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O novo estouro da boiada

Nova versão de O Menino da Porteira quer resgatar cinema popular de temática rural num tempo em que o ingresso das salas já chega aos R$ 20

Paulo Pepe

O cantor Daniel vive Diogo, papel principal do filme

A porteira fechada do circuito cinematográfico brasileiro está perto de ser aberta. E o desafio cabe a um antológico personagem caipira, O Menino da Porteira. O nome ecoa de duas épocas distantes. A primeira, em 1955, quando o trio Luizinho, Limeira e Zezinha – formação clássica de música caipira de então, com uma dupla fazendo as vozes, acompanhada de um acordeom – gravou pela primeira vez o cururu de autoria do próprio Luizinho, em parceria com Teddy Vieira. A segunda, em 1973, quando um cantor egresso da Jovem Guarda, Sérgio Reis, ao ouvir o cururu sendo cantado numa procissão no interior de Minas Gerais, resolveu gravá-lo com roupagem nova, incluindo teclados e guitarra no arranjo, o que ainda era novidade no mundo musical batizado “sertanejo”.

O sucesso acabou ganhando versão cinematográfica em 1976, que heroicamente desbancou dois dos maiores campeões de bilheteria do país: Amácio Mazzaropi e Os Trapalhões. Dirigida por Jeremias Moreira, a fita angariou uma bilheteria de 6 milhões de espectadores, total difícil de imaginar hoje. O mesmo diretor, e sua Jerê Filmes, quer agora promover uma terceira onda, que promete mexer com as estruturas do cinema ao propor torná-lo, como já foi um dia, popular. Está em produção uma nova versão de O Menino da Porteira.

O filme original teve o próprio Sérgio Reis no papel principal, o boiadeiro Diogo. Ao instigar a fúria do major Batista, vivido pelo inesquecível Jofre Soares, por se envolver em conflitos de terras, o mocinho acaba sendo alvo de emboscada. A aposta da nova versão – um outro filme, com roteiro atualizado e reformulado – está igualmente no dono do papel de Diogo, o cantor sertanejo Daniel.

Mas será possível atrair novos 6 milhões de espectadores numa época em que o ingresso bate os R$ 20? (E quando a maior parte dos cinemas do interior, que se regalavam em lucros quando Mazzaropi chegava com uma nova fita, teve suas portas fechadas nas duas últimas décadas com a ascensão do videocassete e, depois, da TV a cabo.) A prova de que é possível está no êxito de 2 Filhos de Francisco, de Breno Silveira. A trajetória dos irmãos Zezé Di Camargo e Luciano levou às salas de exibição 5,8 milhões de espectadores em 2005.

Paulo PepeCorumbataí
O cenário principal do filme é uma antiga fazenda de café em Corumbataí, próximo a Brotas, interior de São Paulo

Demanda reprimida

Para garantir que seu filme chegue lá, Jeremias teve uma idéia ousada. Quer devolver a popularidade ao cinema exibindo a fita, com o apoio da distribuidora Sony Pictures, nas arenas de rodeio nos períodos ociosos, cobrando ingressos mais baratos. A proposta não é apenas uma alternativa ao circuito dos grandes exibidores, mas um esforço para devolver o cinema ao espaço popular de entretenimento. “Há uma demanda reprimida”, afirma Mouracy do Val, produtor da versão atual e também do original. O “empreendimento” – expressão que diretor e produtor nem imaginariam há três décadas – está gerando uma grande “expectativa no mercado”. Isso pela proposta de levar cinema a recantos onde as salas há tempos foram transformadas em templos religiosos e bingos.

Amparadas por essa fé, as filmagens ocorrem numa antiga fazenda de café em Corumbataí (SP), vizinha a Brotas, cidade natal de Daniel. A produção vai inaugurar ainda o Pólo Cinematográfico de Paulínia, onde foi montada uma cidade cenográfica. No total, o projeto conta com R$ 6 milhões, captados entre investidores privados, com apoio da Sony Pictures e do Pólo de Paulínia. Além de Daniel, o elenco traz José de Abreu, no papel do major Batista, e Vanessa Giácomo, no de Luciana (vivida por Maria Viana na versão de 1976), enteada do fazendeiro que, obviamente, se apaixona por Diogo. Cenografia e figurino dão à história, que se passa na década de 50, ar de faroeste americano, sem perder o sotaque caipira.

“Para mim é tudo novo. Fiquei um mês fazendo preparação de ator, aprendi postura, respiração, tudo a custa de muito exercício”, conta Daniel, que foi sondado por Jeremias para participar da produção há nove anos. O convite oficial veio somente há um ano. Ao interpretar o “peão solto no mundo” Diogo, como o próprio Daniel define o personagem, o cantor terá uma única cena cantada. O que não o impedirá de interpretar a música tema e outras canções, entre elas a politizada Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros.

Daniel foi proibido por Jeremias de ver a versão original do filme, mas chegou a trocar figurinhas com Sérgio Reis. “Não tenho intenção alguma de seguir na profissão de ator”, avisa o cantor, que iniciava sua carreira na música sertaneja justamente à época do sucesso do filme original. Sua estréia foi no 1º Festival de Música promovido pela Rádio Brotense, no Cine São José, recentemente restaurado – e que ele faz questão que seja um dos locais de lançamento do filme.

Paulo Pepemenino porteira
Com apenas 7 anos, João Pedro de Carvalho, o “menino”, já tem muita experiência diante das câmeras

Tema de abertura

O tarimbado José de Abreu pela primeira vez na carreira interpreta um fazendeiro caipira, uma ironia para quem nasceu em Santa Rita do Passa Quatro, interior de São Paulo. Para ele, a referência é mais antiga: “Às 6 da tarde, o sistema de som do centrinho de Santa Rita transmitia a Ave Maria. Em seguida, entrava O Menino da Porteira, com Luizinho e Limeira. Só daí começavam oficialmente as transmissões do sistema de alto-falantes da cidade”, lembra. O diretor Jeremias o convidou a encarnar o major Batista há dois anos, quando ambos participaram do lançamento do projeto do Pólo Cinematográfico de Paulínia. Por problemas de agenda, o ator acabou declinando do convite. Vários outros atores foram convidados até a escolha recair novamente sobre Abreu. “Sabe quando o papel tem de ser seu?”, indaga, antes de recordar que não foram poucas as vezes em que ele próprio brincou de menino da porteira. Decidiu, então, criar criteriosamente o personagem. Fez um major avarento, rico mas sem ostentar, que tem dor de dente – arrancou uma coroa para fazer o papel – e um carrão estacionado no pátio da fazenda.

O personagem título, interpretado pelo ator Márcio Costa na primeira versão, coube a João Pedro de Carvalho, de 7 anos e currículo extenso de participações em comerciais de TV. Também atuou no filme Acquaria (2003), da dupla Sandy e Junior. Urbano, João Pedro se encanta com a vida rural, com a montaria, os animais, e já arrisca dizer que quer ser boiadeiro quando crescer. O filme deve estrear ainda este ano, pois um dos patrocinadores, as Casas Pernambucanas, inclui a produção na comemoração do seu centenário. Ao circuito popular mesmo deve chegar somente no próximo ano.

O produtor Mouracy não economiza entusiasmo ao falar da crença de que o tema rural é ainda o que desperta esse público, sobretudo se produzido com qualidade. “A resposta dos nossos parceiros na produção está sendo muito positiva, especialmente por causa da qualidade não só do elenco, mas da equipe de produção”, avalia Mouracy, citando nomes consagrados do cinema nacional que atuam detrás das câmaras: Pedro Farkas (direção de fotografia), Nelson Ayres (direção musical) e Carlos Nascimbeni (roteiro). Enfim, pela terceira vez em pouco mais de meio século, o menino pede a Diogo que toque o berrante, que é para ele – e o povo – ficar ouvindo.

Hollywood caipira

Na primeira metade dos anos 1950, São Bernardo do Campo foi a capital do cinema paulista, ao abrigar os luxuosos estúdios da Companhia Vera Cruz, empreendimento patrocinado pelo industrial Francisco Matarazzo Sobrinho (o Ciccillo). No novo século, essa capital será Paulínia, a 118 quilômetros de São Paulo. A cidade sedia um pólo cinematográfico, projeto lançado pela prefeitura em 2005 que envolve a construção de estúdios de filmagens, escritórios para as produtoras, oficinas para treinamento de técnicos e artistas, museu de cinema, teatro com 1.500 lugares e uma cidade cenográfica, inaugurada com O Menino da Porteira. O investimento vem da prefeitura e da iniciativa privada.

Além de O Menino da Porteira, outras oito produções deste ano receberam subsídios de Paulínia e tiveram filmagens feitas no pólo local: Antes da Noite, de Toni Venturi; Budapeste, de Walter Carvalho; Condomínio Jaqueline, de Roberto Moreira; Hotel Atlântico, de Suzana Amaral; Ensaio sobre a Cegueira, de Fernando Meirelles; É Proibido Fumar, de Anna Muylaert; Topografia de um Desnudo, de Tereza Aguiar; e Vida Invertida, de Sílvio Tendler e José de Abreu.

 

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