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Obama, origem e destino

Parece mentira, mas a origem política de Barack Obama tem a ver com os chineses, e é possível que o seu destino também dependa deles

MANDEL NGAN/afp

Barack Obama reivindica ser o “candidato de uma nova geração”. Construiu sua vida política já sobre os escombros da Guerra Fria, não sobre a construção desses escombros nem sobre a derrota no Vietnã

Barack Obama tornou-se o primeiro fenômeno eleitoral norte-americano do século 21. Quando o jovem senador pelo estado de Illinois candidatou-se à indicação do Partido Democrata para concorrer ao cargo mais poderoso do mundo, quase ninguém acreditou que pudesse chegar lá. A candidatura fez estremecer os alicerces do partido político que reivindica ser o mais antigo do mundo moderno. As previsões davam como certa a vitória de Hillary Clinton nas consultas partidárias que elegem os delegados para a convenção que definirá o candidato da legenda. Mas a senadora por Nova York vem sendo colocada contra a parede desde a primeira disputa, no estado de New Hampshire.

Barack tem uma fulgurante e meteórica, original e surpreendente biografia política. Nasceu em agosto de 1961, no Havaí, em pleno Pacífico, mas sob a bandeira dos EUA, filho de um queniano, Barack Obama Senior, e de mãe nascida no estado do Kansas, Ann Dunham. Barack Senior fora para o Havaí em busca de estudos universitários que dificilmente teria em sua terra natal. Pouco depois do nascimento do filho, os pais se separaram e ele foi para Jacarta, na Indonésia, com a mãe, que se casara de novo. Quando voltou aos EUA, já era um cidadão do mundo. Mais precisamente, do outro lado do mundo, não aquele das altas classes médias ou da burguesia americana concentradas nas margens do Atlântico Norte.

Barack tinha 2 anos quando John Kennedy foi assassinado e 7 quando o irmão deste, Robert, e Martin Luther King foram mortos. Completava 14 quando a maior potência militar do mundo teve de reconhecer a derrota no Vietnã. Em 1964, aos 16 anos, Hillary fizera a campanha de um dos mais reacionários candidatos à Presidência dos EUA, o republicano Barry Goldwater, que combatia comunistas e ativistas dos direitos civis por igual. Depois se converteu, parece que movida pela pregação de Martin Luther King, e entrou para o Partido Democrata. Em 1975, o candidato atual do Partido Republicano, John McCain, tinha 39 anos, estava prisioneiro de guerra no Vietnã do Norte, depois de ver abatido o caça com que bombardearia o inimigo.

Barack Obama reivindica ser o “candidato de uma nova geração”. Construiu sua vida política já sobre os escombros da Guerra Fria, não sobre a construção desses escombros nem sobre a derrota no Vietnã. Sua carreira política desenrolou-se na esteira das sucessivas vitórias do capitalismo norte-americano no plano internacional, depois do fracasso de 1975. Fez brilhante carreira universitária, foi o primeiro editor negro da revista Harvard Law Review, na universidade onde estudou, participou da campanha de Bill Clinton em 1992. Foi professor da Universidade de Illinois, em Chicago, militava no campo dos direitos civis e era advogado do influente escritório Miner, Barnhill & Galland.

Em 1995 Obama lançou seu primeiro livro, Dreams from My Father: a Story of Race and Inheritance (“Sonhos de meu pai: uma história de raça e herança”). Em 2006 emplacou seu primeiro grande sucesso de vendas: The Audacity of Hope: Thoughts on Reclaiming the American Dream (A Audácia da Esperança, publicado pela Larousse do Brasil). No mesmo ano, a versão em áudio de Dreams from My Father… ganhou o Prêmio Grammy de melhor livro no gênero. O terceiro livro obteve o mesmo êxito que o segundo: It Takes a Nation: How Strangers Became Family in the Wake of Hurricane Katrina (“É preciso uma nação: como estranhos se tornaram uma família depois do furacão Katrina”). E o segundo livro, em áudio, ganhou o Grammy deste ano.

Obama tornou-se o antípoda dos últimos presidentes norte-americanos, como Ronald Reagan, Bush pai, Bush filho, até mesmo Bill Clinton e antes Jimmy Carter, ambos democratas. Intelectual, carismático, militante de suas idéias, criou um perfil muito distante dos pragmáticos, terra-a-terra, nada brilhantes antecessores. A colunista do Wall Street Journal Peggy Noonan, que já foi ghostwriter de Reagan, publicou artigo em que criticava o que chamou de falta de foco do jovem político. E listava adjetivos com que seus admiradores o cercavam: brilhante, eloqüente, novo, excitante, meu cara favorito, carismático. Tudo aquilo que a corte cinzenta de seus antecessores nunca foi, e nem Hillary, nem McCain prometem ser. Peggy Noonan citava um estudante universitário a quem perguntara por que ele apoiava Obama, e a resposta foi: “Porque ele não é um desses caras de Washington”.

De um lado, isso significa que Obama nunca se envolveu em escândalos pessoais ou políticos como os que existiram nas administrações de Clinton e de Bush filho. Mas de outro aponta para o fato de que há uma nova geração de participantes jovens da política norte-americana que não se identifica com as velhas estruturas de democratas e republicanos, e sim com o “novo” Obama e seu apelo: “Change” – que, na língua inglesa, significa tanto o substantivo “mudança” como o imperativo “mude”.

Quem são esses jovens? São os que crescem num mundo assolado, assombrado e maravilhado pelos chineses, os protagonistas do novo imperialismo que vai invadindo terrenos que antes eram prerrogativa dos EUA e de seus aliados europeus, como África e América Latina. Sim, os chineses, que vão desestabilizando economias e esperanças (de emprego) com seus produtos baratos, frutos de um capitalismo predatório que aprenderam com… os Estados Unidos, vencedores da Guerra Fria. As pessoas nessa circunstância querem a reversão de tudo aquilo que o Consenso de Washington abriu. Querem proteção.

A orgia provocada pelo triunfo do capitalismo terminou por criar situações catastróficas mesmo nos Estados Unidos, onde a desregulamentação de direitos e a perda de valores do bem-estar social trouxeram situações-limite que parecem de Terceiro Mundo. Há 47 milhões de norte-americanos vivendo sem nenhum tipo de seguridade social, dependendo precariamente de ONGs beneficentes e igrejas. Todos eles, mais aqueles jovens egressos da Guerra Fria, se sentem no papel daquele jovem da música dos Beatles Norwegian Wood, que, convidado a ficar por uma suposta enamorada, de repente se descobre sem lugar e numa terra completamente estranha – uma “floresta norueguesa” (She asked me to stay/ And she told me to sit anywhere/ So I looked around/ And I noticed there wasn’t a chair… – Ela me pediu pra ficar/ Para eu sentar em qualquer lugar/ Então, olhei em volta/ E notei que não havia nenhuma cadeira…).

Esse é o povo que ele vem cativando, e essa é a explicação para sua fulgurante carreira, eleito em 1996 para o Legislativo de Illinois e em 2004 para o Senado. Se o Obama candidato ou o Obama talvez-eleito – ou mesmo o derrotado, mas prosseguindo na vida política – vai corresponder a esse carisma todo que desperta é questão a ver no futuro. O sistema político norte-americano é mestre em absorver vocações alternativas, mas também em rejeitá-las, como ocorreu no caso dos irmãos Kennedy e de Martin Luther King. É enganoso acreditar que uma eleição nos EUA vai mudar tudo. Mas igualmente enganoso é achar que tudo é farinha do mesmo saco, ou hambúrguer do mesmo freezer. Simbolicamente, pelo menos, Barack Obama já fez a diferença. E isso não é pouco.