justiça

O colarinho branco

Essas modalidades de crime são regra, e não exceção. Vão da trivial evasão de divisas, com ou sem lavagem de dinheiro, à manipulação da principal taxa de juros do mundo

Quanto mais imponente é a sede de um banco, mais malandragens ele pode estar escondendo. Muitos e muitos bancos, antes do Opportunity, foram indiciados por crimes financeiros. Recentemente, antes do caso Daniel Dantas, foram processados Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos, e executivos brasileiros da União dos Bancos Suíços (UBS). Antes deles, além de Salvatore Cacciola, do Marka, foram enquadradas famílias tradicionais, como os Calmon de Sá, do Econômico, na Bahia, e os Magalhães Pinto, do Nacional, de Minas Gerais. Com a exceção do UBS, todos esses imponentes bancos viraram pó. E com a exceção de Cacciola, que fez a besteira de fugir, nenhum desses banqueiros está preso.

O mais comum crime do colarinho branco é a remessa ilegal de dólares para o exterior, de onde retornam ao Brasil travestidos de aplicações de estrangeiros, isentas de impostos. Por isso, há quase sempre um doleiro envolvido. O próprio Banco Central estimulou a malandragem, ao dar isenção de imposto de renda aos estrangeiros. Passa por trouxa o banqueiro que não usar esse truque.

Mas a evasão de divisas é fichinha frente à recente denúncia publicada pelo Wall Street Journal de que bancos respeitáveis manipularam a principal taxa de juros do mundo, a chamada taxa Libor (pronuncia-se “láibor”; a sigla vem de London Interbank Offered Rate, taxa de oferta do mercado interbancário de Londres). A Libor incide sobre a maior parte dos financiamentos internacionais, incluindo boa parte da dívida externa brasileira. Um estoque de capital estimado pela Associação Britânica dos Bancos (ABB) em US$ 350 trilhões. Apesar de grave, a denúncia do Wall Street foi espremida em cantos de página nos nossos jornais de referência nacional. Apenas o especializado Valor Econômico deu o destaque merecido.

O uso da taxa Libor nos empréstimos de longo prazo para países periféricos foi uma invenção diabólica do banqueiro britânico Minos Zombanakis, lá pelo final dos anos 1960. Com a expansão frenética das multinacionais americanas, havia muitas transações em dólares passando por filiais européias de bancos americanos e até bancos ingleses e japoneses. Como se aproveitar desses depósitos que às vezes ficavam parados uma semana, um mês?

Os banqueiros bolaram o chamado “empréstimo sindicalizado”, no qual vários bancos entravam cada um com uma fatia, formando um grande bolo para ser emprestado. Com a ajuda obsequiosa do Banco Mundial e do FMI, convenciam governos do chamado Terceiro Mundo – entre os quais o Brasil – a tomar empréstimos gigantes para grandes “projetos de desenvolvimento”. Coisa de US$ 1 bilhão para cima. Para reforçar o “convencimento”, ofereciam comissões e bônus irresistíveis aos negociadores desses países.

O pulo-do-gato dos contratos estava na taxa de juros: muito sagaz, Zombanakis inventou um contrato padrão que obrigava o tomador a pagar, nas datas de vencimentos dos juros, em geral duas vezes por ano, a taxa mais alta do mercado naquele dia, aquela que os bancos eram obrigados a pagar quando se socorriam mutuamente por apertos de caixa. Essa era a Libor. Seu valor médio era publicado na manhã seguinte no jornal Financial Times.

Com esses contratos, todo o risco ficava com o cliente. Além de aplicar a empréstimos de longo prazo uma taxa formada no curtíssimo prazo, o que já é uma malandragem, se houvesse de repente uma crise de liquidez braba, faltando dinheiro em muitos bancos, e a taxa desse um salto, o tomador trouxa antecipadamente já havia se comprometido a cobrir a alta.

E foi o que aconteceu. Depois da segunda crise do petróleo, os americanos levaram a taxa de juros do dólar a 15% e até 18% ao ano – e a Libor acompanhou, subindo à estratosfera. A dívida externa brasileira se tornou impagável. A taxa de juro ficou maior que a taxa de retorno do capital das empresas que haviam tomado os empréstimos. Algo semelhante ao que aconteceu com os mutuários do antigo Banco Nacional da Habitação (BNH), que ficaram inadimplentes quando a correção monetária das prestações ficou maior do que os reajustes de salários. Quebraram as empresas que tomaram os empréstimos inventados por Zombanakis e quebrou o Brasil, por falta de dólares para cobrir as remessas extravagantes de juros. Foi preciso pedir moratória e em seguida negociar um reescalonamento da dívida.

O desastre levou-me a escrever um livro sobre a dívida externa, em parceria com a jornalista inglesa Sue Branford (A Ditadura da Dívida, ed. Brasiliense, 1987). Ao estudar, logo depois, o contrato de reescalonamento, uma maçaroca de mais de 100 páginas, fiquei espantado com a cláusula dos juros: continuava sendo a Libor, e quem comunicava qual havia sido a Libor média do dia eram os próprios bancos credores. O Chase, o Lloyds, o Morgan Guarantee, o Citi… Um escândalo.

Para o meu pós-doutorado em Londres, em 1991, propus como projeto de pesquisa ao CNPq averiguar se poderia haver manipulação da Libor. Era muito simples. Se a taxa era formada pela média das taxas de transações entre bancos e depois aplicada aos títulos da dívida, a alguns bancos bastava inflar transações entre si no dia do vencimento de grandes parcelas de juros para engordar seus ganhos.

Ao consultar o professor da Faculdade de Economia e Administração da USP Stephen Kanitz, ele disse que corria no mercado o boato de que havia uma “hora do Brasil”. Era a hora de determinação da Libor, que iria prevalecer sobre os pagamentos de juros da dívida brasileira. Para minha pesquisa, Kanitz indicou um grande especialista no mercado financeiro de Londres, Job Matts.

Quando expliquei a Matts meu projeto ele riu na minha cara. Acusou minha teoria de conspiratória. “É totalmente impossível manipular o mercado interbancário de Londres”, disse ele, porque são milhares de tomadores e emprestadores.“A rainha da Inglaterra toma dinheiro nesse mercado,” disse, referindo-se metaforicamente ao Banco da Inglaterra. Desacorçoado, ainda gastei uns meses na biblioteca da London School of Economics levantando bibliografia e estudando o mercado do dólar. Mas aos poucos fui substituindo o projeto por outro, mais factível no prazo de um ano. Hoje me arrependo. Deveria ter sido mais persistente.

É essa taxa, “impossível de ser manipulada”, que foi falseada por grandes bancos. Apertados pela crise das hipotecas americanas, para esconder o seu sufoco, os principais bancos de Londres informavam à ABB taxas inferiores às que estavam de fato pagando. O especialista do Citicorp nesse mercado, Scott Peng, estimou a diferença em até 0,3 ponto percentual. No mês passado a ABB, numa admissão tácita de que houve manipulação, ampliou o painel de bancos informantes da taxa Libor e introduziu vários novos mecanismos de controle e rechecagem. As novas regras estão em www.bba.org.uk.

É verdade que os bancos manipularam a Libor para baixo – para esconder a gravidade de sua crise de liquidez. Mas quem pode manipular para baixo pode manipular para cima. Imaginem quando a dívida externa brasileira era da ordem de US$ 130 bilhões, sendo 60% dela referenciada na Libor? Um empurrãozinho de 0,3% na taxa teria inflado nossa conta anual de juros em mais de US$ 200 milhões. Se aconteceu ou não, nunca se vai saber. Mea culpa.