeroporto modernos.

O vidraceiro viu centenas de pessoas desistir do sonho de construir Palmas: “O pessoal não suportava a distância, a poeira, o calor e as muriçocas”. Com ele foi diferente. Em menos de um ano chegaram a mulher – professora, que em janeiro de 1991 já estava lecionando – e outros cinco filhos. A vida nova vingou. “Aqui eu fui o homem mais feliz do mundo”, orgulha-se. O Tocantins só não foi perfeito para Arisoli porque perdeu um filho. Túlio, de 34 anos, era seu companheiro de pescaria. Capitão da polícia, um dia mergulhou para pegar um molinete caído no lago e nunca mais apareceu. “Ele era muito bom, nadava bem, mas a água gosta é daquele que é bom.”

Arco-íris

As mesmas águas que levaram o filho de Ari trouxeram vida nova para a maranhense Francine Rodrigues, 39 anos. Com a irmã Lusimar, 47 anos, tem uma barraquinha de bebidas e petiscos na praia das Arnos. A praia de rio é uma opção de lazer já tradicional no jovem estado. Com o enchimento do lago a partir da construção da barragem da usina hidrelétrica de Lajeado no leito do Tocantins, novas praias foram criadas ao longo da orla, que fica à margem direita do rio. O perímetro do lago tem um percurso de 630 quilômetros. “Eu vim de Imperatriz (MA) em 2005 visitar a minha irmã. Queria ficar apenas uns 15 dias, mas estou aqui até hoje”, conta.

Fran é manicure num salão de beleza durante o dia. À noite abre a barraca e serve cervejas, salgados e caldos. O que a prendeu nas areias escaldantes de Palmas foi a qualidade de vida: “Dá pra pescar, comer um peixinho, tomar sol. À noite a coisa ferve”. E ferve mesmo. Se a capital, com suas ruas largas, quadras distantes, de um ar quase desértico, parece esconder seus 200 mil habitantes, os shows de forró, “brega do Pará”, reggae e pop à beira do lago lotam a praia das Arnos aos domingos.

O público mostra a diversidade do Tocantins. A manicure fala em terceira pessoa com muito orgulho: “A Barraca da Fran é o ponto de encontro GLS da praia”. As cores do arco-íris que incidem sobre a barraca refletem também as telas do artista plástico paraibano Antônio Netto, de 36 anos, no Tocantins desde 1996.

A propagação de cultura e conhecimento levou também a Palmas o professor Aurélio Picanço, 32 anos, de Belém. O jovem doutor em engenharia sanitária ingressou por meio de concurso na Universidade Federal do Tocantins, ativada em 2003. Aurélio já conhecia o estado, pela janela do ônibus que o levava de Belém a São Carlos (SP), onde fez o doutorado. “Nunca imaginaria viver aqui.” Agora, não passa pela sua cabeça sair. “Vou com minha esposa visitar os parentes em Belém, e depois de uma semana não vejo a hora de voltar pra casa. A lenda diz que, quem botou os pés no Rio Tocantins uma vez, nunca mais quer sair. Acho que é verdade!”, sorri o hoje diretor administrativo da universidade.

Noite de feira

A despeito da pouca variedade de opções como teatro ou cinema – há apenas duas salas na cidade –, a atividade de lazer imperdível de Aurélio é a feira. Diferentemente das feiras livres tradicionais no Brasil, Palmas possui um circuito de feiras montadas em quadras especiais distribuídas pela cidade. Devido ao calor, funcionam das 19h ao meio-dia. E os palmenses, muito além das compras, as freqüentam como a um evento social. A feira tem produtos de todos os lugares do país e é ponto de encontro de amigos. “Palmas é assim. Você faz amigos e conhece pessoas com facilidade. Aí, um dia você vai jantar na casa de um amigo pra comer tutu. Outro dia é pato no tucupi, do Pará. No outro é comida com pequi, de Goiás”, diz o professor.

Sua vizinha de quitinete, a dentista Daniela Carvalho Tosin, 36 anos, em pouco tempo se tornou uma amiga. E, graças a outros novos amigos que fez, Daniela descobriu uma paixão: o triatlo. “Palmas é favorável para o esporte. Dá pra nadar, correr e pedalar. Tem as praias, a serra ou a própria Avenida Theotônio Segurado, que permite pedalar uns 20 quilômetros”, afirma. Daniela nasceu em Piracicaba, graduou-se em Campinas e se especializou em Cirurgia e Traumatologia Bucomaxilar em Bauru (todas em SP). Passou alguns anos no México e aceitou ir trabalhar no Tocantins. Divide-se entre o trabalho no Hospital Geral de Palmas (HGP) e o Centro de Reabilitação de Anomalias Faciais do Tocantins (Craft), em Araguaína, a 376 quilômetros, que atende pacientes do Tocantins, Maranhão, Pará e Amazonas e é centro de referência da especialidade na Região Norte.

O setor da saúde está em expansão. A brasiliense Keliane de Lisboa Paiva desembarcou em Palmas em 16 de dezembro de 2007, por não conseguir emprego de auxiliar de enfermagem em sua cidade. “No dia 17 estava trabalhando no Hospital Cristo Rei. E um mês depois consegui vaga melhor no HGP”, diz. Keliane espera ainda este ano entrar na faculdade de Enfermagem. “Tem muita oportunidade. Já falei com as minhas amigas de Brasília para virem. Se Deus quiser, só volto pra lá a passeio.”

Loiri Maronezi, paranaense de Francisco Beltrão, acreditou no potencial do novo estado, mas foi mais cauteloso. Comprou terreno em 1998 e esperou a cidade se desenvolver. Quando inaugurou sua churrascaria, em 2002, a maioria dos empregados era sulista. “Hoje 65% do pessoal é daqui”, afirma. Grande parte dos maitres, garçons e churrasqueiros trazidos do Sul por Loiri fixou residência no estado e acrescentou ingredientes à cultura local. O paranaense abriu o negócio de olho no público formado por deputados, secretários, prefeitos do interior, altos funcionários públicos. Hoje vive com a mulher, Silmara, e a filha Valentina em Palmas. “Vi muita gente ir embora sem nada. Quem vive aqui vem de outras cidades e conhece muita coisa. Quem não conhece o ramo não sobrevive. É uma cidade diferente”, conclui.

E as diferenças ali se convergem. Cada novo imigrante traz um pouco de sua origem. E faz de Palmas uma cidade bem brasileira.

Separar ou não separar?
Espelhados pelas experiências dos desmembramentos de Mato Grosso e Goiás, que geraram Mato Grosso do Sul e Tocantins, grupos políticos há décadas propõem no Congresso a criação de novas unidades federativas. No começo da atual legislatura tramitavam 18 projetos. Alguns se fundiram e outros acabaram arquivados, como o revival da extinta Guanabara e os curiosíssimos estados de São Paulo do Leste, Minas do Norte e Triângulo. Ainda estão no páreo 11 projetos. Se eles vingassem, surgiriam os estados do Tapajós e Carajás, na Região Norte; Araguaia e Mato Grosso do Norte, no Centro-Oeste; e Maranhão do Sul, Rio São Francisco e Gurguéia, no Nordeste. Pleiteiam-se ainda os territórios federais do Rio Negro, Juruá, Solimões e Oiapoque, todos na Amazônia Legal.

Os sete novos estados gerariam, por exemplo, 21 novos senadores e pelo menos 56 deputados federais. Os quatro territórios acrescentariam à Câmara outros 16 parlamentares. Viriam ainda os sucessivos gastos para a instalação das Assembléias Legislativas e todo o aparato administrativo e burocrático, com uma série de órgãos governamentais, tanto estaduais como federais.

De acordo com um estudo realizado pela arquiteta e urbanista Ana Tereza Sotero Duarte, consultora técnica da Câmara Federal, o Tocantins é o estado que mais cresce no país. De 1990 até 2005 o PIB tocantinense cresceu três vezes mais que o do Brasil, com média de 7,82% ao ano. Contudo, é apenas o 24º PIB estadual, com apenas 0,42% do volume nacional. O índice de desenvolvimento humano (IDH) do estado, que em 1991 era de 0,560 (19ª posição no ranking nacional), subiu para 0,710 em 2000 (17ª).

A criação de qualquer nova unidade da federação, antes de atender a alguma demanda política, deve pesar conseqüências sociais, humanitárias, econômicas e estratégicas. Por exemplo, o recorte de uma das áreas mais pobres do Piauí, para a criação do estado do Gurguéia, quanto custaria aos cofres da União? Quem ganharia com isso?