entrevista

O piloto da sucessão

Lula refuta quem diz que seu bom desempenho conta com a sorte. Garante que em janeiro de 2011 será ex-presidente, e pretende “descansar com a cabeça erguida”. Antes, porém, conduzirá o governo com mãos de quem quer fazer o sucessor

RICARDO STUCKERT/PR

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva calcula que a reta final do segundo mandato será período de “colheita”. Prevê para 2010 a inauguração de muitas obras do Plano de Aceleração do Crescimento, cujos inícios este ano o têm levado a viagens por todo o país. Diz que em 2011 voltará para São Bernardo do Campo, enfatiza que terceiro mandado é prejudicial à democracia e que não será candidato em hipótese alguma. Mas desde já pilota o processo para fazer seu sucessor. Lula é pragmático nas alianças e diz que já se foi o tempo em que se “baixava o centralismo a partir de uma lógica de São Paulo ou Brasília” e que as alianças – “se você não estiver fazendo acordo com narcotraficante, com o crime organizado, com bicheiro, com ladrão” – devem seguir as realidades locais. O petista defendeu com todas as letras a presença do PT mineiro e do PSDB de Aécio Neves na coligação eleitoral para a prefeitura de Belo Horizonte, rejeitada pela direção nacional de seu partido.

Ao comentar a saída de Marina Silva do Meio Ambiente, foi categórico: “Entrou quando eu quis (em 2003) e saiu quando ela quis. A política (ambiental) nunca foi da Marina; a política é do governo”. Voltou a rebater representantes de países ricos que criticam a política de biocombustíveis: “Quando o Brasil era insignificante, ninguém reclamava. Agora que disputa mercados importantes, obviamente que começa a incomodar”.

E demonstrou não se importar se se considera ou não entre os governos de “esquerda” da América Latina, afirmando que o desenvolvimento integrado sul-americano é mais importante que as disputas ideológicas. Em determinados momentos, é controverso. Por exemplo, diz que “trabalhamos para que todos os setores da sociedade ganhem, cresçam juntos”, ao ser questionado se os lucros recordes dos bancos não contradizem com um ambiente de combate à desigualdade. E, embora negue que o peso dos juros nas contas do país possa prejudicar a continuidade do crescimento, admite que o governo não tem uma política de aumento real para os aposentados que recebem acima de um salário mínimo porque a situação da Previdência ainda é de déficit.

Esta conversa com a Revista do Brasil estava programada para acontecer na manhã do dia 21 de maio, no Palácio do Planalto. Devido à agenda mutante do presidente, esteve por um fio. Mas acabou sendo encaixada na viagem de Lula feita na véspera a São Paulo. Durante um vôo de 117 minutos, Lula falou com a reportagem por 25, o que proporcionou dois terços desta entrevista. O restante foi respondido por e-mail.

Suas viagens por todo o país para inaugurar obras do PAC estão sendo a tônica do segundo mandato?
Eu sempre tive muita preocupação com segundo mandato, com a apatia, a mesmice que poderia ser, mas tive a grata satisfação de começar o meu com o lançamento do PAC, no dia 26 de janeiro de 2007, e por conta desse programa o segundo mandato tem sido muito mais dinâmico que o primeiro. Na verdade, estamos colhendo tudo aquilo que foi semeado no primeiro mandato. Também estamos já colhendo a semeadura que fizemos no PAC em áreas como transportes, portos, aeroportos, saneamento básico, habitação, urbanização de favelas. São muitos investimentos nas cidades brasileiras. Isso tem permitido que o governo todo atue com muito mais desenvoltura e dinamismo, e penso que há uma tendência de melhorar a cada dia que passa. Em 2008, as obras do PAC estão começando, em 2009 estarão a todo o vapor e em 2010 entramos em um processo de inauguração das principais. Isso está nos ensinando que, em 2010, teremos de preparar um outro PAC, para que possamos já colocar no Orçamento da União para 2011-2014. Quem quer que entre no governo vai ter um conjunto de prioridades definidas e aprovadas no Orçamento e vai poder tocar as obras com muito mais desenvoltura.

Eu trabalho com a idéia de que o governo terá de ter um candidato. Esse candidato pode e deve ser construído com todas as forças políticas que compõem a base do governo. Quem vai ser? Ainda é muito cedo. Mas uma coisa é importante ficar claro: eu trabalho com a idéia de que nós precisamos fazer a nossa sucessão. E, para isso, temos de trabalhar, discutir com os partidos e escolher a pessoa mais qualificada para administrar este país.

Tem como ser uma pessoa só, em uma coalizão tão ampla e heterogênea?
Eu trabalho com essa hipótese, acho que é possível. Agora, se não for, é justo. Não vejo nenhum problema em cada partido político querer ter candidatura própria. Estou muito à vontade para falar isso, porque, quando propus aliança política com os partidos para governar o Brasil, não pedi que nenhum deles assumisse compromisso eleitoral comigo para 2010. Sempre achei que esses acordos eleitorais seriam falsos, porque se você tivesse um acordo com os partidos, mas o governo estivesse mal, ninguém iria apoiar; e se você não tiver o acordo, mas o governo estiver bem, a chance desse apoio é muito maior. Então, nós temos de trabalhar primeiro com muita abertura na nossa cabeça, com muita disposição de construir essa coalizão.

Como o senhor vê esse movimento de Belo Horizonte, a relação entre PT e PSDB em torno de uma mesma candidatura, rejeitada pela direção nacional do PT?
A minha tese é que o PT cometeu exageros na direção nacional e acho que o PT de Minas pode ter cometido exageros, mas vamos ver o que aconteceu: você tem uma candidatura do PSB e o PT pode indicar o vice. Ora, o que o governador (Aécio Neves) está propondo é ele participar do processo apoiando o candidato do PSB com o vice do PT. Eu confesso que não sei onde está o mal nisso. E, depois, é uma coisa muito conjuntural de Belo Horizonte. Tentar nacionalizar um problema desse é só para criar fissura em outros lugares onde não precisaria ter fissura.

Belo Horizonte é circunstância isolada, então? Não é o início de uma aproximação entre PT e PSDB visando a 2010?
É uma coisa isolada, muito circunstancial, em função de uma realidade política da cidade de Belo Horizonte, que eu acho que não deveria ter criado toda a celeuma que criou.

O PT vai continuar hegemonizando o eleitorado de esquerda, aqueles 30% da população que se definem como de esquerda, mesmo com um arco de alianças tão amplo? O PT vai continuar sendo o grande partido de esquerda do Brasil?
Eu acredito que o PT será cada vez maior quanto mais ele acertar nas suas políticas. O exemplo mais forte é o meu. Cansei de perder eleições com 30%. Chegou um dia que tomei consciência de que, se eu precisava de 50%, teria de arrumar os outros 20% que não estavam no espectro que normalmente votava no PT. Então era preciso ampliar a nossa base de apoio, procurar outros setores que não votavam tradicionalmente no PT, fui procurar o Zé Alencar para vice, e o resultado foi que nós ganhamos. O PT é a mesma coisa: tem de saber que as suas alianças políticas são feitas em função das circunstâncias da região onde essa aliança vai se dar. Teve um tempo em que nós, da direção nacional, tomávamos decisão e baixávamos um centralismo a partir de uma lógica de São Paulo, ou de Brasília, que não é a mesma coisa para o Brasil inteiro. A aliança que vai ser feita em Ipatinga, em Garanhuns ou em São Luís do Maranhão depende muito da circunstância política local, da cultura política, da realidade eleitoral local. Ora, se você não estiver fazendo acordo com narcotraficante, com o crime organizado, com bicheiro, com ladrão… Se estiver fazendo acordo até com gente de outros partidos mais conservadores, mas gente séria, decente, qual é o problema? Eu acho que o PT não se diminui. O dado concreto é que, nas eleições de 2006, depois de tudo o que o PT sofreu, nós ainda fomos a legenda mais votada do Brasil.

O senhor diz que às vezes deita, olha para o teto e se pergunta: “Será que sou mesmo o presidente da República?” E, quando cai a ficha, como é essa realidade? Qual é o poder real que o cargo lhe confere?
Eu sempre me perguntava se, eleito presidente, seria possível fazer aquilo que entendia que os outros deveriam fazer. Depois de seis anos tenho consciência de que é, sim, possível fazer as coisas. Apesar das dificuldades, porque você tem uma máquina burocrática, que na verdade é o próprio Estado brasileiro. Entre você tomar uma decisão e essa decisão sair da mesa do presidente e se transformar em algo concreto leva tempo. Tem de passar pelas mesas jurídicas, pelas mesas da burocracia, e muitas vezes isso é um inferno. Você passa pelo Tribunal de Contas, pelo Ministério Público, pelo Meio Ambiente. E quando você pensa que está tudo pronto tem de enfrentar o Poder Judiciário… Então, é tudo muito complicado. Mas nós estamos provando, sobretudo com o PAC, quando criamos o conselho gestor, a transversalidade nas decisões de governo, que é possível fazer as coisas andar. Então, hoje, eu continuo olhando pro teto, e muito feliz, porque estou vendo que as coisas estão acontecendo no Brasil.

Reforma tributária, reforma trabalhista, reforma sindical, reforma agrária: por que essas coisas não andaram?
Não andaram porque não dependem do presidente da República. Para a reforma trabalhista, eu criei um grupo de trabalho no Ministério do Trabalho que aprovou algumas mudanças, que não andam. Não andam porque existem divergências entre eles. O presidente da República, num regime democrático, não pode por decreto fazer as reformas. Os dirigentes sindicais queriam a redução da jornada para 40 horas, eu disse a eles: por que não fazem um projeto de lei de iniciativa popular? Por que não vão para as portas de fábrica pegar assinaturas e dão entrada no Congresso Nacional com um projeto, que ganha muito mais força? A reforma tributária, a reforma sindical estão no Congresso Nacional. A reforma previdenciária foi aprovada no Congresso, algumas coisas têm de ser regulamentadas. Criamos agora um grupo para pensar na reforma da Previdência do regime geral. Ora, essa é a forma mais democrática para você fazer as coisas.

E a reforma agrária?
Na questão da reforma agrária, acho importante dar um número para vocês: nós desapropriamos em cinco anos 35 milhões de hectares, assentamos 431 mil famílias. Isso é mais do que já aconteceu em qualquer país do mundo, mesmo em país que já teve revolução. Agora, o meu problema não é desapropriar mais terras, não é assentar mais gente, é criar as condições para que todos que já estão na terra se transformem em agricultores altamente produtivos. Eu dizia na reunião com a Contag, com o ministro do Desenvolvimento Agrário, que precisamos nesses próximos três anos quadruplicar o investimento na assistência técnica, para que a gente possa melhorar a qualidade de produção das pessoas. As pessoas não podem ficar no campo com a filosofia da agricultura da subsistência. Precisam produzir mais, com melhor qualidade, maior valor agregado, para ganhar mais dinheiro. Essa é a grande revolução que o campo brasileiro precisa.

Parte disso conta com a política para os biocombustíveis, onde hoje o agronegócio, grande inimigo dos movimentos agrários, aparece com força nunca vista. Numa outra ponta há as tensões ambientais e também as internacionais, com a alta dos preços dos alimentos. Como seu governo se posiciona?
Primeiro, eu quero que o agronegócio vá cada vez melhor. E eu disse a minha vida inteira que não há incompatibilidade nenhuma entre você ter uma grande agricultura empresarial e ter uma grande agricultura familiar: as duas coisas podem caminhar juntas. A segunda coisa é que eu não aceito as acusações que do exterior fazem sobre o Brasil, em relação aos biocombustíveis. Querer jogar a culpa da alta dos alimentos nos biocombustíveis é no mínimo mentir para si mesmo. Os acusadores dos biocombustíveis não dizem quanto pesa o preço do petróleo, que saiu de US$ 30 para US$ 124, na produção de fertilizante, no transporte, no frete dos alimentos. Não dizem que na Europa eles ficaram 30 anos subsidiando a agricultura para não produzir. Não dizem que eles não querem fazer o acordo de Doha na Organização Mundial do Comércio para flexibilizar a produção de alimentos nos países pobres. É isso que está em questão.

O dado concreto é que o Brasil está oferecendo ao mundo um combustível que cumpre algumas funções: é bem menos poluente, não emite CO2; é seqüestrador de carbono, quando essa planta está crescendo; terceiro, você pode não apenas produzir o combustível como também energia elétrica do bagaço, ou mais etanol, de segunda geração, a partir do bagaço da cana, o cavaco do eucalipto. O dado concreto é que o Brasil encontrou uma nova matriz energética na área de combustível e nós queremos que o mundo discuta com sabedoria. Por isso estamos convocando uma conferência internacional, nos dias 20 e 21 de novembro, para trazer ONGs, empresários, cientistas do mundo inteiro, para a gente discutir. Obviamente que o Brasil tem de fazer a lição de casa, temos de fazer um zoneamento agroecológico correto, temos de mapear quais as áreas onde você pode produzir, em função de cada bioma. Tudo isso vamos fazer, porque é obrigação nossa fazer. Agora, não venham os poluidores do mundo jogar culpa em cima do Brasil.

Em alguma medida a ex-ministra Marina saiu por não se adequar ao ritmo que se pretendia impor a projetos e obras?
Só a Marina pode explicar isso. Ela ficou cinco anos e meio comigo. Entrou quando eu quis, e saiu quando ela quis. A política não é do ministro, a política nunca foi da Marina. A política é do governo. Portanto, qualquer ministro que entra tem um patamar. Ele pode fazer mais do que aquilo, menos ele não pode. Somos o governo que mais cuidou do meio ambiente, porque, em três anos, conseguimos reduzir o desmatamento em 59%. Esse é o dado concreto. Nós criamos mais de 20 milhões de hectares de reservas – afora as terras indígenas. Agora, a verdade é que nós temos de descobrir qual é o ponto correto entre o desenvolvimento e a preservação ambiental. Quando as pessoas falam na Amazônia esquecem que na Região Norte moram 25 milhões de pessoas, que querem ter carro, rua, televisão, casa, querem viver como vive alguém que mora no Rio de Janeiro, em São Paulo ou Brasília. E não querem ficar segregadas.

Houve um desgaste no exterior.
Nós apresentamos agora o Programa Amazônia Sustentável, que visa, com a participação dos nove governadores, trabalhar corretamente como desenvolver a Amazônia, utilizando o manejo correto da floresta, até para ajudar as pessoas a ganhar a vida. As áreas de extrativismo que legalizamos são muito grandes, aprovamos agora inclusive colocar preço mínimo, para que o governo possa comprar produtos dos extrativistas brasileiros. Ou seja, as coisas estão acontecendo. O que é preciso é que a gente fique muito atenta, porque o Brasil não é mais um coadjuvante, é um artista principal, passou a ser um grande exportador, importante na área da agricultura, na carne, e isso começa a criar adversários mais fortes. Quando o Brasil era insignificante, ninguém reclamava. Agora que o Brasil disputa mercados importantes, obviamente que começa a incomodar. Então, precisamos tomar muito cuidado com o que a gente fala aqui dentro, porque o que falarmos aqui será usado contra nós mesmos lá fora. Aos poucos a gente vai convencendo nossos produtores rurais de que cuidar do meio ambiente pode ser uma vantagem comparativa para nossos produtos no exterior. Eles sabem disso.

O Bolsa Família teve um papel importante na distribuição de renda. Existe um plano, uma meta para reduzir a dependência das famílias que o recebem?
Primeiro, eu não estou preocupado em reduzir Bolsa Família. É preciso parar com essa hipocrisia de achar que dar dinheiro para uma pessoa pobre é proselitismo ou assistencialismo. É engraçado que quando você dá R$ 1 bilhão para um rico é investimento, quando dá R$ 10 para um pobre é gasto. Quando na verdade é um investimento que produz tanto efeito quanto o outro. O Bolsa Família é apenas a cara mais visível. Nós temos o Luz Para Todos, o programa Compra de Alimentos, o microcrédito, o Pronaf (Programa Nacional de Agricultura Familiar) nunca emprestou tanto dinheiro para o Nordeste, há o crédito consignado. A geração de empregos é muito grande no Nordeste, é por isso que a região aparece com um poder de consumo maior do que no sul do país.

Essas pessoas fazem parte de um fenômeno mundial. Por que os alimentos estão caros? Porque há bilhões de chineses, indianos, africanos, latino-americanos, brasileiros comendo. Se tem mais gente comendo, só tem uma solução: aumentar a capacidade produtiva de alimentos. E aí nós temos várias coisas importantes: temos terra, sol, água e gente. Quando pensamos o programa do biodiesel, criamos um selo social, para incentivar a produção do biodiesel, em grande parte, a partir da agricultura familiar. Queremos que ela tenha uma renda mensal, para poder conquistar sua cidadania definitiva. E é plenamente possível estabelecer o tipo de cultura que você vai usar para o biocombustível e fazer uma combinação entre a produção de biocombustíveis e a produção de alimentos. Isso é plenamente viável. Acabamos de criar, aliás, uma subsidiária da Petrobras para cuidar do biodiesel. O Brasil pode se transformar em um grande exemplo para o mundo. Esse debate nós queremos fazer com todos, em qualquer local, com qualquer público, porque tenho certeza que a nossa tese é justa e correta.

Assim como o Bolsa Família, as aposentadorias são uma das mais importantes fontes de renda na maioria dos municípios. Não poderia partir do governo uma política de aumento real também para os benefícios da Previdência que são superiores ao salário mínimo?
Nós temos um problema, que é possível verificar. Há uma incompatibilidade. Quando a gente se aposenta, passa a depender do reajuste, para não perder poder aquisitivo. As pessoas querem aumento real.

Principalmente numa fase da vida em que a inflação pesa mais…
Para haver aumento real, é preciso que a Previdência tenha recursos, e nós temos um déficit. O que é importante na Previdência é que nós estamos recuperando de forma extraordinária o salário mínimo. Obviamente, na hora em que a Previdência tiver mais recursos, podemos dar um aumento para os demais aposentados, mas é preciso que resolver o problema do déficit. Nós já temos um problema no setor público que é grave: eu, para dar 10% de aumento para os funcionários públicos da ativa, tenho de dar para os aposentados, e isso leva a um problema de caixa constante. Quando você fala em dar aumento, tem de dizer onde vai arrumar dinheiro para pagar esse aumento, porque temos um déficit de R$ 40 bilhões, que precisamos consertar. O ministro Marinho tem trabalhado para que a gente conserte isso, não é uma coisa de curto prazo, é de médio prazo, mas, se Deus quiser, vamos resolver isso, e um belo dia a gente vai poder dar um reajuste para os trabalhadores que ganham acima de um salário mínimo.

Falando em déficit, o senhor não teme que essa tendência de alta dos juros seguida pelo Banco Central prejudique o processo de crescimento que o país está vivendo?
Não, não vai acontecer isso. O país está num ritmo extraordinário. Nós temos apenas de ter uma preocupação: o crescimento da demanda não pode ser maior que crescimento da oferta. Se tiver dez para comprar e só tiver um produto para vender, volta a inflação. O que nós queremos é que tenha dez pra comprar e dez pra vender, porque aí você mantém o equilíbrio, a economia cresce, a inflação está controlada, e ela estando controlada o trabalhador brasileiro ganha com isso.

Mesmo quem reconhece méritos do governo o considera “pouco ousado”, em temas como política econômica, modelo de desenvolvimento. Mino Carta disse neste espaço que o senhor teria ido mais longe “se tivesse entendido” a força que o povo lhe conferiu. O que o senhor pensa disso?
Temos trabalhado com seriedade e obstinação desde 2003 para garantir que o Brasil entre na rota do desenvolvimento sustentável. Fizemos primeiro um forte ajuste econômico, numa combinação de câmbio livre, superávit primário e meta inflacionária, que nos garantiu a estabilidade e a confiança dos mercados interno e externo. Junto com o ajuste, implantamos uma ampla política social, por meio de programas como o Bolsa Família, o ProUni, o Pronaf e o crédito mais barato para os pequenos e microempresários. No início do meu segundo mandato, lançamos os PACs Infra-Estrutura e de Saneamento e Habitação, com o objetivo de destravar os gargalos que temos hoje nos setores energético, viário, ferroviário e de portos, além de incrementar a infra-estrutura urbana e social das grandes cidades brasileiras. Os resultados dessa combinação de política econômica com forte viés social são visíveis: mais emprego, maior consumo das classes C, D e E e ascensão social à classe média de mais de 20 milhões de brasileiros são só alguns exemplos. Já se foi o tempo das idéias mirabolantes e dos planos econômicos milagrosos, o que o Brasil precisa é de um governo que trabalhe sério e de forma continuada pela geração de riquezas e a redução das desigualdades. Essa é a ousadia do meu governo.

Seu governo é marcado por ganhos no combate à desigualdade. Mas também por grandes ganhos para os bancos. Os juros continuam sendo os mais altos do mundo. As grandes conquistas do sistema financeiro não impedem que as conquistas da maioria sejam maiores?
Trabalhamos para que todos os setores da sociedade ganhem, cresçam juntos. Já houve momentos em que o país crescia 15% ao ano, mas esse desempenho não gerava ganhos para os trabalhadores. Hoje o cenário é outro. É verdade que os bancos têm batido recordes de lucro anualmente. E isso não é ruim, porque o setor produtivo também está crescendo. Vou citar aqui dois deles: o setor automobilístico e a indústria naval. A diferença é que agora o crescimento do setor produtivo tem repercutido diretamente no bolso do trabalhador. Em 2007, os trabalhadores saíram com ganhos reais, acima da inflação, em 88% das negociações salariais. Esse é um dado extraordinário. Não há, então, conflito no fato de os setores financeiro e produtivo crescerem ao mesmo tempo. Queremos que o Brasil como um todo, falo de empresários, trabalhadores, acionistas, entre outros, possa sair ganhando com uma política que, como eu já disse, garanta o desenvolvimento sustentável do país.

O debate recente sobre a homologação de Raposa Serra do Sol levantou uma questão entre os militares: uma suposta ameaça à soberania nacional, no que tange à Amazônia. O senhor acredita que exista ameaça à soberania nacional?
A demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol em terras contínuas foi exaustivamente discutida dentro do meu governo, uma discussão que envolveu os mais diferentes e especializados setores da sociedade. A demarcação em terras contínuas não significa nenhuma ameaça à soberania nacional, até porque as Forças Armadas vão poder continuar atuando na defesa da fronteira e do território nacional dentro da reserva indígena. Mas é importante dizer que a questão está agora na esfera do Supremo Tribunal Federal (STF), aguardando julgamento. Portanto, caberá à suprema corte da Justiça do país dar a posição final sobre o assunto. Posição que será acatada pelo governo federal. Até que isso aconteça, estamos trabalhando para minimizar os conflitos entre os grupos antagônicos na área.

O senhor ainda se considera como parte do grupo de governantes de esquerda da América Latina? Ao lado de Raúl Castro, Chávez, Morales, Corrêa, por exemplo?
Eu me considero parte de um grupo de governantes, entre eles estes que você citou, que têm em comum o compromisso de melhorar a vida dos setores mais pobres e necessitados de seu paíse. Acho que a América Latina, e especialmente a América do Sul, tem evoluído bastante nos últimos anos em dois pontos que são fundamentais para suas populações: a consolidação da democracia e a integração regional. Acabamos de criar a União Sul-Americana de Nações (Unasul), embrião para um futuro Parlamento Sul-Americano. É uma ação extraordinária, que ainda dará muitos frutos políticos e econômicos para nossos países. Mais importante do que as disputas ideológicas é nosso compromisso comum de trabalharmos juntos pelo desenvolvimento integrado da região.

Quando o senhor era oposicionista, diziam que não teria capacidade para governar. Agora, dizem que tem contado com muita sorte. O senhor é um governante de sorte?
Fico feliz de ser considerado um presidente de sorte. Mas é preciso reconhecer que sorte só não basta para garantir o sucesso da política de inclusão social e desenvolvimento econômico que nós implantamos no país nos últimos anos. É preciso ter vontade política e capacidade gerencial e de articulação com a sociedade para fazer com que as coisas aconteçam. Não se trata de um dom. Falo de trabalho duro, intenso, de articulação com estados, municípios, Congresso Nacional, Poder Judiciário, empresários, sindicatos e outros setores organizados da sociedade. Sei que há segmentos da oposição que torcem para que as coisas dêem errado. E que, quando as coisas dão certo, dizem que foi apenas sorte do presidente. Mas a verdade é que a população sabe distinguir o que é sorte do que é fruto do trabalho árduo do governo. As pessoas estão cada vez mais pensando por si, analisando como sua vida e a de seus vizinhos têm mudado nos últimos anos. E é bom que seja assim, porque elas passam a cobrar mais efetivamente por políticas públicas que afetem positivamente sua vida.

A eleição direta para presidente em 2010 será a primeira, desde a democratização, sem o senhor como candidato. O que pretende fazer a partir de janeiro de 2011?
Voltar para São Bernardo, descansar. Gosto de pensar que vou poder andar pelas ruas da cidade com a cabeça erguida, com o sentimento de dever cumprido. Antes, porém, pretendo atuar politicamente para fazer meu sucessor em 2010. Já disse isso e repito, porque desejo que as coisas que deram certo no meu governo tenham continuidade. O Brasil precisa prosseguir no combate às desigualdades sociais entre pessoas e regiões, dando ênfase à distribuição de renda por meio do reajuste do valor do salário mínimo e de outros programas que adotamos, como o Bolsa Família, por exemplo. Por isso, desejo um sucessor que continue fazendo um governo que conjugue uma política econômica correta e uma forte sensibilidade social, com uma gestão administrativa eficiente e um comando político acertado. Um sucessor que aprofunde, ainda mais, a inserção soberana do Brasil no mundo.

E se houver algum imprevisto, como uma emenda constitucional que permita um terceiro mandato?
Olha, eu acho que qualquer proposta de um terceiro mandado é prejudicial à democracia. Eu não serei, em hipótese alguma, candidato a um novo mandato em 2010. Como já disse, vou trabalhar para, se possível, unificar nossa base política e fazer meu sucessor. Depois, volto para São Bernardo.