Ponto de Vista

A unidade necessária

Os povos interessados estão ausentes da integração sul-americana. É preciso incentivar o intercâmbio cultural no continente. A unidade é essencial ao processo de independência iniciado há dois séculos

Em 9 de dezembro de 1824 o general Antonio José Sucre, homem forte de Simon Bolívar, derrotou os espanhóis no planalto andino do Peru. Pouco antes da batalha, amigos e irmãos, que combatiam dos dois lados, obtiveram permissão para cruzar as linhas e se despedir. O ato é de um simbolismo que faz refletir. Eram irmãos, mas estavam divididos. Sendo em sua maioria criollos, isto é, nascidos na América, alguns tinham mais sangue europeu do que indígena. Mas do lado espanhol havia também índios puros da cordilheira. Muitos dos que se abraçaram não mais se veriam no fim da tarde. Nove mil homens do exército colonialista foram derrotados pelos 6.000 rebeldes das tropas de Sucre. O exército espanhol teve 2.000 mortos. A Batalha de Ayacucho foi o fim da soberania espanhola sobre a América do Sul, mas não trouxe a unidade entre as novas repúblicas. Bolívar, que sonhava com a Pátria Grande, morreu, enfermo – em Santa Marta, no litoral da Colômbia, em 1830. Pouco antes, Venezuela e Equador se separaram da Grande Colômbia – o núcleo do que o grande general pensara ser a América do Sul unida.

No último dia 23 de maio, 12 chefes de Estado do continente se reuniram em Brasília e decidiram criar a União das Nações Sul-Americanas (Unasul). Os problemas maiores para que o projeto se consolide em acordos pontuais continuam no Norte. A Colômbia faz restrições à criação de um Conselho de Segurança Regional, exigindo a qualificação das Farc como “bando terrorista”. Trata-se de um pretexto. O governo Uribe está atado dos pés à cabeça aos EUA e luta para ter a Colômbia como membro do Nafta. O Equador devia oferecer à Unasul seu primeiro secretário-geral e renunciou a essa escolha. Remanescem problemas fronteiriços com o Peru. No resto do continente as coisas tampouco são fáceis e há problemas históricos pendentes.

O Brasil enfrentará situação delicada nas relações com o Paraguai, que, sob o governo Lugo, pretende renegociar o acordo de Itaipu. Falsa opção geopolítica nos fez criar uma situação de xifopagia com os guaranis, ao ser construída a represa naquele ponto do Paraná. A fertilidade das terras e a expansão quase natural da fronteira agrícola para o Oeste levaram fazendeiros do Brasil a explorar glebas em território guarani – sempre fonte de tensões. A Bolívia está ameaçada de secessão da parte mais rica do território. Também ali, além de americanos e outros estrangeiros, há agricultores brasileiros, alguns em situação irregular. Entre o Paraguai e a Bolívia perdura o mal-estar da Guerra do Chaco, perdida pelos bolivianos nos anos 30. E Bolívia e Peru não esqueceram a Guerra do Pacífico (1879-1884), em que perderam território para o Chile.

Há poucos meses, em encontro de diplomatas latino-americanos no Rio de Janeiro, um jornalista brasileiro advertiu que há um erro estratégico na construção da unidade continental: dela estão ausentes os povos interessados. A unidade vem sendo assunto restrito a governantes, acadêmicos, diplomatas e jornalistas. Será necessário grande esforço a fim de obter a adesão popular, para que se desfaçam preconceitos e os sul-americanos se conheçam melhor. É necessário promover encontros entre trabalhadores e estudantes. Nesse esforço será importante a participação das centrais sindicais latino-americanas. Por ser o país mais extenso e mais populoso, cabe ao Brasil convidar pessoas do povo dos países vizinhos a visitar-nos e incentivar o intercâmbio cultural no continente.

Logo depois de assumir o poder, na Argentina, em 1945, o general Perón disse que o século 21 nos encontraria – os latino-americanos – unidos ou dominados. Conseguimos escapar do domínio direto, formal e duradouro, embora tenhamos sofrido golpes sangrentos e ditaduras construídas pelo Big Brother do Norte. A unidade latino-americana é uma necessidade imperativa, para que possamos concluir o processo de independência iniciado há menos de dois séculos. Ou voltaremos a ser um grupo de colônias dóceis e conformadas, como é do projeto dissimulado dos Estados Unidos e da União Européia.

Mauro Santayana trabalhou nos principais jornais brasileiros a partir de 1954. Foi colaborador de Tancredo Neves e adido cultural do Brasil em Roma nos anos 1980